Walter Benjamin |
Por José Francisco Botelho
Muitas vezes, quem melhor capta a
essência de uma época são aqueles que nela não se ajustam: os náufragos da
história, condenados a lutar de forma apaixonada contra o tempo em que nasceram
– e, por isso mesmo, capazes de vivê-lo e de interpretá-lo com intensidade
única. Nesse sentido, o judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940) encarnou como
poucos a alma da modernidade – porque nela se sentia desconfortável,
desorientado e cheio de angústia. Homem de sensibilidade passadista e
aspirações utópicas, foi um espírito do século 19 transportado para o século
20: viu a civilização industrial com olhos de estrangeiro e por isso foi capaz
de compreendê-la profeticamente.
Crítico literário, pensador político e filósofo
da história, Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais
clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas
já começava a estrangular o mundo ocidental. Profundamente judeu e
profundamente alemão, só se sentia realmente em casa passeando pelas ruas de
Paris – cidade que descrevia deliciosamente como “a capital do século 19”. Era
dono de grande erudição, mas jamais se tornou um erudito profissional:
desprezado pelas academias durante a vida, só foi por elas endeusado após a
morte. Deixou- se seduzir pelo marxismo, mas jamais se encaixou no padrão do
intelectual materialista, guardando até o fim da vida um viés místico herdado
da tradição judaica. Todos esses ingredientes fizeram dele um desajustado
universal. Não foi um favorito da fortuna, e sabia disso – até o último
momento, sua existência foi marcada por uma mistura de má sorte, brilhantismo e
trágica autoconsciência. Foi um daqueles que, no dizer do latino Cícero, “só
venceram na morte”.
Inadequação crônica
Walter Benjamin nasceu em Berlim,
em uma família de judeus assimilados, nos tempos do Império Alemão. No início
da juventude, assistiu o Velho Mundo descer aos infernos nas trincheiras da
Primeira Guerra Mundial. Das ruínas da belle époque, emergiu uma Europa
mecanizada e cheia de traumas. Mais tarde, em um ensaio, descreveria o choque
dessas mudanças: “Uma geração que fora à escola em bondes puxados por cavalos
se encontrou, subitamente, em uma paisagem onde tudo se alterara e nada
permanecia igual ao que fora antes – exceto as nuvens e, debaixo delas, em meio
a explosões, o frágil e minúsculo corpo humano”.
Benjamin jamais se adaptou aos
novos tempos. Os fados o haviam dotado de dons brilhantes, mas incompatíveis
com o mundo que o cercava. Tinha uma mente eclética e fascinada pelas minúcias,
numa época em que a especialização e as generalizações ideológicas imperavam.
Seu campo de estudo e fascínio era a vida humana: refletia com igual
profundidade sobre a literatura alemã, a história dos brinquedos e a Hagadá
(livro da Páscoa) judaica. Sua recusa à especialização custou-lhe a carreira
acadêmica. Em 1925, tentou ganhar um diploma de livredocência na Universidade
de Frankfurt com uma dissertação sobre o barroco alemão. Os caciques do
departamento de letras acharam que o trabalho pouco tinha a ver com literatura
e o enviaram à faculdade de filosofia. Os filósofos do instituto, por sua vez,
consideraram que ali havia literatura demais e o mandaram de volta aos
literatos. O século 19 saberia apreciar a figura do cavalheiro diletante, o
hoje legendário homem culto, que ponderava ao sabor de sua biblioteca e podia
falar sobre quase tudo sem dizer tolices – mas qual personagem seria mais
ameaçador no tecnocrático século 20? Impossibilitado de lecionar, por excesso
de inteligência, Benjamin passou a ganhar a vida com traduções e esporádicos
artigos para jornais e revistas (o que faz dele, hoje, uma espécie de santo
padroeiro dos escritores free-lancer).
Outro motivo de desentendimento
entre Benjamin e sua época foi um fenômeno moderno que o próprio autor
diagnosticou, em ensaios como O Narrador, de 1935: a perda da experiência
coletiva. Para Benjamin, as sociedades baseadas no artesanato viviam num tempo
lento e orgânico, ritmado pelos trabalhos manuais, um tempo em que as experiências
individuais podiam sedimentar- se e transmitir-se gradualmente em tradições
compartilhadas, como as formações minerais que se depositam gota a gota. A
civilização industrial havia esfacelado esse mundo feito de vagar, memória e
contemplação. No século 20, os acontecimentos passaram a se amontoar de forma
tão veloz que a mente humana se tornou impermeável à realidade. Desnorteado,
desprovido daquele senso de pertença que era tão natural aos artesãos de
outrora, o homem industrial estava condenado a ser o fragmento de um
quebra-cabeça cuja forma não percebia. “Por isso, parecemos estar perdendo uma
faculdade que antes nos parecia segura e inalienável”, escreve Benjamin, “a
faculdade de intercambiar experiências”.
Em poucos lugares do mundo, essas
mudanças eram tão notáveis quanto na Alemanha dos anos 1930, que vivia uma
industrialização galopante, acompanhada pela corrida armamentista e pela
ascensão do nazismo. Em 1933, Benjamin trocou Berlim por Paris, que então era o
porto seguro dos desajustados e dos boêmios. Lá, viveu alguns dos anos mais
felizes de sua vida. Mesmo no agitado coração do século 20, Paris continuava
sendo “capital do século 19”. Flanando por seus bulevares em peregrinações
diárias, Benjamin conseguia reencontrar o que mais lhe fazia falta no turbilhão
moderno: o sabor da lentidão, que é a face amena e modesta da eternidade.
Mas esse idílio acabou em 1939. Em
agosto daquele ano, o ditador soviético Joseph Stalin assinou um pacto de não
agressão com Hitler – o que lançou boa parte dos intelectuais marxistas da
Europa num estado de perplexidade incrédula. Dois me- ses depois, os nazistas
invadiam a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. E foi sob o choque
desses acontecimentos que Benjamin pôs-se a redigir, no início de 1940, um de
seus textos mais pungentes: as curtas, melancólicas e eloquentes Teses sobre o
Conceito de História, último escrito que completou antes de morrer.
Ruínas ao léu
Benjamin fora introduzido ao
marxismo na década de 1920 graças a seus camaradas Theodor Adorno e Bertold
Brecht – mas, à época do pacto entre Hitler e Stalin, já havia se desiludido
com o comunismo real. E, a bem da verdade, sempre fora um marxista um tanto sui
generis. O misticismo judaico acompanhou-o da infância ao túmulo. Sempre foi intelectualmente
fascinado pela doutrina judaica do Messias, o futuro enviado de Deus, que virá
redimir as confusões da história e encenar o epílogo de nossa tragicômica
epopeia na terra. A decepção política e o sonho teológico perpassam suas Teses,
escritas em tons de elegia e de parábola, num estilo de intensidade ominosa.
Nessa reflexão profunda e urgente feita à beira do abismo, Benjamin lança um
ataque certeiro contra o credo máximo daquele mundo que enlouquecia: a fé no
progresso inelutável da humanidade.
Pelo menos desde o início da
Revolução Industrial, o Ocidente se convencera de que o avanço técnico era
sinônimo de avanço moral. A novidade de hoje, por banal que seja em si mesma, é
sempre mais valiosa, mais sublime, mais respeitável que a novidade de ontem. No
centro dessa concepção, está a ideia de que o presente é necessariamente melhor
que o passado – em todos os aspectos. Segundo Benjamin, o culto ao Deus
Progresso era uma neurose universal da qual o marxismo também padecia: para os
materialistas clássicos, a história da humanidade era um fluxo implacável rumo
à utopia e a revolução comunista era o resultado natural – e, portanto, acima
de críticas – do desenvolvimento humano.
No lugar do Deus Progresso,
Benjamin colocou o demônio da catástrofe. O avanço da técnica, o domínio
material sobre a natureza, a capacidade de erigir prédios e detonar bombas –
nada disso, argumenta Benjamin, tem um valor intrínseco em si mesmo. O
desenvolvimento moderno pode ser uma aceleração rumo ao desastre. O progresso,
quando desabrido e arbitrário, é a pior forma de regresso. E Stalin lá estava,
ao lado de Hitler, para provar que o “resultado natural” da história podia ser
o oposto da utopia. Essas sombrias intuições estão expressas com soberba
imaginação poética em um dos parágrafos mais belos na história do pensamento. É
a Nona Tese de Benjamin, escrita sob a inspiração do Angelus Novus, uma
aquarela do suíço Paul Klee.
Na pintura, uma desajeitada figura
angélica parece voar em marcha à ré, com os olhos fixos no caminho que vai
deixando para trás. Trancado em seu quarto enquanto o exército alemão se
aproximava, Benjamin observou longamente a aquarela de Klee e por fim escreveu:
“O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos
pés. O anjo gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se a suas asas com tanta força que
ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o
céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”. O involuntário Anjo da
História é uma dessas raras imagens que transcendem interpretações e dispensam
comentários. Sabemos simplesmente que ele segue voando e que as ruínas ainda se
acumulam ao léu.
Walter Benjamin foi, antes de
tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo)
numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o
mundo ocidental
Naufrágio anunciado
Benjamin fugiu de Paris em junho
de 1940, um dia antes que o exército alemão entrasse na capital – e a partir de
então teve de perambular de cidade em cidade, carregando uma valise cheia de
manuscritos inéditos, com a Gestapo em seu encalço. Em agosto daquele ano,
conseguiu escapar para a Espanha. Seu plano era chegar a Portugal e dali
emigrar para os Estados Unidos. Benjamin já estava na cidade fronteiriça de
Portbou, na Catalunha, quando recebeu a notícia fatídica: o governo de Franco
cancelara os vistos de todos os refugiados vindos da França. Alquebrado e
exausto, após meses de pânico e fuga, Walter Benjamin tomou uma overdose de
morfina em seu quarto de hotel, em 25 de setembro de 1940. Sua valise perdeu-se
e até hoje não sabemos que manuscritos continha. As folhas rabiscadas com as
Teses sobreviveram num dos raríssimos lances de sorte na vida de seu
desafortunado autor: antes de fugir de Paris, ele entregara uma cópia a sua
amiga, a filósofa Hannah Arendt, que, meses depois, conseguiu escapar para os
Estados Unidos.
Se a execução de Sócrates foi o
mito fundador da filosofia ocidental, o suicídio de Benjamin simbolizou de
forma exemplar o naufrágio da modernidade. Um naufrágio anunciado: considerados
em perspectiva, seus escritos têm uma sombria aparência de vaticínio. A
disciplinada selvageria do Holocausto, com sua industrialização da morte em
escala de milhões, seria impensável sem o avanço técnico e a mecanização das
sociedades industriais. Mas o pensamento de Benjamin não é um simples
aviltamento do presente ao sabor de idealizações do passado. Pelo contrário: em
sua concepção da história, a catástrofe é permanente; cada nova era estraçalha
algo de precioso que o período anterior conseguiu, por algum tempo, preservar.
A redenção humana só virá quando o doloroso contínuo da história se
interromper.
Como a revolução comunista falhou,
só restava a Benjamin esperar que o prometido Messias judaico viesse um dia
restaurar os escombros do Anjo desalentado. Em uma carta escrita a Hannah
Arendt, em 1935, ele resumiu suas considerações sobre o futuro do ser humano –
um pêndulo que oscila entre a redenção imaginada e o apocalipse provável.
“Nesse planeta, um grande número de civilizações pereceu em sangue e horror.
Naturalmente, é de se desejar que o planeta algum dia experimente uma
civilização que renuncie a tudo isso...”
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Fonte: http://filosofialimite.blogspot.com.br/2010/12/o-anjo-da-hidtoria-por-jose-francisco.html
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