sexta-feira, 27 de março de 2015

Benjamin e o Anjo da História: inquietação e melancolia


Walter Benjamin 

Por José Francisco Botelho

Muitas vezes, quem melhor capta a essência de uma época são aqueles que nela não se ajustam: os náufragos da história, condenados a lutar de forma apaixonada contra o tempo em que nasceram – e, por isso mesmo, capazes de vivê-lo e de interpretá-lo com intensidade única. Nesse sentido, o judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940) encarnou como poucos a alma da modernidade – porque nela se sentia desconfortável, desorientado e cheio de angústia. Homem de sensibilidade passadista e aspirações utópicas, foi um espírito do século 19 transportado para o século 20: viu a civilização industrial com olhos de estrangeiro e por isso foi capaz de compreendê-la profeticamente.

Crítico literário, pensador político e filósofo da história, Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o mundo ocidental. Profundamente judeu e profundamente alemão, só se sentia realmente em casa passeando pelas ruas de Paris – cidade que descrevia deliciosamente como “a capital do século 19”. Era dono de grande erudição, mas jamais se tornou um erudito profissional: desprezado pelas academias durante a vida, só foi por elas endeusado após a morte. Deixou- se seduzir pelo marxismo, mas jamais se encaixou no padrão do intelectual materialista, guardando até o fim da vida um viés místico herdado da tradição judaica. Todos esses ingredientes fizeram dele um desajustado universal. Não foi um favorito da fortuna, e sabia disso – até o último momento, sua existência foi marcada por uma mistura de má sorte, brilhantismo e trágica autoconsciência. Foi um daqueles que, no dizer do latino Cícero, “só venceram na morte”.


Inadequação crônica
Walter Benjamin nasceu em Berlim, em uma família de judeus assimilados, nos tempos do Império Alemão. No início da juventude, assistiu o Velho Mundo descer aos infernos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Das ruínas da belle époque, emergiu uma Europa mecanizada e cheia de traumas. Mais tarde, em um ensaio, descreveria o choque dessas mudanças: “Uma geração que fora à escola em bondes puxados por cavalos se encontrou, subitamente, em uma paisagem onde tudo se alterara e nada permanecia igual ao que fora antes – exceto as nuvens e, debaixo delas, em meio a explosões, o frágil e minúsculo corpo humano”.
Benjamin jamais se adaptou aos novos tempos. Os fados o haviam dotado de dons brilhantes, mas incompatíveis com o mundo que o cercava. Tinha uma mente eclética e fascinada pelas minúcias, numa época em que a especialização e as generalizações ideológicas imperavam. Seu campo de estudo e fascínio era a vida humana: refletia com igual profundidade sobre a literatura alemã, a história dos brinquedos e a Hagadá (livro da Páscoa) judaica. Sua recusa à especialização custou-lhe a carreira acadêmica. Em 1925, tentou ganhar um diploma de livredocência na Universidade de Frankfurt com uma dissertação sobre o barroco alemão. Os caciques do departamento de letras acharam que o trabalho pouco tinha a ver com literatura e o enviaram à faculdade de filosofia. Os filósofos do instituto, por sua vez, consideraram que ali havia literatura demais e o mandaram de volta aos literatos. O século 19 saberia apreciar a figura do cavalheiro diletante, o hoje legendário homem culto, que ponderava ao sabor de sua biblioteca e podia falar sobre quase tudo sem dizer tolices – mas qual personagem seria mais ameaçador no tecnocrático século 20? Impossibilitado de lecionar, por excesso de inteligência, Benjamin passou a ganhar a vida com traduções e esporádicos artigos para jornais e revistas (o que faz dele, hoje, uma espécie de santo padroeiro dos escritores free-lancer).
Outro motivo de desentendimento entre Benjamin e sua época foi um fenômeno moderno que o próprio autor diagnosticou, em ensaios como O Narrador, de 1935: a perda da experiência coletiva. Para Benjamin, as sociedades baseadas no artesanato viviam num tempo lento e orgânico, ritmado pelos trabalhos manuais, um tempo em que as experiências individuais podiam sedimentar- se e transmitir-se gradualmente em tradições compartilhadas, como as formações minerais que se depositam gota a gota. A civilização industrial havia esfacelado esse mundo feito de vagar, memória e contemplação. No século 20, os acontecimentos passaram a se amontoar de forma tão veloz que a mente humana se tornou impermeável à realidade. Desnorteado, desprovido daquele senso de pertença que era tão natural aos artesãos de outrora, o homem industrial estava condenado a ser o fragmento de um quebra-cabeça cuja forma não percebia. “Por isso, parecemos estar perdendo uma faculdade que antes nos parecia segura e inalienável”, escreve Benjamin, “a faculdade de intercambiar experiências”.
Em poucos lugares do mundo, essas mudanças eram tão notáveis quanto na Alemanha dos anos 1930, que vivia uma industrialização galopante, acompanhada pela corrida armamentista e pela ascensão do nazismo. Em 1933, Benjamin trocou Berlim por Paris, que então era o porto seguro dos desajustados e dos boêmios. Lá, viveu alguns dos anos mais felizes de sua vida. Mesmo no agitado coração do século 20, Paris continuava sendo “capital do século 19”. Flanando por seus bulevares em peregrinações diárias, Benjamin conseguia reencontrar o que mais lhe fazia falta no turbilhão moderno: o sabor da lentidão, que é a face amena e modesta da eternidade.
Mas esse idílio acabou em 1939. Em agosto daquele ano, o ditador soviético Joseph Stalin assinou um pacto de não agressão com Hitler – o que lançou boa parte dos intelectuais marxistas da Europa num estado de perplexidade incrédula. Dois me- ses depois, os nazistas invadiam a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. E foi sob o choque desses acontecimentos que Benjamin pôs-se a redigir, no início de 1940, um de seus textos mais pungentes: as curtas, melancólicas e eloquentes Teses sobre o Conceito de História, último escrito que completou antes de morrer.


Ruínas ao léu

Benjamin fora introduzido ao marxismo na década de 1920 graças a seus camaradas Theodor Adorno e Bertold Brecht – mas, à época do pacto entre Hitler e Stalin, já havia se desiludido com o comunismo real. E, a bem da verdade, sempre fora um marxista um tanto sui generis. O misticismo judaico acompanhou-o da infância ao túmulo. Sempre foi intelectualmente fascinado pela doutrina judaica do Messias, o futuro enviado de Deus, que virá redimir as confusões da história e encenar o epílogo de nossa tragicômica epopeia na terra. A decepção política e o sonho teológico perpassam suas Teses, escritas em tons de elegia e de parábola, num estilo de intensidade ominosa. Nessa reflexão profunda e urgente feita à beira do abismo, Benjamin lança um ataque certeiro contra o credo máximo daquele mundo que enlouquecia: a fé no progresso inelutável da humanidade.
Pelo menos desde o início da Revolução Industrial, o Ocidente se convencera de que o avanço técnico era sinônimo de avanço moral. A novidade de hoje, por banal que seja em si mesma, é sempre mais valiosa, mais sublime, mais respeitável que a novidade de ontem. No centro dessa concepção, está a ideia de que o presente é necessariamente melhor que o passado – em todos os aspectos. Segundo Benjamin, o culto ao Deus Progresso era uma neurose universal da qual o marxismo também padecia: para os materialistas clássicos, a história da humanidade era um fluxo implacável rumo à utopia e a revolução comunista era o resultado natural – e, portanto, acima de críticas – do desenvolvimento humano.
No lugar do Deus Progresso, Benjamin colocou o demônio da catástrofe. O avanço da técnica, o domínio material sobre a natureza, a capacidade de erigir prédios e detonar bombas – nada disso, argumenta Benjamin, tem um valor intrínseco em si mesmo. O desenvolvimento moderno pode ser uma aceleração rumo ao desastre. O progresso, quando desabrido e arbitrário, é a pior forma de regresso. E Stalin lá estava, ao lado de Hitler, para provar que o “resultado natural” da história podia ser o oposto da utopia. Essas sombrias intuições estão expressas com soberba imaginação poética em um dos parágrafos mais belos na história do pensamento. É a Nona Tese de Benjamin, escrita sob a inspiração do Angelus Novus, uma aquarela do suíço Paul Klee.
Na pintura, uma desajeitada figura angélica parece voar em marcha à ré, com os olhos fixos no caminho que vai deixando para trás. Trancado em seu quarto enquanto o exército alemão se aproximava, Benjamin observou longamente a aquarela de Klee e por fim escreveu: “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. O anjo gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se a suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”. O involuntário Anjo da História é uma dessas raras imagens que transcendem interpretações e dispensam comentários. Sabemos simplesmente que ele segue voando e que as ruínas ainda se acumulam ao léu.
Walter Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o mundo ocidental

Naufrágio anunciado
Benjamin fugiu de Paris em junho de 1940, um dia antes que o exército alemão entrasse na capital – e a partir de então teve de perambular de cidade em cidade, carregando uma valise cheia de manuscritos inéditos, com a Gestapo em seu encalço. Em agosto daquele ano, conseguiu escapar para a Espanha. Seu plano era chegar a Portugal e dali emigrar para os Estados Unidos. Benjamin já estava na cidade fronteiriça de Portbou, na Catalunha, quando recebeu a notícia fatídica: o governo de Franco cancelara os vistos de todos os refugiados vindos da França. Alquebrado e exausto, após meses de pânico e fuga, Walter Benjamin tomou uma overdose de morfina em seu quarto de hotel, em 25 de setembro de 1940. Sua valise perdeu-se e até hoje não sabemos que manuscritos continha. As folhas rabiscadas com as Teses sobreviveram num dos raríssimos lances de sorte na vida de seu desafortunado autor: antes de fugir de Paris, ele entregara uma cópia a sua amiga, a filósofa Hannah Arendt, que, meses depois, conseguiu escapar para os Estados Unidos.
Se a execução de Sócrates foi o mito fundador da filosofia ocidental, o suicídio de Benjamin simbolizou de forma exemplar o naufrágio da modernidade. Um naufrágio anunciado: considerados em perspectiva, seus escritos têm uma sombria aparência de vaticínio. A disciplinada selvageria do Holocausto, com sua industrialização da morte em escala de milhões, seria impensável sem o avanço técnico e a mecanização das sociedades industriais. Mas o pensamento de Benjamin não é um simples aviltamento do presente ao sabor de idealizações do passado. Pelo contrário: em sua concepção da história, a catástrofe é permanente; cada nova era estraçalha algo de precioso que o período anterior conseguiu, por algum tempo, preservar. A redenção humana só virá quando o doloroso contínuo da história se interromper.
Como a revolução comunista falhou, só restava a Benjamin esperar que o prometido Messias judaico viesse um dia restaurar os escombros do Anjo desalentado. Em uma carta escrita a Hannah Arendt, em 1935, ele resumiu suas considerações sobre o futuro do ser humano – um pêndulo que oscila entre a redenção imaginada e o apocalipse provável. “Nesse planeta, um grande número de civilizações pereceu em sangue e horror. Naturalmente, é de se desejar que o planeta algum dia experimente uma civilização que renuncie a tudo isso...”
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Fonte: http://filosofialimite.blogspot.com.br/2010/12/o-anjo-da-hidtoria-por-jose-francisco.html


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