Os Amantes, de René Magritte |
Por R. B. Côvo
Não
começarei a prosa por qualquer similitude de gorjeios ou, tampouco, igualando
os fados eternamente consternados dos que amam, pois me enfadam as comparações,
e ainda mais as valorações improfícuas, desprovidas da magnânima objetividade.
Não arriscarei, também, qualquer juízo quanto à gênese (as gêneses são tão-só o
ponto de partida), nem avançarei, tacanhamente, princípios ou teorias que
pretendam transformar-se em enfadonhas leis gerais (o amor escapa, sabê-lo-ão
os amantes, a quaisquer definições e aprisionamentos conjeturais). Falarei de
amor (Oh, o amor!) e, em amor, falarei de Camões, excelso filho de Bragi.
Camões,
aquele cujo amor não se cura em um só dia, porque com tal porfia cresce, e cuja
amada, que com os olhos todo o roubou, fingindo está essa dor não provocou.
Camões, o que se vingará “quando [vos] vir queixar porque deixastes/ Ir-se a
[sua] alma neles abrasando”; o de olhos magoados, em face de a não ver, pois
“Tudo que a rara natureza/ Com tantas variedades nos oferece/ [...] está, se não
[a vê, magoando-o]". Camões, a quem, sem ela, tudo o enoja e aborrece, e,
de tal forma, que nas mores alegrias perpetuamente passa mor tristeza.
“Ferida que dói e não se
sente”, “um contentamento descontente”... Desde o início, o amor do poeta é
sofrido. Bipartido, é físico e platônico, ao alcance dos olhos e distante.
Vivo, como “fogo que arde sem se ver”, e além da vida. Pois que seu amor
resiste à morte, à perda imensurável da amada. Seu amor é trágico (um
naufrágio, literalmente), sem-razão (Oh, poeta, que tão ingenuamente buscas na
paixão um sentido!), tão sem-razão que questiona: “Oh penetrante seta de
Cupido, que queres?”.
Desafortunado,
que padece das agruras do destino, da má Fortuna e mau acaso da vida (Ah, minha
Dinamene! Assim deixaste/ Quem nunca deixar pôde de querer-te), é um amor em
perfeita relação com a natureza, em que “a violeta mais bela que amanhece/
[...] por mais bela, Violante, te obedece”. Idealizado, cobre a amada de
poderes sobrenaturais, cristaliza-a, confere-lhe as maiores qualidades... Mas,
sublimado, é, no entanto, frustrado e irrealizado, pois a amada partiu “tão
cedo desta vida, descontente,/[Repousando] lá no Céu eternamente/ [Vivendo o
poeta] cá na terra sempre triste”.
O
amor de Camões “é um não querer mais que bem querer”, é um amor que ultrapassa
e suplanta o indivíduo. É altivo. É um amor que vira “a roda à esperança, que
corria/Tão ligeira que quase era invisível”; um amor pelo qual “Converteu-se-me
em noite o claro dia.”
Não é, pois, ditoso esse
amor camoniano, tampouco as horas e os dias em que os delicados olhos da amada
o feriam. É orgulhoso do maltrato, pois “por mais que vos veja maltratar-me,/
Já me fico logrando desta glória/ De ver que tendes tanta de matar-me”. Mais do
que isso, é manhoso: nega e jura no seu dourado arco, e o poeta crê-o. “A mão
tenho metida no meu seio/ E não vejo os meus danos, às escuras;/ Porém perfias
tanto e me asseguras,/ Que me digo que minto e que me enleio./Não somente
consinto neste engano,/ Mas inda to agradeço, e a mim me nego/Tudo o que vejo e
sinto de meu dano.”
O
amor de Camões “é brando, é doce e é piedoso”, o poeta mesmo o diz. E “quem o
contrário diz não seja crido,/ Seja por cego e apaixonado tido,/ E aos homens,
e inda aos deuses, odioso.// Se males faz Amor, em mim se vêem;/ Em mim
mostrando todo o rigor,/ Ao mundo quis mostrar quanto podia.// Mas todas as
suas iras são de amor;/ Todos estes seus males são um bem,/ Que eu por outro
bem não trocaria.”.
Seu
amor é um amor de desencontros, de desventuras, de frustrações. Está acima da
própria morte e é, ao mesmo tempo, só por esta solucionável. Busca a
conciliação entre o físico e o espiritual, entre o real e o sobrenatural. É um
amor paradoxal, que encontra satisfação nas suas contrariedades e provações. É um
amor difícil. É servil e cortês. Humilde e submisso. É um amor resignado: “o
mundo não era digno dela,/ Por isso mais na terra não esteve;/ Ao céu subiu,
que já se lhe devia”.
O
amor é extremado. O poeta a um tempo chora e ri, espera e teme, quer e
aborrece, alegra e entristece, confia e desconfia... É um amor que leva ao
maior dos despojamentos, à abdicação de si mesmo. Tudo, o Universo age em
função da que ama. E tudo é inferior a ela. O tempo e os espaços. Ai, “aqueles
claros olhos que chorando/ Ficavam, quando deles me partia,/ Agora que farão?
Quem mo diria?/ Porventura estarão em mim cuidando?”.
Seus olhos – os do poeta -
não cansam de chorar tristezas, que não cansam de cansá-lo; “pois não abranda o
fogo em que [abrasá-lo] pôde quem ele jamais [pôde] abrandar”; seus pensamentos
não se contentam de ter quem os tem tão descontente; sua “pena é sem medida,/
Ali triste [será] em dias ledos/ E dias tristes [o] farão contente”; seu desejo
é o de “ser vosso, e só de ser vosso me arreio”; sua vida, a “mais desgraçada
que jamais se viu!”; e o seu amor o que “entende que quanto mais [lhe] paga,
mais [lhe] deve”.
Enfim,
Camões, como Berowne, resolveu, entre tantas possibilidades na vida, “amar,
escrever poesia [...], suspirar [...], cortejar, gemer” (SHAKESPEARE, p. 55,
2013). Seu amor “é cuidar que se ganha em se perder;// É querer estar preso por
vontade;/ É servir a quem vence, o vencedor;/ É ter com quem nos mata
lealdade”, e encerra em si mesmo uma questão: “Mas como causar pode seu favor/
Nos corações humanos amizade,/ Se tão contrário a si é o mesmo amor?”.
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Fonte: lounge.obviousmag.org. Título original: 'O Amor segundo Camões'.
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