Aí abaixo, um texto da já aqui apresentada Ana Marcarini, que se inicia com uma fina ironia, lembra o mundo descrito por Saramago em 'Ensaio sobre a Cegueira', trata da questão da socialização com a perspicácia raramente presente nos enfoques histórico-sociológicos e deambula pelo que atribui sentido à ação humana. Vale a leitura!
Por Ana Marcarini
A
nossa obstinada busca pela “paz interior” nos garantirá a refinada capacidade
de nos blindarmos dos perigos do mundo e do maior perigo de todos: sermos
incluídos na dor do outro. Sairmos da confortável situação de “espectador” para
a arriscada tarefa de “personagem”, é algo que nos assusta demais. Esse esforço
de preservação pode nos render uma ilusória sensação de estarmos protegidos das
tragédias alheias. Mas, nos cobrará um alto tributo: seremos ilhas humanas
cercadas de indiferença por todos os lados. A indiferença é uma atitude
deliberada e cruel, travestida de distanciamento involuntário. O fato de não
sermos nós os causadores do sofrimento, não nos absolve; não nos concede o
benefício da cegueira emocional. Observar o sofrimento alheio seja ele confesso
ou não, e nem ao menos nos dispormos a encontrar uma singela forma de
minimizá-lo, nos iguala àquele que o causou. Ou não?!
A
mínima disposição de sairmos do modo automático, talvez nos ajude a ter olhos
capazes de enxergar além do que é óbvio ou visível. Desde o momento em que
saímos de nossas camas (e nesse caso é importante, mas não indispensável, que
tenhamos uma, com um teto confortável sobre ela mais as garantias mínimas de
sobrevivência!), até o momento em que retornamos a ela no final do dia, fazemos
inúmeras intersecções com outras pessoas, conhecidas ou não. No entanto, o fato
é que somos especialistas em transformar o que seria uma intersecção num
tangenciamento. Tomamos tanto cuidado para não nos esbarrarmos que ficamos
assim: linhas que se tocam, mas não se cruzam. Somos seres isolados,
encapsulados, encaixotados.
Imaginemos,
então, que a partir da próxima manhã tomássemos a arriscadíssima decisão de
sairmos da tangente. Abriremos os olhos ao raiar do dia e sairemos de nossas
confortáveis camas com a legítima intenção de mantê-los abertos, não apenas
para ver, mas para olhar e, sobretudo, enxergar o nosso entorno. Quem sabe, com
essa corajosa decisão, não acabemos por abrir também os nossos ouvidos e, até,
quem sabe as nossas mentes e corações. Assim, transformados em seres capazes de
perceber o outro, abriremos mão da nossa redoma de ignorância emocional e uma
nova categoria de relação humana se apresentará diante de nossos maravilhados e
incrédulos olhos. Imagine sermos capazes de enxergar um possível olhar
preocupado da pessoa que nos serve o café na padaria; ouvir e ser tocado por um
eventual suspiro de um colega que trabalha ao nosso lado (como é mesmo o nome
dele?); perceber e se importar com a postura acanhada daquela outra pessoa que
divide o espaço conosco no curso de inglês. Imagine sermos ousados a ponto de
nos importarmos com isso, de nos envolvermos com isso, de sairmos da nossa zona
de conforto para tocar a zona de desconforto do outro.
As
relações humanas, nesse nosso maravilhoso mundo moderno, são pautadas no
individualismo e na perda do conceito de coletividade. Entretanto, existem
inúmeros insurgentes grupos de pessoas que nadam contra essa corrente e fazem
parte de uma estranha categoria que arranja tempo, disposição e desejo para
importar-se com questões que não afetam diretamente suas vidas.
Fundada
por Wellington Nogueira em 1991, a ONG Doutores da Alegria, foi inspirada no
trabalho do Clown Care Unit, criada por Michael Christensen, diretor do Big
Apple Circus de Nova York. Wellington integrou a trupe de palhaços em 1988,
satirizando as rotinas médicas e hospitalares mais conhecidas. Ao retornar ao
Brasil, decidiu implantar um programa semelhante. Vinte e quatro anos depois, a
ONG já realizou mais de um milhão de visitas a crianças hospitalizadas, seus
acompanhantes e profissionais de saúde. A base do trabalho é o resgate do lado
saudável da vida e todos os seus projetos se utilizam da arte para
potencializar as relações. O trabalho da ONG, gratuito para os hospitais, é
mantido por recursos financeiros obtidos através de patrocínio, doações de
empresas e pessoas e por meio de atividades que geram recursos, como palestras
e parcerias com empresas.
Em
1997, um grupo de jovens começou a trabalhar pelo sonho de superar a situação
de pobreza em que viviam milhões de pessoas. O sentido de urgência em
assentamentos precários os mobilizou massivamente a construir moradias de
emergência em conjunto com as famílias que viviam em condições inaceitáveis e a
focar sua energia em busca de soluções concretas para os problemas que as
comunidades enfrentavam a cada dia. Esta iniciativa se converteu em um desafio
institucional que hoje é compartilhado em todo o continente. Desde o início no
Chile, seguido por El Salvador e Peru, TETO empreendeu uma expansão e após 18
anos mantém operação em 19 países da América Latina: Argentina, Bolívia,
Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
TETO é uma organização presente na América Latina e Caribe, que busca superar a
situação de pobreza em que vivem milhões de pessoas nas comunidades precárias,
através da ação conjunta de seus moradores e jovens voluntários. TETO tem a
convicção de que a pobreza pode ser superada definitivamente se a sociedade em
conjunto reconhecer que este é um problema prioritário e trabalhar ativamente
para resolvê-lo.
O
trabalho voluntário é uma forma de assumirmos o nosso papel de ser individual
que integra e interage com a sociedade; é oferecermos o nosso empenho e
trabalho para revertermos situações de injustiça social, emocional e moral.
Quando nos dispomos a abraçar uma causa que não tem nada relacionado
diretamente com nossas questões pessoais, damos inúmeros passos à frente na
trajetória da nossa efêmera vida. No entanto, não é indispensável estarmos
engajados em grupos ou coletividades unidas por este ou aquele ideal. Se
estivermos, melhor! Mas, se formos capazes de fazer algo muito mais simples e
alcançável para todos, já estaremos no início do caminho; é um excelente
primeiro passo. Diante da dor, da insegurança, da fragilidade de qualquer
pessoa, próxima ou nem tanto, NUNCA diga “Se cuida!” ou “Fica bem!”. Essas
pequenas expressões, tão corriqueiras, ditas automaticamente porque são
socialmente aceitas, revelam uma triste superficialidade. E o cultivo dessa
postura tão ausente e superficial pode nos custar muito caro. Pode tornar-nos
seres irreversivelmente insensíveis; incapazes de nos conectar com o outro. Em
um médio espaço de tempo, cegos ao que não nos atinge diretamente; e, logo
mais, cegos de nós mesmos.
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Fonte: http://lounge.obviousmag.org/. Título original "Se Cuida!" "Fica Bem!" E a Arte de Não se Envolver.
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