quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

"Muitas perguntas que exigem respostas de 'sim' ou 'não' só podem ser respondidas por idiotas ou escravos"

Aí abaixo, um excelente artigo do jornalista Vandeck Santiago (Diário de Pernambuco) a propósito da cinebiografia de Dalton Trumbo. Vale a leitura, sobretudo em tempos de desinteligência e intolerância. 


Por Vandeck Santiago

Dalton Trumbo era o mais bem-sucedido roteirista de cinema dos EUA quando de repente teve que responder a esta pergunta, acabou sendo condenado à prisão e viu sua carreira naufragar. Passou 11 meses na cadeia, ao sair transferiu-se com a família para o México e passou 12 anos sem poder escrever usando o próprio nome. Em termos internacionais é um dos episódios mais emblemáticos dos exageros do anticomunismo. A história de Trumbo deve tornar-se popular nos próximos meses: a cinebiografia dele terá lançamento nacional nos EUA no próximo dia 17, e no Brasil a estreia está prevista para fevereiro. O ator principal, Bryan Cranston, acaba de ser indicado ao Oscar.
A pergunta sobre comunismo dirigida a Trumbo não foi feita a ele no meio da rua, após o escritor sair com amigos de um restaurante. Também não surgiu da iniciativa de um grupo minoritário adepto dos gritos de “Vá pra Cuba!” ou “Vá pra Rússia!”. Surgiu como fruto de um ambiente de intolerância e anticomunismo que se criara nos EUA ao fim dos anos 1940, ensejando perseguições políticas e desrespeitos aos direitos civis de cidadãos norte-americanos. Aconteceu exatamente em 1947, durante audiência no Comitê de Atividades Antiamericanas, na Câmara dos Deputados. A pergunta, literalmente, foi esta:

- O senhor é, ou foi, membro do Partido Comunista?

Trumbo considerava que fazer este tipo de pergunta é que era ser antiamericano.

Para ele, o governo federal não tinha autoridade para inquiri-lo sobre sua filiação política ou suas crenças; e quanto ao Congresso, esse tipo de questão simplesmente não lhe dizia respeito. Um homem livre não poderia submeter-se resignadamente a esse tipo de interrogatório. Daí que ele respondeu: 
- Muitas perguntas que exigem respostas de “sim” ou “não” só podem ser respondidas por idiotas ou escravos.

Os interrogadores do Comitê insistiram, e Trumbo continuou sem lhes responder “sim” ou “não”. Ele pertencia sim ao Partido Comunista americano, mas não tinha que prestar contas disso a um comitê ou a quem quer que seja. Ao final, foi acusado de desrespeito ao Congresso, e preso por isso. Hollywood cedeu e fez as chamadas “listas negras” (Blacklists), com os nomes de suspeitos de ligações com o comunismo. Até 1957, quando chega ao fim esta fase de caça aos comunistas nos EUA (período conhecido como Macartismo, nome inspirado em seu principal líder, o senador conservador Joseph McCarthy), foram banidos 325 roteiristas, diretores, atores, fotógrafos, técnicos de som, figurinistas e cenógrafos.
Mas em períodos onde imperam as pequenezas, sempre há também gestos de grandeza. No caso de Trumbo, ele foi alvo de um boicote dos estúdios, sendo impedido de escrever roteiros em seu próprio nome - então começou a escrevê-los sob pseudônimo ou então colocando o nome de colegas (que aceitavam o ardil). Ele ganhou um Oscar em 1953 com um roteiro que escreveu e foi assinado por um colega (A princesa e o plebeu/Roman Holiday) e outro em 1956, sob pseudônimo (Arenas sangrentas/The Brave One).
O maior gesto de grandeza partiu do ator Kirk Douglas. Ator principal de Spartacus (1960), ele exigiu que Trumbo assinasse com o próprio nome o roteiro do filme, o que aconteceu. O gesto marcou o fim do boicote e das listas negras. A partir daí Trumbo e outros banidos puderam voltar a assinar suas obras com o próprio nome. Em 1971 ele escreveu e dirigiu Johnny vai à guerra (Johnny got his gun), baseado em livro de sua própria autoria. É o filme mais impactante que já vi em toda minha vida; o assisti nos anos 1980, numa sessão do antigo cinema da AIP (Associação de Imprensa de Pernambuco), na Av. Dantas Barreto. Tão marcante foi vê-lo que quando a internet e seus sites de conversação surgiram nos anos 1990 meu endereço de e-mail e nick sempre lhe faziam referência (trumbo@uol.com.br, ‘Trumbo’), e os mantenho até hoje.
O filme conta a história de um jovem que se alista para a guerra (a Primeira), é atingido por uma bomba e perde braços, pernas, boca, nariz e olhos. Fica um tronco sobre uma cama. Os médicos acham que ele sobrevive vegetativamente, e o mantêm vivo apenas para estudo. Mas Johnny escuta e sente. Desesperadamente, tenta comunicar-se batendo com a cabeça no travesseiro. Os médicos pensam que são espasmos, mas uma enfermeira percebe que ele está comunicando-se via Código Morse, e suplicando “Por favor, me matem”.
Em boa hora a história da vida de Dalton Trumbo (1905-1976) volta a ser destaque. É uma fonte de inspiração apropriada para vermos os danos que podem ser causados pela intolerância, e para que os intolerantes vejam que, no longo prazo, a imagem que vai ficar deles é a de vilões.
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Fonte: Diário de Pernambuco, edição do dia 12 de janeiro de 2016. Título original do artigo: 'Você é, ou foi, comunista?'

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