Por Fernanda Villas Boas
O que veremos analiticamente em 'Invenção de Orfeu' é o começo da simbolização dos desejos inconscientes, que se colocam entre o desejo e a demanda. Por exemplo, os fantasmas da vida intra-uterina, de cena primitiva, de castração e sedução. Muitas vezes, é difícil separar os fantasmas puramente imaginários daqueles ligados a acontecimentos vividos. Se há acontecimentos reais que marcaram o psiquismo, eles passam por uma profunda manipulação imaginária. O que Freud pediu, em vão, à linguagem ele teria podido pedir de alguma forma à poesia. Certas formas de poesia aparentam-se ao sonho e sugerem o mesmo modo de estruturação, como em 'Invenção de Orfeu', que introduz nas formas normais da linguagem essa suspensão de sentido que o sonho projeta em nossas atividades, mas então é paradoxalmente no surrealismo poético, que Freud não compreendeu, que poderia ter encontrado o que tanto procurou erradamente na linguagem codificada e organizada. Após este discurso teórico, voltemos à imagem central da evocação da infância:
Era um cavalo feito em chamas Alastrado de insânias esbraseadas; pelas tardes sem tempo, ele surgia e lia a mesma página que eu lia.
Depois lambia os signos e assoprava a luz intermitente destronada, então a escuridão cobria o rei Nabucodonosor que eu ressonhei. Bem, eu sabia que ele não sabia a lembrança do sonho subsistido e transformado em musas sublexadas.
Bem se sabia: a noite que o cobria era a insânia do rei já transformado no cavalo de fogo que o seguia (Canto IV). Dentro da exploração sistemática dos sinais recebidos pelo poeta, o narrador expressa seu ego inconsciente. A “Fundação da Ilha”, que está no capítulo I, significa o nascimento do homem que vai em busca de si próprio ao longo da narrativa. O que existe, pois, logo no início, é um processo de regressão desviado através de imagens associativas, ou paradigmáticas no decorrer do livro, que é também meu mundo. Desse leite profundo emergido do sonho, coagulou-se essa ilha e essa nuvem e esse rio e essa sombra bulindo e esse reino e esse pranto e essa dança contínua amortalhada e pia.
Dois sintagmas não proeminentes desta estrofe, uma vez que expressa dentro de uma linguagem metafórica o impulso da criança, expresso por “emergido” e todo o processo do parto em si, “coagulou-se”; “bulindo” expressa precisamente o movimento da criança ao sair do útero materno. Desta sorte, o poeta nasce como uma “ilha” e deve daí em diante cantar a sua história desde a infância, até a sua fase adulta. Poderíamos dividir a obra em três momentos dialéticos a serem estudados dentro da estrutura. Estes são a repressão ligada ao desejo, a busca incessante de si próprio e a realização pessoal ou vitória sobre passadas angústias.
No Canto I da 'Invenção de Orfeu' notam-se momentos de tateio, como se o autor andasse em busca de uma expressão própria e adequada que ainda se lhe furta. O narrador épico é o objeto da narrativa. O narrador deixa de vigiar-se, às vezes, e é arrastado por regressões à infância que se tornará um dos temas principais, pois esta constitui o ponto crucial de todo o discurso poético. O poeta se abandona, se perde, sentindo-se incapaz de recomeçar, até quando reconstrói um novo ser, através de uma linguagem nova ao longo de todos os momentos dialéticos do poema. A travessia é escura e amedrontadora. Trataremos das imagens recorrentes, que dizem respeito aos temas principais. Todo o nosso trabalho, contudo, deverá ser visto sob um só ângulo, e este será eventualmente, o ângulo psicanalítico da obra, pois senão correríamos o perigo de perder-nos nas outras leituras, que naturalmente serão mencionadas, mas que não teremos interesse em aprofundar, dado que o ângulo que escolheremos se nos afigura o mais revelador. O poema nasce de uma angústia de ser. E é desta angústia insaciável que ele vai-se tornando independente em cada Canto. Não há também um fim determinado. Podemos voltar à 'Invenção de Orfeu' de várias maneiras, num movimento cíclico, com significados novos em cada leitura. No primeiro movimento, encontramos a regressão. A “ilha”, é o signo escolhido para representar a viagem interior de Lima. Será portanto um referente mais forte que outros. A “ilha” é o seu sonho em termos especiais e temporais, que o manterá conexo. A “ilha”, é o nascimento para o futuro. O resto, é tempo morto, pré-estabelecido e o qual ele vai sempre questionar e criticar através de sua linguagem subversiva e transparente, i.e., sem máscaras já utilizadas, sem nada. É o início. Um barão assinalado meu brasão, sem gume e fama cumpre apenas o seu fado: amar, louvar sua dama, dia e noite navegar, que é de aquém e de além-mar a ilha que busca o amor que ama.
Este início de viagem, é o canto do anti-herói épico que cantará com mais vigor até o último Canto. Estará sempre contra os princípios e valores padronizados. Deverá nascer para a Terra e contar sua história, dentro de uma ilogicidade do pensamento onírico, que se fará bastante lógica através do discurso poético. Verto-me em ilha, vejo-me nascer, retiro dessa ilharga verdadeira a minha perdição por companheira.
A sua existência aflora entre os aspectos geográficos de Maceió, que por sua vez é quase uma ilha, uma vez que está cercada por duas lagoas e o mar. O carinho aos nativos, à simplicidade das coisas também está presente dentro desta busca do Início. Indícios de canibais sinais de céu e sargaços, aqui um mundo escondido geme num mundo perdido
Apela para o renascimento do ar parado e sufocante da “ilha”. O poeta quer poesia viva e é através daquela que vai renovar-se prosseguindo viagem. Contudo, como um anti-herói sente-se impotente e atado a si próprio, sem chaves, sem rumo certo, nem armas para lutar. Sente-se frágil em face ao mundo e à viagem que vai executar, com os olhos de uma criança. Quer descobrir quem é, para daí ter uma voz própria, cantar meu canto. Daí, a ambiguidade de vários temas, como falo, dentro da linguagem lacaniana, que representa o primeiro desejo da criança. Lima, o usa com significado duplo, assim como o faz com outros temas. Um exemplo de falo, estará: Embora: escutai-me que eu falo com a voz inata que diz que a voz não é essa que fala por mim, talvez minha fala saída de ti (Canto VI)
A partir do momento que descreve o mundo com os olhos de uma criança, faz uma viagem à vida intra-uterina, superpondo com bastante lógica, as sensações, desde a saída do útero, ao primeiro choro, e todo o processo infantil.
Em que útero fundo este ovo cabe no regaço alcançado em que te vês?
O processo metonímico vai-se tornando cada vez mais constante, interligando os versos musicalmente. Um grito de liberdade preso na garganta. Tentaremos interrelacionar inúmeras imagens que dizem respeito à Voz e à Fala. É fácil descobri-las se nos prendermos a uma leitura ligada ao tema da Infância. Também, dentro deste tema, a necessidade de criar Orfeu. Sua música, seu sentido pleno de amor, suas viagens subterrâneas, em busca de Eurídice. A criação de um Orfeu, não tão heróico-épico, mas o Orfeu, homem, cujo principal objetivo será o de encontrar sua companheira. Aí está constituída a Invenção, aí está todo um processo criativo, dito através de contínuas associações de pensamento, cujo eixo principal recai metáfora maior: a busca de si próprio. Sua voz, terá que ser ouvida, mas para isto serão necessários caminhos árduos e escuros. Aparições, medos dentro de corredores infindos. Dentro da linguagem psicológica, sabemos que é através da fala que a pessoa se pronuncia em sua totalidade, o que enfatiza mais uma vez o processo de regressão. É também através da linguagem onírica que se expressa sem censura o desejo do Outro. Em outras palavras, a criança quer ser o desejo de sua mãe, com o rival do seu pai, dentro da linha edipiana. Assim, virão uma série de imagens poemáticas, ligadas à necessidade incestuosa da mãe, as zonas erógenas, o desejo suplantado por vários objetos substitutos na demanda de um novo início, dentro da ordem natural do crescimento humano.
Tudo é memória, meu ser não houve nem amanhece; contudo, nunca ninguém nos ouve.
A motivação fônica não é feita diretamente. Há sempre um decodificador que a intercala num conceito intermediário, semi-material, semi-abstrato, que funciona como uma chave dentro da linguagem associativa, operando a passagem de certa forma desmultiplicada, do significante para o significado. O eixo metafórico-metonímico é a base para a compreensão destas associações. Os cinco sentidos são evocados e se interligam em belas imagens sinestésicas, formando uma gama de sentido que se opõem e se completam: Preâmbulos sempre constantes, depois choro nos mirantes, e a privação dos sentidos, e esse tatear de pesquisas, e essa tortura espacial, e essa unidade da dor, e essa roca no silêncio, e essa unidade sem fim. (I _ XXIII).
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Fonte: http://obviousmag.org/. Título original: 'Orfeu e o Desejo Inconsciente'.
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