Há já algum tempo, estava para fazer uma postagem a respeito da intervenção de Olavo de Carvalho no debate nacional. É, no mínimo, preocupante o modo como alguns jovnes têm se tornado paritdários do que Carvalho defende. Eis que me chega às mãos textos de uma polêmica na qual tomou parte o Prof. Bertone de Oliveira Sousa (UFT), contestando as posições carvalhistas. Reproduzo aí abaixo um desses textos.
Por Bertone de Oliveira Sousa
Combater a desinformação, especialmente em questões históricas, é uma tarefa árdua, demanda tempo e muito esforço. Já afirmei em outro texto que a história é um campo permanente de disputa, permeada por tentativas de silenciamento da memória em nome da legitimação de uma hegemonia. Posso estar cansando meus leitores ao falar novamente de Olavo de Carvalho, mas o silêncio ante a grosseria da desinformação deliberada pode ser muito prejudicial a alguns.
Olavo publicou um texto tentando refutar minhas críticas a ele no seu site Mídia sem Máscara. Ele inicia me chamando de insignificante e não dedica menos do que sete páginas (com promessa de continuação) a refutar algumas de minhas colocações, além de vários posts enfezados atacando minha pessoa no facebook. Se considero alguém insignificante não dedico meu tempo a escrever textos refutando suas críticas; essa é a primeira questão lógica que leva o idoso jornalista a entrar em contradição logo no começo do texto.
Na internet, ninguém é insignificante, se se julgar pela difusão que suas ideias podem ter; a internet é um espaço democrático de expressão de opiniões; seu alcance e rapidez de propagação pode tornar qualquer texto, vídeo, documento rapidamente conhecido por milhares de pessoas. Foi assim, aliás, que Olavo, um jornalista de influência insignificante antes do advento da internet, conseguiu, por meio dela, difundir todo tipo de opiniões infundadas e ainda ganhar dinheiro de alguns trouxas com seu seminário on line de Filosofia.
Aqui, podemos sair das paredes da academia e levar discussões históricas a um variado público de forma prazerosa e dialógica, sem o recurso da linguagem hermética que amiúde caracteriza a produção acadêmica. É possível que os textos deste blog estejam causando dores de cabeça ao energúmeno jornalista, uma vez que ele diz que estou emporcalhando sua reputação. Na verdade, não estou emporcalhando sua reputação, o que tenho feito é dissertar acerca de quão porcas são suas diatribes. Então ele diz: “em cada parágrafo o sr. Bertone comprime tantos erros e absurdidades que a sua desmontagem requereria muito mais que dezoito linhas de contestação para cada linha de texto.”
Nenhuma contestação às maluquices ditas e escritas por Olavo foi feita neste blog sem fundamentação e indicação de fontes. É muito curioso ver como ele levanta objeções a essas “absurdidades” e “erros”. Como demonstrarei, doravante sua argumentação será construída a partir de fontes dúbias, na melhor das hipóteses fontes que não são definitivas, mas que ele as toma como tal. Em sua pretensa amostragem, ele começa pelo tema da participação americana no golpe militar de 1964. Esse é o único tema de todo o texto.
Ele transcreve um trecho de meu texto “A Confusão mental dos seguidores de Olavo de Carvalho”, onde coloco que a CIA financiava órgãos de oposição ao governo Goulart e que Kennedy fez pressão sobre o presidente para um alinhamento contra Cuba. E prossegue:
1. Se John Kennedy pressionou o governo Goulart para que se alinhasse aos EUA contra Cuba, é que, obviamente, contava com esse governo como um possível aliado na luta contra Fidel Castro, não como um inimigo que tivesse de ser derrubado.
A coisa torna-se ainda mais evidente quando se sabe que João Goulart tomou posse como sucessor de um presidente que era abertamente, escandalosamente pró-Cuba, ao passo que ele próprio, Goulart, não tomara nenhuma posição pública em favor de Fidel Castro até então.
Era natural, portanto, que Washington visse na troca de presidentes a esperança de alguma mudança de rumo na política externa brasileira.
O que havia de escandaloso em um presidente ser pró-Cuba? Que Washington pudesse esperar uma mudança de rumo com um convite a um alinhamento contra Cuba justifica as posições estratégicas do governo americano contra o socialismo, mas daí a esperar que o governo brasileiro deveria necessariamente aquiescer é desconsiderar a soberania nacional em matéria de política externa, de onde se conclui que ser abertamente pró-Cuba não poderia ter nada de escandaloso, exceto para os setores conservadores que viam nisso uma ameaça a seus interesses.
2. Mesmo supondo-se que fosse verdade o que afirma o sr. Bertone, que “a CIA financiava órgãos daqui para fazerem oposição ao governo Goulart” – coisa que discutirei mais adiante –, a distância entre financiar partidos e outras entidades de oposição e tramar um golpe é imensurável. Uma coisa é, aliás, o oposto da outra. As entidades assinaladas tinham um papel notório na luta ideológica, atuando através do debate doutrinal e da propaganda. Isso é o que fazem entidades de oposição numa democracia normal. Financiá-las seria apenas favorecer um dos lados na luta democrática. Para acreditar que isso fosse prova de participação num golpe, seria preciso admitir a premissa de que toda propaganda contra um governo é golpista – premissa que o sr. Bertone, num autêntico ato falho freudiano, subscreve sem perceber que o faz.
Essa parte é muito curiosa. Olavo tem denunciado acerbamente que o governo brasileiro possui ligação com grupos “terroristas” e faz intensa propaganda para se manter no poder; a partir disso ele já tirou a absurda conclusão de que o PT é um partido totalitário. Aqui, na verdade, é ele que cai num ato falho freudiano, porque então quer dizer que a direita pode financiar propaganda contra governos democráticos de esquerda, mas a esquerda não. Além disso, essas entidades eram financiadas pela CIA, conforme fontes que citarei adiante. Se ele considera isso normal, por que então ele já se descabelou ao dizer que órgãos e agentes no Brasil eram patrocinados por Moscou para difundir ideais socialistas? Por outro lado, é preciso ser muito cretino pra dizer que financiar órgãos de oposição ao governo era parte apenas de um joguinho ideológico e não de uma estratégia maior de desestabilização daquele governo.
Depois ele diz que não está provada nenhuma participação do governo americano no golpe de 1964 e questiona minha afirmação de que os órgãos de oposição movimentaram um fundo de 12 bilhões de dólares em campanhas contra o governo. Eu havia citada naquele parágrafo dois autores: Evaldo Viera e Boris Fausto. Evaldo Viera escreveu o capítulo “Brasil: do golpe de 1964 à redemocratização” na obra “Viagem Incompleta: a grande transação” organizada por Carlos Guilherme Mota. Na página 192, Viera escreveu o seguinte: “Com o tempo, foram divulgados documentos que confirmaram a cooperação dos Estados Unidos da América na derrocada do governo legal no Brasil”.
O pesquisador da UFU Vitor Amorim de Angelo também confirmou a participação americana no golpe a partir da conhecida Operação Brother Sam (confira aqui). Ele diz que antes da intervenção direta os Estados Unidos optaram pela via diplomática (tentar cooptar o governo brasileiro por um alinhamento contra Cuba, por exemplo) e, com o fracasso desta, o financiamento de grupos de oposição. Como essa investida também malogrou, ele menciona que Thomas Mann se manifestou favorável à derrubada de governos democráticos de esquerda na América Latina e que não haveria, por parte dos Estados Unidos, nenhuma retaliação a tentativas de golpes. Por fim, ele menciona que Lincoln Gordon solicitou apoio logístico da marinha americana aos golpistas e não ficou apenas nisso:
Os Estados Unidos haviam autorizado o envio de 100 toneladas de armas leves e munições, navios petroleiros, uma esquadrilha de aviões de caça, um navio de transporte de helicópteros com 50 unidades a bordo, tripulação e armamento completo, um porta-aviões, seis destroieres, um encouraçado, um navio de transporte de tropas e 25 aviões para transporte de material bélico.
Nem tudo, porém, chegou a ser enviado para o Brasil; e o que foi, nem mesmo foi utilizado. Afinal, não houve qualquer resistência do governo deposto e o golpe superou em muito as expectativas militares. Diante da radicalização política do país na época, e sobretudo em razão dos acontecimentos imediatamente anteriores à deposição de Jango, esperava-se uma resistência que nunca chegou a se concretizar.
Voltando ao fundo de 12 bilhões de dólares, Olavo acha que estou delirando porque não conhece a historiografia nacional sobre o golpe. No livro “História Geral do Brasil”, organizado por Maria Yedda Linhares, há um capítulo intitulado “A modernização autoritária: do golpe militar à redemocratização 1964/1984”, assinado por Francisco Carlos Teixeira da Silva, atualmente professor de História Contemporânea do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Na nona edição de 1990, página 364, ele escreveu:
[…] a diplomacia norte-americana, muito pouco sutil, utilizava-se da “Aliança para o Progresso”, só fornecendo alimentos e recursos aos estados e municípios que perfilhassem uma evidente oposição ao governo federal, chegando em alguns casos – como no Nordeste – a discriminar populações em estado de calamidade. Em segundo lugar, foi incentivada a doação de grandes somas a dois institutos formados para organizar e centralizar a ação contra o governo Goulart, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que passam a receber fundos das empresas norte-americanas e alemãs estabelecidas no Brasil, em estreito contato com a CIA. Aos poucos, ambas as instituições passaram a ter uma ação em comum, procurando a assessoria direta de homens da Escola Superior de Guerra (ESG), como o Coronel Golbery do Couto e Silva ou Heitor Herrera, e assumindo o apoio financeiro da campanha de políticos que defendessem o capital estrangeiro e lutassem contra a reforma agrária, chegando a movimentar fundos no montante de US$ 12 bilhões.
Olavo deveria ao menos buscar essas referências antes de dizer que estou fazendo afirmações sem fontes num “furor inventivo”. Eu não poderia ser tão irresponsável a esse ponto. Boris Fausto não menciona o montante de 12 bilhões de dólares, mas também afirma que o IBAD obteve recursos da CIA, no livro “História Geral do Brasil”, oitava edição de 2000, página 452. A CIA, contudo, não foi a única financiadora do instituto: industriais, banqueiros e grandes proprietários rurais no Brasil também faziam contribuições.
Uma análise acurada da derrocada da experiência democrática em 1964 deve levar em consideração os fatores externos e internos. Os historiadores são praticamente unânimes em afirmar que estes últimos foram determinantes. Como o eixo da discussão é apenas a problemática da intervenção externa, em nenhum momento afirmei que Washington tramou e realizou o golpe militar no Brasil, mas que participou efetivamente de sua concretização. Vou citar outra referência bibliográfica: Boris Fausto. No livro “Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada”, escrito em co-autoria com Fernando Devoto, publicado pela editora 34, na página 382, Fausto assinala:
Muito se tem discutido sobre os fatores que precipitaram o fim da experiência democrática brasileira entre 1945 e 1964. Os argumentos vão desde os de ordem econômica, referindo-se ao esgotamento de um modelo de acumulação, até os de ordem política, enfatizando o problema da paralisia decisória. Tampouco se deve ignorar o papel do governo dos EUA, principalmente depois que Brizola, ainda como governador do Rio Grande do Sul, nacionalizou uma grande empresa americana (fevereiro de 1962) e Jango, mais tarde, optou pelo caminho da radicalização. Foram congelados recursos da Aliança para o Progresso destinados à União, enquanto eram generosamente concedidos a “ilhas de sanidade administrativa”, na expressão do embaixador Lincoln Gordon, como era o caso do então estado da Guanabara, governado por Carlos Lacerda. Entidades golpistas receberam apoio da CIA, por caminhos indiretos, e, por fim, o governo Lyndon Johnson acionou secretamente uma operação de apoio ao movimento militar, que não se revelou necessária.
Essa citação converge com o que foi afirmado no artigo de Vitor Amorim mencionado acima. A intervenção militar direta americana só não aconteceu porque não houve resistência ao golpe. Meu exemplar dessa obra é a primeira edição de 2004. É um trabalho relativamente recente e que nada tem a ver com propaganda soviética como o sr. Olavo sugeriu para esse tipo de abordagem. Se o leitor quiser conferir o conteúdo dos documentos onde o embaixador Lincoln Gordon apoiou o movimento golpista e os telegramas e, pode acessar aqui. O site elenca e disponibiliza sete documentos sobre a solicitação de intervenção americana e planos militares para auxiliar a derrubada de Jango.
Olavo diz que esses documentos são falsos citando como fonte… ele mesmo. Das três fontes que ele mencionou para “provar” a ideia da intervenção americana como mito, todas foram produzidas por ele. Na primeira, um artigo publicado originalmente no jornal O Globo em 2004, ele apenas contesta dizendo que “não se prepara um golpe com dois dias de antecedência”. As referências acima o desmentem. Só que ele atribui à esquerda uma fala que não provêm dela; o golpe não foi preparado em Washington, ele foi preparado aqui dentro mesmo, com o apoio da CIA a movimentos de oposição e, por fim, com o envio de armas e aviões de guerra que não chegaram a ser utilizados.
A segunda fonte ele atribui a um ex-agente secreto da Tchecoslováquia que disse que esses documentos foram forjados. Mas por que Ladislav Bittman, o suposto agente, não apresentou evidências de que esses documentos foram forjados? Por que não escreveu uma obra, não veio a público esclarecer, não convocou a imprensa? Fica o dito pelo não dito, em suma, uma fonte que também não prova nada.
Logo em seguida ele menciona como outra fonte uma entrevista que realizou com um coronel que nega todo esse procedimento. As falas, que mais parecem frases de balões de cartum, se assemelham ainda a um fragmento de uma peça de teatro mau ensaiada. Que Olavo de Carvalho é saudosista da ditadura, isso todos nós já sabemos. Se ele quer enaltecer o golpe como um remédio contra o “mal” comunista, também é opção ideológica dele, mas daí a querer burlar a história pra dizer que não houve apoio estrangeiro explícito, é inaceitável. Essa interferência americana, sobretudo a partir de 1963, é um capítulo tão conhecido na história nacional e tão amplamente abordado, que negá-lo não passa de mera trapaça ideológica. Recentemente, a própria presidente Dilma manifestou surpresa ao assistir a um documentário (“O Dia que durou 21 anos”) onde também são apresentados documentos da intervenção americana nesse processo.
Depois, Olavo conclui com esta pérola:
E um historiador que, sem nada investigar pessoalmente, sem nada pesquisar nem mesmo em livros, sai difamando alguém por uma opinião fundamentada, inventa absurdidades para desmenti-lo e ainda cita fontes inexistentes, é com toda a certeza um charlatão que deveria ser expelido de toda atividade de ensino, para não dizer dos círculos mais altos da vida intelectual.
De onde ele tirou que eu não investiguei nada pessoalmente, nem “mesmo em livros”? Apresentei aqui três obras de referência sobre o assunto, além de outras confiáveis. Quem será que está usando fontes falsas de nós dois e “delirando num furor inventivo”? E quem está usando fontes inexistentes? O sujeito ignora a historiografia nacional sobre o tema e quer dizer que estou inventando, como se eu tivesse simplesmente criado um blog para dizer coisas ao vento e isso não fosse repercutir negativamente em minha imagem como professor universitário. O filósofo de boteco poderia estudar um pouco mais a história do país e parar de vociferar asneiras. E ele indicou ao final que vai continuar. Vamos esperar para ver que outras pérolas o sr. Olavo de Carvalho vomitará em seu site. Ele pode me chamar de vigarista o quanto quiser do auge de seu pedestal achológico. Os leitores inteligentes saberão julgar isso.
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