Ex-guerrilheiro e ex-preso político, Pepe Mujica governou o Uruguai sem recuar diante de temas polêmicos. E levando uma vida simples. |
Por Salvador Schavelzon (Universidade Federal de São Paulo)
O Uruguai é um
país com 3,5 milhões de habitantes, com a agricultura e a criação de gado como
atividades econômicas principais, em que se vive um ritmo calmo de uma
população madura. Seu sucesso futebolístico e as praias de veraneio trouxeram
reconhecimento. Além de Carlos Gardel, cujo nascimento é disputado com a
Argentina, músicos como Jaime Ross, Alfredo Zitarrosa e Daniel Viglietti
fizeram brilhar a música uruguaia junto ao ritmo de candombe e as murgas
(espécie de coral) de carnaval, herança afro-uruguaia hoje em vigor.
Agora o país
rio-platense chama a atenção do mundo graças ao seu avanço em leis
progressistas. Veremos em que consistem as mesmas, qual é o contexto
político-histórico que permite entender o lugar vanguardista desse país em
várias iniciativas e também quais são os obstáculos para aprovar medidas
parecidas no Brasil.
Leis progressistas
Logo da chegada
à Presidência de José “Pepe” Mujica, ex-guerrilheiro do Movimento de Libertação
Nacional Tupamaros, que passou 14 anos preso durante a ditadura militar, a
primeira lei que chamou a atenção foi a descriminalização do aborto. A coalizão
governista Frente Ampla, pela qual Mujica teve acesso ao Senado antes de
assumir a Presidência, já havia proposto em 2007 um projeto sobre o tema.
Naquela época, entretanto, o presidente Tabaré Vázquez – também da Frente Ampla
– opõe-se ao voto do seu próprio partido. Com Mujica, em 2012, a lei foi
aprovada.
O tema da
interrupção da gravidez gerou forte oposição de setores religiosos, para quem o
começo da vida se dá desde a concepção. Ainda assim venceram os que
defendem a regulamentação do aborto, quando ainda não se atinge etapas
avançadas da gestação, a fim de evitar procedimentos clandestinos, sem
condições sanitárias e com frequentes consequências graves para a mãe, em
especial as pertencentes à população pobre. Outro argumento tem a ver com
a importância do planejamento familiar, pelos problemas sociais agravados por
nascimentos não esperados, às vezes produto de estupro, casos nos quais os
religiosos também se opõem. O direito e a liberdade de a mulher decidir sobre o
seu corpo também é um dos argumentos do debate.
Os
incentivadores da lei uruguaia propõem que o Estado controle a realização de
abortos em mulheres com até 12 semanas de gestação, além de educação sexual que
seja acessível a todos. Depois de seis meses em vigência, o ministro da Saúde
anunciou de forma auspiciosa que não foram registradas mortes por interrupções
de gestação realizadas com o controle do Estado. O tema encerrou-se quando a
Igreja Católica e os partidos de oposição propuseram um referendo para derrubar
a lei, mas menos de 9% do colégio eleitoral se propôs a votar. Eram necessários
25% para que seja convocado um referendo obrigatório.
A segunda lei
que colocou o Uruguai na vanguarda progressista da América Latina foi a do
matrimônio igualitário, de abril de 2013. A legislação permite a adoção também
aos casais homossexuais e que a ordem do sobrenome dos filhos seja decidida
pelos pais. O Uruguai também fez possível o ingresso de homossexuais nas Forças
Armadas. A Igreja iniciou uma campanha de oposição, similar à iniciada pelo
papa Francisco quando ele era cardeal na Argentina e o governo de Cristina
Kirchner aprovou projeto do mesmo tipo. A opinião de Bergoglio, que considera o
casamento homossexual pecaminoso, contrário à família e aos planos de Deus, foi
citada pela igreja uruguaia.
A terceira lei
que fez voltar os olhos para o Uruguai foi a legalização da maconha, cujas
características da legislação a fazem única no mundo. Já era possível cultivar
e possuir a erva para consumo individual, como em outros países, mas agora o
Estado passaria a controlar produção, distribuição e venda. Como nos casos de
aborto, o governo não nega os efeitos nocivos para a saúde, mas argumenta que
as formas tradicionais de lutar contra o consumo e o tráfico fracassaram.
Coragem uruguaia
O “experimento”
que o país empreende, segundo anunciou Mujica, tem a ver com uma nova
estratégia para combater o narcotráfico e seus efeitos corrosivos nos aparatos
de repressão e na vida carcerária. O presidente explicou que se trata de não
dar as costas a um problema que está perante todos. Aos 78 anos, Mujica fala às
pessoas da sua geração com seu característico linguajar popular e pede que o
país seja valente e não abandone os jovens.
Essas leis
permitem aceder a um debate internacional onde assistimos a crenças e ordens
jurídicos em contínua mudança. Há um choque entre posições conservadoras, em
que valores morais ou religiosos se opõem a mudanças, e posições progressistas.
Estas últimas, ora apontam para um avanço de direitos para superar a discriminação
de indivíduos, ora enfatizam a procura de soluções ante problemas sociais.
Outras leis, como a eutanásia, aguardam para ser tratadas pelo Congresso. Mas
nem tudo tem sido vitória para o governo da Frente Ampla, que sofreu um revés
pelo voto negativo num referendo que buscava derrubar a lei que impede julgar
os crimes da ditadura.
Na defesa das
leis vemos confluir dois tipos de argumentos aparentemente contraditórios: um
com ênfase no papel interventor do Estado nos problemas sociais, priorizando os
mais desfavorecidos, outro mais liberal, argumentando contra a regulação
estatal na vida das pessoas (homossexuais, mulheres e usuários de drogas, neste
caso). Esses dois avanços atravessam transversalmente o arco político
ideológico e fazem que tanto líderes provenientes da esquerda socialista, como
Mujica, e personalidades mundiais do mundo liberal e empresarial defendam essas
mudanças, como que outros governos da região vindos da esquerda se oponham.
O debate
uruguaio encontra-se assim embaralhado: Mujica é alvo de críticas
conservadoras, pelas leis mencionadas, mas também é criticado por dar
continuidade a políticas econômicas que não favorecem a distribuição da renda e
o acesso à terra, ou que trazem críticas de setores ecologistas.
A “Suíça” da América
Além das
posições políticas rígidas, o Uruguai soube ver que era possível avançar e
mostrou iniciativa. Porém, a sintonia com debates jurídicos e sociais
contemporâneos não deve ser vista como uma questão de oportunismo ou
casualidade conjuntural. Essas políticas possuem antecedentes.
Se revisarmos a
história, veremos que o Uruguai era pioneiro em medidas relacionadas com
direitos civis e a democratização da sociedade, o que junto com a forte
estrutura bancária, lhe valeu o título de “Suíça” da América. Entre as leis
vanguardistas está a do Divórcio, de 1907, pioneira entre os seus vizinhos e
inédita em permitir que a separação fosse iniciativa feminina (a partir de
1913). A recente lei do matrimônio igualitário a modifica, permitindo também
que seja o homem quem toma a iniciativa.
O Uruguai foi
também o primeiro país latino-americano a permitir o voto feminino, em 1927. A
primeira votante, curiosamente, foi uma brasileira de 90 anos residente no
país. Com uma importante lei de educação que também foi pioneira em garantir a
educação obrigatória, laica e gratuita, o país se converteria no mais
alfabetizado da região, com fama de povo culto e bons índices de
desenvolvimento humano. Em relação direta com o debate atual da legislação da
maconha – que a Frente Ampla afirma que se estenderá a outras drogas – o Estado
uruguaio regulou no princípio do século XX o consumo e venda de álcool,
permitindo que os lucros sejam revertidos em saúde pública.
O
presidente Batlle y Ordóñez foi quem incentivou muitas dessas reformas e,
impulsionou leis trabalhistas importantes, e também perfilou um Estado laico. A
tendência de separação entre o Estado e as distintas confissões de fé marcou a
modernidade política da Europa, com reformas religiosas e o avanço do
secularismo, mas ainda é tema de debate por distintas formas de influência da
igreja na política.
O Uruguai se
converteu no país mais laico da região com várias medidas que já levam mais de
um século, como a regulamentação e limitação do ensino religioso, a proibição
de crucifixos em hospitais e escolas, eliminação de capelães das Forças
Armadas, reconhecimento do matrimônio civil e o desconhecimento do religioso,
juramento dos presidentes sobre a Constituição. Apesar de contar com maioria da
população de tradição católica, no Uruguai não há feriados religiosos e o Dia
de Reis se chama Dia das Crianças. A Semana Santa é a Semana do Turismo e o
Natal se conhece como o Dia da Família.
Diante da
oposição bélica da Igreja nas últimas leis uruguaias, dá para entender a
relação entre sua aprovação e a separação real entre Estado e religião. O
caráter laico, inclusive, foi recentemente demonstrado por Mujica quando ele
decidiu não comparecer à posse do papa Francisco. Depois, numa viagem em busca
de atrair investimentos, Mujica visitou o papa, com quem comparte um estilo
marcado pelos gestos de simplicidade e rejeição aos privilégios do poder – o
presidente viaja em aviões comerciais, utiliza um velho fusca, doa 90% do seu
salário e vive numa pequena casa rural, sem depender de cozinheiros ou
empregados domésticos. Porém Mujica referiu-se em declarações posteriores à
necessidade de “reformar a última corte antiga que permanece sobre a terra”.
Se
compararmos com o Uruguai, vamos nos deparar com as dificuldades de aprovar
leis como as uruguaias no Brasil, devido às relações íntimas entre política e
religião no País. Uma importante bancada parlamentarista evangélica de 80
membros, transversal aos distintos partidos, impede o tratamento parlamentar
brasileiro desses temas. Basta observar que o casamento entre pessoas do mesmo
sexo só foi legalizado no Brasil pela via judicial. Outro exemplo do poder de
fogo da bancada religiosa foi a suspensão do material didático do MEC que
trazia conteúdos contra a homofobia. É bom lembrar que o tema droga é conduzido
exclusivamente no País pelas forças policiais e militares.
Apesar de serem
calculadas duas mortes por dia no Brasil por abortos clandestinos, a força dos
setores religiosos obrigou Dilma Rousseff e seu oponente José Serra a
declarar-se contra o aborto, convertendo-se no principal tema do debate no
segundo turno das eleições de 2010. Em 2007, Dilma havia manifestado seu apoio
a uma descriminalização do aborto, mas saiu depois garantindo o “direito à
vida”. Procuravam os votos da terceira opositora concorrente da eleição, Marina
Silva, que propôs um referendo sobre o tema, desde sua oposição ao aborto de
acordo com a sua filiação evangélica. Segundo cálculos do Sistema Único de
Saúde, 1 milhão de abortos inseguros acontecem no País por ano, e um quinto das
mulheres já o fizeram alguma vez, sendo a maioria delas maiores de idade,
casadas e religiosas.
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Fonte: http://www.cartanaescola.com.br/single/show/183
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