Aí abaixo, reproduzo alguns extratos de uma entrevista com o filósofo André Compte-Sponville, herdeiro do legado da conhecida École da rue d'Ulm. Acompanho o seu trabalho há anos, e quando as pessoas me fazem perguntas sobre felicidade, alegria, verdade, tristeza, etc., geralmente, lembro da sua obra. Gratidão e coragem, como virtudes, também são temas por ele tratados - o que, de pronto, coloca a 'questão do ter caráter'. Felicidade: 'Todo lapso de tempo durante o qual a satisfação parece imediatamente possível'. Mais ainda: 'A sabedoria é a felicidade dentro da verdade - é [esta] o máximo de felicidade associado ao máximo de lucidez'. São enunciados que demandam mais explicação. Por isso, à guisa de considerações preliminares, vale a pena a leitura da entrevista.
André Comte-Sponville : capa do seu livro 'Pequeno Tratado das Grandes Virtudes' |
O
senhor afirma que todos os homens sem exceção procuram ser felizes e cita
Pascal, em seus Pensamentos (1670): "A busca da felicidade é o motivo de
todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar".
Para a maior parte da humanidade, essa busca não seria vã?
André Comte-Sponville - Tudo depende do que se entende por
felicidade. Se você busca uma alegria contínua e soberana, ou mesmo a ausência
total de sofrimento e angústia, certamente nunca será feliz. "Toda vida é
sofrimento", dizia Buda. E tinha razão. A felicidade, se a entendemos como
uma alegria completa, é apenas um sonho, que nos separa do contentamento
verdadeiro. Em busca da felicidade absoluta, nós nos proibimos de viver as
felicidades relativas e nos tornamos infelizes. Se, ao contrário, você entender
como felicidade o fato de não ser infeliz ou simplesmente de poder desfrutar
algumas alegrias, a felicidade não é impossível. E você será feliz somente por
não ser triste. À exceção, claro, nos momentos mais difíceis da vida.
Qual é
sua definição de felicidade na vida cotidiana?
Comte-Sponville - Todo lapso de tempo durante o qual a
satisfação parece imediatamente possível. Não há como se sentir alegre
permanentemente. Isso é impossível. Mas há como sentir que podemos ser felizes
por nós mesmos, sem que nada de essencial mude no mundo. A infelicidade se
instala quando nossas alegrias dependem totalmente de circunstâncias externas.
O
senhor associa a felicidade à sabedoria. Os ingênuos e os ignorantes seriam
então condenados a ser infelizes?
Comte-Sponville - Existem imbecis felizes e gênios
infelizes. Mas a sabedoria é algo distinto da genialidade. Tampouco tem a ver
com desatino ou tolice. A sabedoria é, sim, um certo tipo de felicidade. Mas
nada tem a ver com a felicidade ilusória, conseguida por drogas ou pela
ignorância. A sabedoria é a felicidade dentro da verdade. É o máximo de
felicidade associado ao máximo de lucidez. Essa é a meta da filosofia. Nesse
caminho, há muitas ilusões a perder e algumas verdades desagradáveis a
confrontar. É por isso que a filosofia passa inevitavelmente pela angústia,
pela dúvida, pela desilusão. Continua sendo apenas um caminho. Porque o destino
é uma felicidade autêntica. É isso que chamamos de sabedoria.
E a
infelicidade, como ela se revela na vida real?
Comte-Sponville - Quando toda alegria parece
impossível, quando acordamos pela manhã sem outra perspectiva a não ser a
angústia, a tristeza ou o sofrimento... Eu vivi isso. Perdi duas das pessoas
que mais amava no mundo: minha única filha na época e, em seguida, minha mãe.
No início, só há o horror e as lágrimas. Com o tempo, a paz retorna, em seguida
a alegria. E por isso digo, por oposição, que a felicidade também existe. Como
é bom deixar de se sentir infeliz!
Como a
filosofia pode ajudar alguém a viver feliz?
Comte-Sponville - Filosofar é pensar sua vida e viver
seu pensamento. Em que medida isso pode nos aproximar da felicidade? Ficando
mais perto da verdade, nós nos libertamos de várias ilusões e esperanças tolas.
Isso nos ajuda a amar a vida mais do que amar a felicidade, a verdade mais do
que a fantasia, o amor mais do que a fé ou a esperança. Os maiores mestres são,
a meu ver, Epicuro (de Samos, filósofo grego dos séculos IV e III a.C.), (Michel)
Montaigne (filósofo francês do século XVI) e (Baruch) Spinoza (filósofo
holandês do século XVII). Quanto a mim, já me expliquei longamente em meu
Tratado do Desespero e da Beatitude e, de maneira mais resumida, em Felicidade,
Desesperadamente.
A
religião pode dar ilusão de felicidade? A fé seria um antídoto à tristeza?
Comte-Sponville - Isso depende de quem tem fé. Se você
acredita que a felicidade eterna o aguarda após a morte, isso pode ajudar a
suportar em vida a infelicidade... Como sou ateu, vejo nisso mais uma armadilha
que uma tentação. Não vou esperar morrer para ser feliz. O fato de, para mim,
nada existir após a morte é um motivo a mais para viver da melhor maneira
possível. É o que chamo de desespero alegre. Existe uma vida antes da morte, e
é a única que (me) importa.
A
"felicidade que nasce da verdade" foi recomendada por Santo Agostinho
(filósofo e teólogo que viveu nos séculos IV e V) como o caminho para a
beatitude. Para um ateu como o senhor, o conceito de beatitude tem outro significado?
Comte-Sponville - Não. A definição me convém
perfeitamente. Mas não é um caminho para a beatitude. É a própria beatitude.
Ela é a felicidade dentro da verdade e, portanto, também dentro da eternidade.
Toda verdade é eterna. Mas não é uma eternidade após a morte. É a eternidade
presente ou o presente eterno. Spinoza, nesse aspecto, é mais esclarecedor que
Santo Agostinho.
O
senhor se tornou ateu aos 18 anos, após uma confessada desilusão com Deus.
Disse, na época: "Uma das raras certezas que eu tenho é que Deus jamais me
disse algo". Poderia nos contar como se passou sua conversão ao ateísmo?
Comte-Sponville - Foi em 1970. Por que perdi a fé? Sem
dúvida, por duas razões principais: a política e a filosofia. A paixão
política, naquela época, era tudo. Comparando com a política, a religião me
despertava bem menos interesse. Deus deixou de me atrair. Em seguida, parei de
crer. Simultaneamente, descobri a filosofia, nos meus estudos, e os argumentos
em favor do ateísmo me pareciam definitivamente mais fortes que os argumentos
pró-religião. Continuo a refletir sobre o tema. Eu me explico melhor em meu
livro mais recente, que acaba de ser editado na França: O Espírito do Ateísmo
(Introdução a uma Espiritualidade sem Deus).
Os
céticos não seriam mais suscetíveis à depressão ou ao tédio?
Comte-Sponville - Freud é, sem dúvida, quem melhor
respondeu a essa questão. A depressão ou a melancolia, escreveu ele, "é a
perda da capacidade de amar". Não é a fé que falta aos deprimidos, é o
amor.
O
senhor diz que, para o filósofo, uma tristeza autêntica vale mais que uma
felicidade mentirosa. Não seria perigoso consagrar o coração à melancolia?
Comte-Sponville - O filósofo prefere a alegria à
tristeza, como todo mundo. Mas ele coloca a verdade num patamar mais alto que
todo o resto. Isso não quer dizer que seu objetivo seja a infelicidade. É
preciso sempre ter coragem para enfrentar a melancolia ou a tristeza quando
surgem. É o único caminho.
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Fonte: http://revistaepoca.globo.com/
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