sábado, 30 de janeiro de 2016

Comte-Sponville, o desespero alegre e a questão da felicidade

Aí abaixo, reproduzo alguns extratos de uma entrevista com o filósofo André Compte-Sponville, herdeiro do legado da conhecida École da rue d'Ulm. Acompanho o seu trabalho há anos, e quando as pessoas me fazem perguntas sobre felicidade, alegria, verdade, tristeza, etc., geralmente, lembro da sua obra. Gratidão e coragem, como virtudes, também são temas por ele tratados - o que, de pronto, coloca a 'questão do ter caráter'. Felicidade: 'Todo lapso de tempo durante o qual a satisfação parece imediatamente possível'. Mais ainda: 'A sabedoria é a felicidade dentro da verdade - é [esta] o máximo de felicidade associado ao máximo de lucidez'. São enunciados que demandam mais explicação. Por isso, à guisa de considerações preliminares, vale a pena a leitura da entrevista. 


André Comte-Sponville : capa do seu livro 'Pequeno
 Tratado das Grandes Virtudes' 


O senhor afirma que todos os homens sem exceção procuram ser felizes e cita Pascal, em seus Pensamentos (1670): "A busca da felicidade é o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar". Para a maior parte da humanidade, essa busca não seria vã?
André Comte-Sponville - Tudo depende do que se entende por felicidade. Se você busca uma alegria contínua e soberana, ou mesmo a ausência total de sofrimento e angústia, certamente nunca será feliz. "Toda vida é sofrimento", dizia Buda. E tinha razão. A felicidade, se a entendemos como uma alegria completa, é apenas um sonho, que nos separa do contentamento verdadeiro. Em busca da felicidade absoluta, nós nos proibimos de viver as felicidades relativas e nos tornamos infelizes. Se, ao contrário, você entender como felicidade o fato de não ser infeliz ou simplesmente de poder desfrutar algumas alegrias, a felicidade não é impossível. E você será feliz somente por não ser triste. À exceção, claro, nos momentos mais difíceis da vida.

Qual é sua definição de felicidade na vida cotidiana? 
Comte-Sponville - Todo lapso de tempo durante o qual a satisfação parece imediatamente possível. Não há como se sentir alegre permanentemente. Isso é impossível. Mas há como sentir que podemos ser felizes por nós mesmos, sem que nada de essencial mude no mundo. A infelicidade se instala quando nossas alegrias dependem totalmente de circunstâncias externas.

O senhor associa a felicidade à sabedoria. Os ingênuos e os ignorantes seriam então condenados a ser infelizes? 
Comte-Sponville - Existem imbecis felizes e gênios infelizes. Mas a sabedoria é algo distinto da genialidade. Tampouco tem a ver com desatino ou tolice. A sabedoria é, sim, um certo tipo de felicidade. Mas nada tem a ver com a felicidade ilusória, conseguida por drogas ou pela ignorância. A sabedoria é a felicidade dentro da verdade. É o máximo de felicidade associado ao máximo de lucidez. Essa é a meta da filosofia. Nesse caminho, há muitas ilusões a perder e algumas verdades desagradáveis a confrontar. É por isso que a filosofia passa inevitavelmente pela angústia, pela dúvida, pela desilusão. Continua sendo apenas um caminho. Porque o destino é uma felicidade autêntica. É isso que chamamos de sabedoria.

E a infelicidade, como ela se revela na vida real?
Comte-Sponville - Quando toda alegria parece impossível, quando acordamos pela manhã sem outra perspectiva a não ser a angústia, a tristeza ou o sofrimento... Eu vivi isso. Perdi duas das pessoas que mais amava no mundo: minha única filha na época e, em seguida, minha mãe. No início, só há o horror e as lágrimas. Com o tempo, a paz retorna, em seguida a alegria. E por isso digo, por oposição, que a felicidade também existe. Como é bom deixar de se sentir infeliz!

Como a filosofia pode ajudar alguém a viver feliz? 
Comte-Sponville - Filosofar é pensar sua vida e viver seu pensamento. Em que medida isso pode nos aproximar da felicidade? Ficando mais perto da verdade, nós nos libertamos de várias ilusões e esperanças tolas. Isso nos ajuda a amar a vida mais do que amar a felicidade, a verdade mais do que a fantasia, o amor mais do que a fé ou a esperança. Os maiores mestres são, a meu ver, Epicuro (de Samos, filósofo grego dos séculos IV e III a.C.), (Michel) Montaigne (filósofo francês do século XVI) e (Baruch) Spinoza (filósofo holandês do século XVII). Quanto a mim, já me expliquei longamente em meu Tratado do Desespero e da Beatitude e, de maneira mais resumida, em Felicidade, Desesperadamente.

A religião pode dar ilusão de felicidade? A fé seria um antídoto à tristeza?
Comte-Sponville - Isso depende de quem tem fé. Se você acredita que a felicidade eterna o aguarda após a morte, isso pode ajudar a suportar em vida a infelicidade... Como sou ateu, vejo nisso mais uma armadilha que uma tentação. Não vou esperar morrer para ser feliz. O fato de, para mim, nada existir após a morte é um motivo a mais para viver da melhor maneira possível. É o que chamo de desespero alegre. Existe uma vida antes da morte, e é a única que (me) importa.

A "felicidade que nasce da verdade" foi recomendada por Santo Agostinho (filósofo e teólogo que viveu nos séculos IV e V) como o caminho para a beatitude. Para um ateu como o senhor, o conceito de beatitude tem outro significado?
Comte-Sponville - Não. A definição me convém perfeitamente. Mas não é um caminho para a beatitude. É a própria beatitude. Ela é a felicidade dentro da verdade e, portanto, também dentro da eternidade. Toda verdade é eterna. Mas não é uma eternidade após a morte. É a eternidade presente ou o presente eterno. Spinoza, nesse aspecto, é mais esclarecedor que Santo Agostinho.

O senhor se tornou ateu aos 18 anos, após uma confessada desilusão com Deus. Disse, na época: "Uma das raras certezas que eu tenho é que Deus jamais me disse algo". Poderia nos contar como se passou sua conversão ao ateísmo? 
Comte-Sponville - Foi em 1970. Por que perdi a fé? Sem dúvida, por duas razões principais: a política e a filosofia. A paixão política, naquela época, era tudo. Comparando com a política, a religião me despertava bem menos interesse. Deus deixou de me atrair. Em seguida, parei de crer. Simultaneamente, descobri a filosofia, nos meus estudos, e os argumentos em favor do ateísmo me pareciam definitivamente mais fortes que os argumentos pró-religião. Continuo a refletir sobre o tema. Eu me explico melhor em meu livro mais recente, que acaba de ser editado na França: O Espírito do Ateísmo (Introdução a uma Espiritualidade sem Deus).

Os céticos não seriam mais suscetíveis à depressão ou ao tédio? 
Comte-Sponville - Freud é, sem dúvida, quem melhor respondeu a essa questão. A depressão ou a melancolia, escreveu ele, "é a perda da capacidade de amar". Não é a fé que falta aos deprimidos, é o amor.

O senhor diz que, para o filósofo, uma tristeza autêntica vale mais que uma felicidade mentirosa. Não seria perigoso consagrar o coração à melancolia?
Comte-Sponville - O filósofo prefere a alegria à tristeza, como todo mundo. Mas ele coloca a verdade num patamar mais alto que todo o resto. Isso não quer dizer que seu objetivo seja a infelicidade. É preciso sempre ter coragem para enfrentar a melancolia ou a tristeza quando surgem. É o único caminho.

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Fonte: http://revistaepoca.globo.com/



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