sábado, 9 de janeiro de 2016

A propósito do amor: Camões

Os Amantes, de René Magritte 

Por R. B. Côvo

Não começarei a prosa por qualquer similitude de gorjeios ou, tampouco, igualando os fados eternamente consternados dos que amam, pois me enfadam as comparações, e ainda mais as valorações improfícuas, desprovidas da magnânima objetividade. Não arriscarei, também, qualquer juízo quanto à gênese (as gêneses são tão-só o ponto de partida), nem avançarei, tacanhamente, princípios ou teorias que pretendam transformar-se em enfadonhas leis gerais (o amor escapa, sabê-lo-ão os amantes, a quaisquer definições e aprisionamentos conjeturais). Falarei de amor (Oh, o amor!) e, em amor, falarei de Camões, excelso filho de Bragi.
Camões, aquele cujo amor não se cura em um só dia, porque com tal porfia cresce, e cuja amada, que com os olhos todo o roubou, fingindo está essa dor não provocou. Camões, o que se vingará “quando [vos] vir queixar porque deixastes/ Ir-se a [sua] alma neles abrasando”; o de olhos magoados, em face de a não ver, pois “Tudo que a rara natureza/ Com tantas variedades nos oferece/ [...] está, se não [a vê, magoando-o]". Camões, a quem, sem ela, tudo o enoja e aborrece, e, de tal forma, que nas mores alegrias perpetuamente passa mor tristeza.
“Ferida que dói e não se sente”, “um contentamento descontente”... Desde o início, o amor do poeta é sofrido. Bipartido, é físico e platônico, ao alcance dos olhos e distante. Vivo, como “fogo que arde sem se ver”, e além da vida. Pois que seu amor resiste à morte, à perda imensurável da amada. Seu amor é trágico (um naufrágio, literalmente), sem-razão (Oh, poeta, que tão ingenuamente buscas na paixão um sentido!), tão sem-razão que questiona: “Oh penetrante seta de Cupido, que queres?”.
Desafortunado, que padece das agruras do destino, da má Fortuna e mau acaso da vida (Ah, minha Dinamene! Assim deixaste/ Quem nunca deixar pôde de querer-te), é um amor em perfeita relação com a natureza, em que “a violeta mais bela que amanhece/ [...] por mais bela, Violante, te obedece”. Idealizado, cobre a amada de poderes sobrenaturais, cristaliza-a, confere-lhe as maiores qualidades... Mas, sublimado, é, no entanto, frustrado e irrealizado, pois a amada partiu “tão cedo desta vida, descontente,/[Repousando] lá no Céu eternamente/ [Vivendo o poeta] cá na terra sempre triste”.
O amor de Camões “é um não querer mais que bem querer”, é um amor que ultrapassa e suplanta o indivíduo. É altivo. É um amor que vira “a roda à esperança, que corria/Tão ligeira que quase era invisível”; um amor pelo qual “Converteu-se-me em noite o claro dia.”
Não é, pois, ditoso esse amor camoniano, tampouco as horas e os dias em que os delicados olhos da amada o feriam. É orgulhoso do maltrato, pois “por mais que vos veja maltratar-me,/ Já me fico logrando desta glória/ De ver que tendes tanta de matar-me”. Mais do que isso, é manhoso: nega e jura no seu dourado arco, e o poeta crê-o. “A mão tenho metida no meu seio/ E não vejo os meus danos, às escuras;/ Porém perfias tanto e me asseguras,/ Que me digo que minto e que me enleio./Não somente consinto neste engano,/ Mas inda to agradeço, e a mim me nego/Tudo o que vejo e sinto de meu dano.”
O amor de Camões “é brando, é doce e é piedoso”, o poeta mesmo o diz. E “quem o contrário diz não seja crido,/ Seja por cego e apaixonado tido,/ E aos homens, e inda aos deuses, odioso.// Se males faz Amor, em mim se vêem;/ Em mim mostrando todo o rigor,/ Ao mundo quis mostrar quanto podia.// Mas todas as suas iras são de amor;/ Todos estes seus males são um bem,/ Que eu por outro bem não trocaria.”.
Seu amor é um amor de desencontros, de desventuras, de frustrações. Está acima da própria morte e é, ao mesmo tempo, só por esta solucionável. Busca a conciliação entre o físico e o espiritual, entre o real e o sobrenatural. É um amor paradoxal, que encontra satisfação nas suas contrariedades e provações. É um amor difícil. É servil e cortês. Humilde e submisso. É um amor resignado: “o mundo não era digno dela,/ Por isso mais na terra não esteve;/ Ao céu subiu, que já se lhe devia”.
O amor é extremado. O poeta a um tempo chora e ri, espera e teme, quer e aborrece, alegra e entristece, confia e desconfia... É um amor que leva ao maior dos despojamentos, à abdicação de si mesmo. Tudo, o Universo age em função da que ama. E tudo é inferior a ela. O tempo e os espaços. Ai, “aqueles claros olhos que chorando/ Ficavam, quando deles me partia,/ Agora que farão? Quem mo diria?/ Porventura estarão em mim cuidando?”.
Seus olhos – os do poeta - não cansam de chorar tristezas, que não cansam de cansá-lo; “pois não abranda o fogo em que [abrasá-lo] pôde quem ele jamais [pôde] abrandar”; seus pensamentos não se contentam de ter quem os tem tão descontente; sua “pena é sem medida,/ Ali triste [será] em dias ledos/ E dias tristes [o] farão contente”; seu desejo é o de “ser vosso, e só de ser vosso me arreio”; sua vida, a “mais desgraçada que jamais se viu!”; e o seu amor o que “entende que quanto mais [lhe] paga, mais [lhe] deve”.
Enfim, Camões, como Berowne, resolveu, entre tantas possibilidades na vida, “amar, escrever poesia [...], suspirar [...], cortejar, gemer” (SHAKESPEARE, p. 55, 2013). Seu amor “é cuidar que se ganha em se perder;// É querer estar preso por vontade;/ É servir a quem vence, o vencedor;/ É ter com quem nos mata lealdade”, e encerra em si mesmo uma questão: “Mas como causar pode seu favor/ Nos corações humanos amizade,/ Se tão contrário a si é o mesmo amor?”.
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Fonte: lounge.obviousmag.org. Título original: 'O Amor segundo Camões'. 




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