Por
Leont Etiel
À espreita dos ventos por vir, o lugar sempre
esteve ali, desde que o mundo é mundo. Se a pressa tende a fazer ver a vida
apenas como um amontoado de tragédias, em Cruz da Serra o devagar soprado na
brisa dos dias é impulso para a arte de pensar que, mais do que o trágico,
enxerga nas desventuras do mundo uma sucessão de comédias. Equilíbrio de estado
e tranquilidade incondicionais aos relógios. Terminat hora diem; terminat auctor opus – a hora termina o dia;
[mas] o autor termina a obra.
As gentes primeiras do lugar eram gentes, por
assim dizer, ‘em estado de natureza’. Levantaram-se do chão como as safras e as
árvores, como os animais que percorrem os campos e os pássaros que voam por
sobre eles. Levantaram-se sem resignação, com esperança, dado que, do chão, se
quer o alimento e, por último, só se aceita o sepulcro.
É certo que o mundo nunca está contente, mas se
não há resquícios de sentir e de desejar, é de se supor que se está em estado
de perecimento, mesmo vivo continuando-se. Em Cruz da Serra, o que nunca faltou
foi transpiração de sentir no deambular dos seus cenários. Paisagens, eis o que
sempre teve, que de tanto existirem não findam, por muito que o resto dos seus tempos
primeiros lhe falte. Por mais que
existam dias tão duros como o frio deles ou que não se tenha ar para tanto
calor, a paisagem está aí. Existindo mudando. Como disse Saramago, para as
terras alentejanas, há períodos no ano em que o chão é verde, outros amarelo, e
depois castanho, ou escuro. E também vermelho em lugares que é cor de barro ou
sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda
não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só
vem a morrer porque chegou o seu último dia. Às vezes, contudo, como na existência
em geral, pode-se passar por tanta paisagem, por tanta vida, de forma perdida,
dispersando-se e sem entender o essencial.
Se as
coisas têm que ser assim, é um assunto de alta complexidade, posto que, por essa
via, abona-se um determinismo absoluto que serve de combustível para tantas e
tantas seitas religiosas, as quais discursam sobre a vida e os céus através da
linguagem da intolerância. O que parece certo é que o nosso mundo, com seu peso
e leveza, é coberto de mares e terras, entrecortado de rios, ribeiras e
regatos, a escorrer água que vai e volta sempre ela mesma, sempre água. O peso
e a leveza, o eterno retorno. Passa-se a contabilidade dos calendários, vão-se as
gerações. Também é desse modo em Cruz da Serra. Nas curvas do tempo, o lugar
dos anos de solidão – ‘Os Cem Anos de Gabriel Garcia Marquez em qualquer lado
da América Latina.
Serra, pode ser um lugar imaginário de qualquer
um, onde, do alto reflexivo, na visualização de distantes paisagens, visitam-se
os segredos e mistérios do próprio mundo interior, onde os acontecimentos e as
lembranças (sobre)vivem para além do tempo calendarizado, com o ‘há
muito tempo’ mantendo-se como ‘o parece que foi ontem’. A hora termina o dia, mas
é o autor quem termina a obra.
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