terça-feira, 3 de março de 2015

Cartas a um(a) jovem pesquisador(a)

A recensão apresentada a seguir é de um livro da Profa. Mirian Goldenberg. Um livro que realça o significado da universidade como espaço de compromisso com o conhecimento, com a descoberta, com o novo. Com a aventura de conhecer, sabendo que, por vezes, pelo caminho, aparecem percalços que exigem empenho, rigor e disciplina intelectual para superá-los, mas que, ao fim, encontra-se um tipo de prazer diferenciado, aquilo que Walter Benjamin chamou de 'prazer em que se articulam os sentidos e o espírito'. Dentre os méritos do texto da Profa. Goldenberg, antropóloga com gosto pelo que faz, há uma ênfase na valorização da graduação, em despertar nas novas cabeças o compromisso com os estudos, abrindo-lhes trilhas ao mundo do conhecimento e à pesquisa em seu sentido original. Isso é de uma relevância fundamental, sobretudo quando, em muitos casos, se percebe o ensino na graduação ser uma espécie de miscelânea, onde do que se faz (ou não se faz...) o menos é cumprir o seu verdadeiro propósito. Sim, ao falar em compromisso e rigor, poderei ser incompreendido - não dou a mínima importância. Não me preocupo, embora saiba que existe máquina de contrapropaganda. Não ando em busca de popularidade fácil e de palco. Bom, sem mais, aí abaixo, vale a pena a leitura da recensão do livro da Profa. Mirian Goldenberg. 


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Por Soraya Fleischer


GOLDENBERG, Mirian. Noites de insônia: cartas de uma antropóloga a um jovem pesquisador (Rio de Janeiro: Record)

Esse é um livro sobre sentimentos: prazer, sofrimento, dor, obsessão, medo, alegria, frustração, felicidade, orgulho, realização, alegria, rejeição, amor, generosidade, entusiasmo, desabafo e, principalmente, paixão. É pela via autêntica dos sentimentos, citados enfaticamente ao longo do livro, que a antropóloga carioca Mirian Goldenberg descreve e qualifica sua relação com o mundo acadêmico e seus atores. Embora também encontre em seu cotidiano profissional mesquinharias e conflitos, estamos falando de uma antropóloga visivelmente apaixonada pela antropologia.
O livro reúne três palestras proferidas nos últimos anos e um texto inédito: "Carta a um jovem pesquisador" foi a conferência de abertura da VII Jornada Interna dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ em 2005; "O que querem os alunos" foi uma palestra no Simpósio Especial da Comissão de Ensino da Associação Brasileira de Antropologia em seu encontro bienal, em 2006; "Vale a pena" foi uma aula inaugural organizada pelo Centro Acadêmico de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, em 2004; e "Noites de insônia" encerra e intitula a coletânea.
Como muitos de seus textos "mais subjetivos, auto-reflexivos e críticos" (p. 10), esse livro surgiu em uma noite de insônia, estado bastante familiar à autora. Sua intenção foi reunir escritos que descrevessem e ponderassem sobre sua "experiência como antropóloga, pesquisadora e professora" (p. 10). Já a minha intenção ao comprar esse livro foi justamente incrementar minha biblioteca com relatos reflexivos sobre o diálogo que se passa dentro das salas de aula, raramente publicados pelos antropólogos e tão instrutivos para docentes neófitas como eu.
Goldenberg abre o livro, em seu primeiro artigo, lembrando situações e saias justas enfrentadas por cientistas sociais célebres, como Roland Barthes, Howard Becker, Anthony Giddens, Marshall Sahlins, Pierre Bourdieu e Norbert Elias. Percebe-se que os renomados também encontram desafios e, como a autora, optaram por registrá-los num claro intuito de engrossar o legado de nossa disciplina. Goldenberg nos inspira, assim, a não naturalizar a docência e, ao contrário, a investir sempre na reflexão epistemológica a partir de nossas experiências diárias dentro da sala de aula.
A Comissão de Ensino da ABA tem, há vários anos, proposto oportunidades para se debater o ensino nos cursos de graduação. O segundo artigo do livro foi encomendado nesse contexto e, de forma muito criativa, Goldenberg resolveu consultar "aqueles que sabem muito mais do que eu sobre o tema" (p. 33). Ela elaborou e enviou aos seus alunos e ex-alunos um questionário sobre o ensino das ciências sociais e recebeu 40 respostas de volta. O resultado é um ótimo alerta para todos nós. De uma forma geral, "os professores [retratados como cansados, moribundos, desgostosos, sem tesão, atrasados, desrespeitosos e pouco sérios] são o principal problema do curso" de graduação em ciências sociais (p. 34). As aulas, apontadas como o segundo pior problema, são pobres, formais, caretas, pesadas, pouco dinâmicas e pouco descontraídas (p. 36-37). A estrutura - como prédios e espaços, bolsas, burocracia, filas e bagunça - vem em seguida (p. 37-38). E, por fim, as avaliações foram descritas como genéricas, pouco criteriosas, condescendentes, indevolutas (p. 39-40). Diante desse quadro, a meu ver Goldenberg é certeira ao matar a charada:
A competição no campo acadêmico exige inúmeras atividades que obrigam o professor, mesmo aquele que gosta de dar aulas, a dedicar um tempo enorme para concretizá-las. [...] Parece que tanto faz se o professor dá aula para três alunos ou para 102. Tanto faz se repete o mesmo curso todos os semestres ou se busca atender às demandas dos alunos e de sua formação. [...] Ao contrário, o seminário, a banca e o evento contarão pontos no seu currículo Lattes. As aulas, boas ou ruins, não são computadas no currículo. [...] O que deveria ser o espaço privilegiado do professor se tornou algo que atrapalha a sua pontuação como pesquisador. (p. 43).
Nesse sentido, para driblar o limitado Lattes, a autora criou para si mesma o "Currículo Leila Diniz" onde constam atividades como aulas, reuniões de orientação, reuniões dos grupos de pesquisa, conversas com colegas, trocas de angústias e experiências, etc. Esse outro currículo, como pode ser visto no último texto do livro, segundo a autora, "me impede e me protege de me tornar a triste, deprimente e patética figura acadêmica que só se preocupa com seus próprios interesses" (p. 79). Ao longo de todo o livro, Goldenberg vai propondo, de forma leve e irreverente, uma outra atmosfera acadêmica.
O terceiro texto, dirigido aos seus alunos no início de mais um semestre letivo, a autora lembra das razões pelas quais vale a pena seguir uma carreira na antropologia, apesar do caminho ser longo, solitário e com resultados pouco imediatos. Para ela, nossa rotina dificilmente é monótona, dado o perfil criativo, curioso, de "escuta em profundidade" e do dizer (e não apenas falar) provocador das ciências sociais. Mas, à luz da séria preocupação que a autora manifesta pela graduação, penso como é possível manter essa profissão intensa e sempre inovadora nos moldes da monumental expansão pela qual passam atualmente as universidades públicas brasileiras? Essa realidade inclui alta carga horária em sala de aula (que, como Mirian bem ressalta, não é reconhecida na pontuação acadêmica), pouco tempo para pesquisa e extensão, turmas inchadas, infraestrutura em construção, graduações interdisciplinares (em que, muitas vezes, a antropologia "cai superbem" nos novos programas institucionais, mas não se sabe ao certo como pode ser uma contribuição na prática), etc. Claro que as universidades devem abrir mais vagas e cursos, contudo, essa antropologia criativa e motivadora mencionada pela autora é possível aos antropólogos que não estão em cursos de antropologia e em centros que não contam com cursos de pós-graduação? O ideal que Goldenberg almeja não estaria cada vez mais limitado aos departamentos com nota 6 e 7 na Capes? Não estaríamos no momento de repensar nossa prática e ampliar as possibilidades de se fazer e se reconhecer uma antropologia diversa e de boa qualidade também fora dos institutos de ciências sociais e das universidades?
Fica claro que Goldenberg é seriamente comprometida com sua carreira de professora: repete e reafirma que é dedicada aos alunos e aos textos que produz, que vive monástica e exclusivamente para a rotina acadêmica, que sofre e se sacrifica para qualificar a antropologia. Ao mesmo tempo, revela como se frustra com a competição exacerbada, os alunos ingratos que não lhe reconhecem o esforço e o monitoramento contínuo da qualidade de sua produção. Ao centrar-se em passagens e reflexões autobiográficas, o livro ora soa como uma espécie de autopromoção, ora exagera no tom da ego-história. Por vezes, há o risco de a autora se expor em demasia. Contudo, um resultado imediato desse estilo narrativo é percebermos como também a antropologia é construída com sujeitos de carne e osso, que vivenciam medos e inseguranças, que os textos e preleções não surgem sem autoflagelo e horas de insônia. Goldenberg tem a coragem de levantar as cortinas do palco e humanizar os bastidores da produção do conhecimento antropológico. Ela leva a sério a recomendação de Bourdieu: "Nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades. [...] Quanto mais a gente se expõe, mais possibilidades existem de se tirar proveito da discussão e, estou certo, mais benevolentes serão as críticas" (p. 28). Além de contribuir para a história da antropologia brasileira, Goldenberg parece desejar oferecer um leque de possíveis dificuldades e equívocos para poupar seus pupilos de futuras reincidências. Ao apresentar sua trajetória pessoal e profissional, há no livro algo de profundamente didático.
Um outro aspecto que desponta no livro: noites em claro servem para pensar e escrever; palestras viram artigos e, depois, em conjunto, viram livros; sala de aula é laboratório para reflexões; sessões de cinema, cafezinho ou chope com os amigos e alunos é oportunidade para se etnografar a vida cultural desse grupo, bairro ou cidade, etc. Goldenberg nos transmite a impressão de estar ligada na antropologia durante as 24 horas do dia. Absolutamente tudo é fonte para reflexão, produção e publicação. Há uma otimização - talvez exagerada, heroica e/ou ilusória - de todos os passos dados pelo intelectual, mesmo quando ele não está necessariamente envolvido com seu trabalho. Esse ideal de antropólogo full time reforça, de alguma forma, a estrutura competitiva e produtiva (não necessariamente traduzida em qualidade ou relevância), que a autora tanto critica ao longo do livro.
Por fim, gostaria de ressaltar o que me parece a principal contribuição desse charmoso livrinho. Ao longo de suas páginas, percebe-se como a autora faz uma bela e extensa ode ao ensino na graduação. Ela nota o descrédito com que o sistema de ensino superior brasileiro tem lidado com essa fase inicial da formação e milita para que "a sala de aula volte a ser um espaço de reconhecimento, investimento e, principalmente, prazer" (p. 44). Goldenberg é, sim, apaixonada pela antropologia e pelo espaço da troca com seus alunos, e nos brinda com insights e recomendações bastante relevantes para, além de investirmos na graduação, nos neófitos e na profissionalização, nos mantermos na mesma sintonia dessa paixão.
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832009000200019

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