sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Ventos do porvir: a hora termina o dia, mas é o autor quem termina a obra



Por Leont Etiel

À espreita dos ventos por vir, o lugar sempre esteve ali, desde que o mundo é mundo. Se a pressa tende a fazer ver a vida apenas como um amontoado de tragédias, em Cruz da Serra o devagar soprado na brisa dos dias é impulso para a arte de pensar que, mais do que o trágico, enxerga nas desventuras do mundo uma sucessão de comédias. Equilíbrio de estado e tranquilidade incondicionais aos relógios. Terminat hora diem; terminat auctor opus – a hora termina o dia; [mas] o autor termina a obra.
As gentes primeiras do lugar eram gentes, por assim dizer, ‘em estado de natureza’. Levantaram-se do chão como as safras e as árvores, como os animais que percorrem os campos e os pássaros que voam por sobre eles. Levantaram-se sem resignação, com esperança, dado que, do chão, se quer o alimento e, por último, só se aceita o sepulcro.
É certo que o mundo nunca está contente, mas se não há resquícios de sentir e de desejar, é de se supor que se está em estado de perecimento, mesmo vivo continuando-se. Em Cruz da Serra, o que nunca faltou foi transpiração de sentir no deambular dos seus cenários. Paisagens, eis o que sempre teve, que de tanto existirem não findam, por muito que o resto dos seus tempos primeiros lhe falte.  Por mais que existam dias tão duros como o frio deles ou que não se tenha ar para tanto calor, a paisagem está aí. Existindo mudando. Como disse Saramago, para as terras alentejanas, há períodos no ano em que o chão é verde, outros amarelo, e depois castanho, ou escuro. E também vermelho em lugares que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último dia. Às vezes, contudo, como na existência em geral, pode-se passar por tanta paisagem, por tanta vida, de forma perdida, dispersando-se e sem entender o essencial.


Se as coisas têm que ser assim, é um assunto de alta complexidade, posto que, por essa via, abona-se um determinismo absoluto que serve de combustível para tantas e tantas seitas religiosas, as quais discursam sobre a vida e os céus através da linguagem da intolerância. O que parece certo é que o nosso mundo, com seu peso e leveza, é coberto de mares e terras, entrecortado de rios, ribeiras e regatos, a escorrer água que vai e volta sempre ela mesma, sempre água. O peso e a leveza, o eterno retorno. Passa-se a contabilidade dos calendários, vão-se as gerações. Também é desse modo em Cruz da Serra. Nas curvas do tempo, o lugar dos anos de solidão – ‘Os Cem Anos de Gabriel Garcia Marquez em qualquer lado da América Latina.
Serra, pode ser um lugar imaginário de qualquer um, onde, do alto reflexivo, na visualização de distantes paisagens, visitam-se os segredos e mistérios do próprio mundo interior, onde os acontecimentos e as lembranças (sobre)vivem para além do tempo calendarizado,  com o  ‘há muito tempo’ mantendo-se como ‘o parece que foi ontem’. A hora termina o dia, mas é o autor quem termina a obra.



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