A recensão apresentada a seguir é de um livro da Profa. Mirian Goldenberg. Um livro que realça o significado da universidade como espaço de compromisso com o conhecimento, com a descoberta, com o novo. Com a aventura de conhecer, sabendo que, por vezes, pelo caminho, aparecem percalços que exigem empenho, rigor e disciplina intelectual para superá-los, mas que, ao fim, encontra-se um tipo de prazer diferenciado, aquilo que Walter Benjamin chamou de 'prazer em que se articulam os sentidos e o espírito'. Dentre os méritos do texto da Profa. Goldenberg, antropóloga com gosto pelo que faz, há uma ênfase na valorização da graduação, em despertar nas novas cabeças o compromisso com os estudos, abrindo-lhes trilhas ao mundo do conhecimento e à pesquisa em seu sentido original. Isso é de uma relevância fundamental, sobretudo quando, em muitos casos, se percebe o ensino na graduação ser uma espécie de miscelânea, onde do que se faz (ou não se faz...) o menos é cumprir o seu verdadeiro propósito. Sim, ao falar em compromisso e rigor, poderei ser incompreendido - não dou a mínima importância. Não me preocupo, embora saiba que existe máquina de contrapropaganda. Não ando em busca de popularidade fácil e de palco. Bom, sem mais, aí abaixo, vale a pena a leitura da recensão do livro da Profa. Mirian Goldenberg.
Por Soraya Fleischer
GOLDENBERG, Mirian. Noites de insônia: cartas de uma antropóloga a um jovem pesquisador (Rio de Janeiro: Record)
Esse
é um livro sobre sentimentos: prazer, sofrimento, dor, obsessão, medo, alegria,
frustração, felicidade, orgulho, realização, alegria, rejeição, amor,
generosidade, entusiasmo, desabafo e, principalmente, paixão. É pela via
autêntica dos sentimentos, citados enfaticamente ao longo do livro, que a
antropóloga carioca Mirian Goldenberg descreve e qualifica sua relação com o
mundo acadêmico e seus atores. Embora também encontre em seu cotidiano
profissional mesquinharias e conflitos, estamos falando de uma antropóloga
visivelmente apaixonada pela antropologia.
O
livro reúne três palestras proferidas nos últimos anos e um texto inédito:
"Carta a um jovem pesquisador" foi a conferência de abertura da VII
Jornada Interna dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia do IFCS/UFRJ em 2005; "O que querem os alunos" foi uma
palestra no Simpósio Especial da Comissão de Ensino da Associação Brasileira de
Antropologia em seu encontro bienal, em 2006; "Vale a pena" foi uma
aula inaugural organizada pelo Centro Acadêmico de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ,
em 2004; e "Noites de insônia" encerra e intitula a coletânea.
Como
muitos de seus textos "mais subjetivos, auto-reflexivos e críticos"
(p. 10), esse livro surgiu em uma noite de insônia, estado bastante familiar à
autora. Sua intenção foi reunir escritos que descrevessem e ponderassem sobre
sua "experiência como antropóloga, pesquisadora e professora" (p.
10). Já a minha intenção ao comprar esse livro foi justamente incrementar minha
biblioteca com relatos reflexivos sobre o diálogo que se passa dentro das salas
de aula, raramente publicados pelos antropólogos e tão instrutivos para
docentes neófitas como eu.
Goldenberg
abre o livro, em seu primeiro artigo, lembrando situações e saias justas
enfrentadas por cientistas sociais célebres, como Roland Barthes, Howard
Becker, Anthony Giddens, Marshall Sahlins, Pierre Bourdieu e Norbert Elias.
Percebe-se que os renomados também encontram desafios e, como a autora, optaram
por registrá-los num claro intuito de engrossar o legado de nossa disciplina.
Goldenberg nos inspira, assim, a não naturalizar a docência e, ao contrário, a
investir sempre na reflexão epistemológica a partir de nossas experiências
diárias dentro da sala de aula.
A
Comissão de Ensino da ABA tem, há vários anos, proposto oportunidades para se
debater o ensino nos cursos de graduação. O segundo artigo do livro foi
encomendado nesse contexto e, de forma muito criativa, Goldenberg resolveu
consultar "aqueles que sabem muito mais do que eu sobre o tema" (p.
33). Ela elaborou e enviou aos seus alunos e ex-alunos um questionário sobre o
ensino das ciências sociais e recebeu 40 respostas de volta. O resultado é um
ótimo alerta para todos nós. De uma forma geral, "os professores
[retratados como cansados, moribundos, desgostosos, sem tesão, atrasados, desrespeitosos
e pouco sérios] são o principal problema do curso" de graduação em
ciências sociais (p. 34). As aulas, apontadas como o segundo pior problema, são
pobres, formais, caretas, pesadas, pouco dinâmicas e pouco descontraídas (p.
36-37). A estrutura - como prédios e espaços, bolsas, burocracia, filas e
bagunça - vem em seguida (p. 37-38). E, por fim, as avaliações foram descritas
como genéricas, pouco criteriosas, condescendentes, indevolutas (p. 39-40).
Diante desse quadro, a meu ver Goldenberg é certeira ao matar a charada:
A competição no campo acadêmico exige inúmeras
atividades que obrigam o professor, mesmo aquele que gosta de dar aulas, a
dedicar um tempo enorme para concretizá-las. [...] Parece que tanto faz se o
professor dá aula para três alunos ou para 102. Tanto faz se repete o mesmo
curso todos os semestres ou se busca atender às demandas dos alunos e de sua
formação. [...] Ao contrário, o seminário, a banca e o evento contarão pontos
no seu currículo Lattes. As aulas, boas ou ruins, não são computadas no
currículo. [...] O que deveria ser o espaço privilegiado do professor se tornou
algo que atrapalha a sua pontuação como pesquisador. (p. 43).
Nesse
sentido, para driblar o limitado Lattes, a autora criou para si mesma o
"Currículo Leila Diniz" onde constam atividades como aulas, reuniões
de orientação, reuniões dos grupos de pesquisa, conversas com colegas, trocas
de angústias e experiências, etc. Esse outro currículo, como pode ser visto no
último texto do livro, segundo a autora, "me impede e me protege de me
tornar a triste, deprimente e patética figura acadêmica que só se preocupa com
seus próprios interesses" (p. 79). Ao longo de todo o livro, Goldenberg
vai propondo, de forma leve e irreverente, uma outra atmosfera acadêmica.
O
terceiro texto, dirigido aos seus alunos no início de mais um semestre letivo,
a autora lembra das razões pelas quais vale a pena seguir uma carreira na
antropologia, apesar do caminho ser longo, solitário e com resultados pouco
imediatos. Para ela, nossa rotina dificilmente é monótona, dado o perfil
criativo, curioso, de "escuta em profundidade" e do dizer (e não
apenas falar) provocador das ciências sociais. Mas, à luz da séria preocupação
que a autora manifesta pela graduação, penso como é possível manter essa profissão
intensa e sempre inovadora nos moldes da monumental expansão pela qual passam
atualmente as universidades públicas brasileiras? Essa realidade inclui alta
carga horária em sala de aula (que, como Mirian bem ressalta, não é reconhecida
na pontuação acadêmica), pouco tempo para pesquisa e extensão, turmas inchadas,
infraestrutura em construção, graduações interdisciplinares (em que, muitas
vezes, a antropologia "cai superbem" nos novos programas
institucionais, mas não se sabe ao certo como pode ser uma contribuição na
prática), etc. Claro que as universidades devem abrir mais vagas e cursos,
contudo, essa antropologia criativa e motivadora mencionada pela autora é
possível aos antropólogos que não estão em cursos de antropologia e em centros
que não contam com cursos de pós-graduação? O ideal que Goldenberg almeja não
estaria cada vez mais limitado aos departamentos com nota 6 e 7 na Capes? Não
estaríamos no momento de repensar nossa prática e ampliar as possibilidades de
se fazer e se reconhecer uma antropologia diversa e de boa qualidade também
fora dos institutos de ciências sociais e das universidades?
Fica
claro que Goldenberg é seriamente comprometida com sua carreira de professora:
repete e reafirma que é dedicada aos alunos e aos textos que produz, que vive
monástica e exclusivamente para a rotina acadêmica, que sofre e se sacrifica
para qualificar a antropologia. Ao mesmo tempo, revela como se frustra com a
competição exacerbada, os alunos ingratos que não lhe reconhecem o esforço e o
monitoramento contínuo da qualidade de sua produção. Ao centrar-se em passagens
e reflexões autobiográficas, o livro ora soa como uma espécie de autopromoção,
ora exagera no tom da ego-história. Por vezes, há o risco de a autora se expor
em demasia. Contudo, um resultado imediato desse estilo narrativo é percebermos
como também a antropologia é construída com sujeitos de carne e osso, que
vivenciam medos e inseguranças, que os textos e preleções não surgem sem
autoflagelo e horas de insônia. Goldenberg tem a coragem de levantar as
cortinas do palco e humanizar os bastidores da produção do conhecimento
antropológico. Ela leva a sério a recomendação de Bourdieu: "Nada é mais
universal e universalizável do que as dificuldades. [...] Quanto mais a gente
se expõe, mais possibilidades existem de se tirar proveito da discussão e,
estou certo, mais benevolentes serão as críticas" (p. 28). Além de
contribuir para a história da antropologia brasileira, Goldenberg parece
desejar oferecer um leque de possíveis dificuldades e equívocos para poupar
seus pupilos de futuras reincidências. Ao apresentar sua trajetória pessoal e
profissional, há no livro algo de profundamente didático.
Um
outro aspecto que desponta no livro: noites em claro servem para pensar e
escrever; palestras viram artigos e, depois, em conjunto, viram livros; sala de
aula é laboratório para reflexões; sessões de cinema, cafezinho ou chope com os
amigos e alunos é oportunidade para se etnografar a vida cultural desse grupo,
bairro ou cidade, etc. Goldenberg nos transmite a impressão de estar ligada na
antropologia durante as 24 horas do dia. Absolutamente tudo é fonte para
reflexão, produção e publicação. Há uma otimização - talvez exagerada, heroica
e/ou ilusória - de todos os passos dados pelo intelectual, mesmo quando ele não
está necessariamente envolvido com seu trabalho. Esse ideal de antropólogo full
time reforça, de alguma forma, a estrutura competitiva e produtiva
(não necessariamente traduzida em qualidade ou relevância), que a autora tanto
critica ao longo do livro.
Por
fim, gostaria de ressaltar o que me parece a principal contribuição desse
charmoso livrinho. Ao longo de suas páginas, percebe-se como a autora faz uma
bela e extensa ode ao ensino na graduação. Ela nota o descrédito com que o
sistema de ensino superior brasileiro tem lidado com essa fase inicial da
formação e milita para que "a sala de aula volte a ser um espaço de
reconhecimento, investimento e, principalmente, prazer" (p. 44).
Goldenberg é, sim, apaixonada pela antropologia e pelo espaço da troca com seus
alunos, e nos brinda com insights e recomendações bastante
relevantes para, além de investirmos na graduação, nos neófitos e na
profissionalização, nos mantermos na mesma sintonia dessa paixão.
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832009000200019
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