Corria o ano de 2002 e, numa conferência em Lisboa, o renomado neurocientista lusitano António Damásio fazia uma exposição a respeito das suas pesquisas nos Estados Unidos, onde é radicado e leciona na University of Southern California. Após a conferência, no momento das poucas perguntas, alguém indagou-lhe que conselho daria a um jovem que estivesse a iniciar a vida acadêmica no que se refere aos campos temáticos de estudo. Na sua resposta, Damásio foi categórico ao dizer que um dos campos de significativa relevância é o que envolve ensino, aprendizagem e as novas descobertas da neurociência. Isto é, na educação, nos processos pedagógicos, entender como o cérebro funciona e ter em conta a dimensão social, para assim, vamos lá, na falta de melhor categorização, digamos ela: realizar a transposição didática. Os anos passaram, e a asserção de Damásio foi cada vez mais confirmada. Aos incautos, que fique claro: não se trata isso de uma "biologização" da educação, nem tampouco de uma revalorização de uma determinada perspectiva psicológica de 'caráter natural'. Os horizontes abertos pela neurociência são bem mais complexos e, ao mesmo tempo, promissores. A seguir, um texto versando sobre o tema, tendo em atenção a articulação com a formação docente.
Por Fernanda Antoniolo Hammes de Carvalho (Universidade Federal do Rio Grande/FURG/RS)
Introdução
Diante
das inúmeras mudanças na sociedade atual, geradas principalmente pelos avanços
tecnológicos que nos disponibilizam informações, faz-se necessária uma cultura
de aprendizado que gere conhecimento. Para tanto, há que se buscar um sistema
educacional democrático o qual assuma o compromisso de promover situações de
aprendizagem nas quais as exigências da sociedade moderna sejam atendidas, para
que todos possam desenvolver suas capacidades, mediante uma educação que aceite
a diversidade. Para isso, é imprescindível explorar e estimular o potencial de
aprender de todos os cidadãos. Torna-se obrigatório, então, promover a
reconfiguração pedagógica nos ambientes educativos, pois o estímulo do
potencial dos estudantes oportunizará um melhor desempenho individual,
diminuindo a exclusão social.
Assim,
assumir a necessidade de estratégias metodológicas que garantam o
desenvolvimento do potencial cognitivo de cada aluno é uma condição para
assegurarmos a participação efetiva do mesmo na sociedade.
Emerge
desse panorama um questionamento: se a sociedade está em constante
transformação e se a educação, nela inserida, também passa por mudanças, como o
professor, ponto extremo da realização dessas alterações no meio educacional,
está enfrentando a complexidade dos novos saberes necessários ao aprimoramento
do ensinar?
Considerando
que muitas pesquisas no campo educativo afirmam ser o professor um dos
principais protagonistas da educação (Demo, 2001; Assmann, 2001; Morin, 2002),
cabe ao educador adotar um trabalho de parceria, instaurando as condições
indispensáveis para que o aprendiz desenvolva a inteligência, e não a simples
memorização. Conforme Fonseca: "O professor tem o dever de preparar os
estudantes para pensar, para aprender a serem flexíveis, ou seja, para serem
aptos a sobreviver na nossa aldeia de informação acelerada (Fonseca, 1998, p.
315)".
Por
isso, é preciso que se abandonem os métodos pedagógicos instrucionais os quais
não permitem dar a devida atenção à individualidade, e que se passe a
compreender melhor como podemos lidar com certas características pessoais de
nossos alunos. Esse constituirá o primeiro passo para o professor ser um
participante ativo no processo de aprendizagem do aluno, pois orientará o
docente na identificação, mobilização e utilização de métodos e recursos
variados.
Nesse
sentido, as ciências do cérebro, que avançam vertiginosamente, podem contribuir
para a renovação teórica na formação docente, adicionando informações
científicas essenciais para a melhor compreensão da aprendizagem como fenômeno
complexo. Essa perspectiva reflete uma visão contemporânea, sendo, inclusive,
atual foco de atenção da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos
(OCDE), que, reconhecendo o impacto das ações educacionais sobre o
desenvolvimento de uma nação, criou o Centro de Pesquisa Educacional e Inovação
(Cedi). Como desdobramento desse interesse, o Cedi tem financiado inúmeras
pesquisas baseadas na interlocução entre educação e neurociências.
A
neurociência cognitiva tem como escopo, em especial, as capacidades mentais
mais complexas, como a linguagem e a memória, sendo que essa última tem sido
indicada como um dos principais alicerces da aprendizagem humana (Izquierdo,
2002; Lent, 2001; Assmann, 2001; Ratey, 2001). Assim, é possível preconizar que
achados resultantes de estudos nessa área colaboram para aprimorar o
entendimento de como se dá a aprendizagem. Segundo Ratey (2001), ao aprendermos
tudo o que podemos acerca do cérebro, ao conhecer como ele faz o que faz,
passamos a nos tornar mais responsáveis pela maximização de nossas forças e
pela minimização de nossas fraquezas, preparando-nos para participar do
processo de construção do saber e do mundo.
Com
base nesse ponto de vista, passa-se agora a promover uma interlocução entre
neurociência e educação, defendendo um diálogo criativo entre ambas e
apresentando uma visão da interferência positiva dos conhecimentos
neurocientíficos na educação, em especial na formação docente.
Cérebro e aprendizagem
O
homem percebe o mundo por meio de seu aparelho perceptual, num processo
interpretativo dos fenômenos que envolve seus sentidos e sua memória. Nas
palavras de Izquierdo:
Memória é a aquisição, a
formação, a conservação e a evocação de informação. A aquisição é também
chamada de aprendizagem: só se 'grava' aquilo que foi aprendido. A evocação é
também chamada de recordação, lembrança, recuperação. Só lembramos aquilo que
gravamos, aquilo que foi aprendido (Izquierdo, 2002, p. 9).
Complementando,
Lent preconiza que "percepção é a capacidade de associar as informações
sensoriais à memória e à cognição, de modo a formar conceitos sobre o mundo,
sobre nós mesmos e orientar nosso comportamento" (Lent, 2001, p. 557).
De
acordo com a neurociência cognitiva, cujo foco de atenção é a compreensão das
atividades cerebrais e dos processos de cognição, a aprendizagem humana não
decorre de um simples armazenamento de dados perceptuais, e sim do
processamento e elaboração das informações oriundas das percepções no cérebro.
O
indivíduo, permanentemente em busca de respostas para as suas percepções,
pensamentos e ações, tem suas conexões neurais em constante reorganização e
seus padrões conectivos alterados a todo momento, mediante processos de
fortalecimento ou enfraquecimento de sinapses. No cérebro, há neurônios prontos
para a estimulação. A atividade mental estimula a reconstrução de conjuntos
neurais, processando experiências vivenciais e/ou linguísticas, num fluxo e
refluxo de informação. As informações, captadas pelos sentidos e transformadas
em estímulos elétricos que percorrem os neurônios, são catalogadas e arquivadas
na memória. É essa capacidade de agregar dados novos a informações já
armazenadas na memória, estabelecendo relações entre o novo e o já conhecido e
reconstruindo aquilo que já foi aprendido, num reprocessamento constante das
interpretações advindas da percepção, que caracteriza a plasticidade do cérebro
(Izquierdo, 2002; Lent, 2001; Ratey, 2001). Para Mora:
A aprendizagem, portanto,
é o processo em virtude do qual se associam coisas ou eventos no mundo, graças
à qual adquirimos novos conhecimentos. Denominamos memória o processo pelo qual
conservamos esses conhecimentos ao longo do tempo. Os processos de aprendizagem
e memória modificam o cérebro e a conduta do ser vivo que os experimenta (Mora,
2004, p. 94).
Assim,
o cérebro pode ser visto como um sistema dinâmico que tem sua complexidade
funcional subsidiada pela sua interação com outros sistemas nele presentes, não
podendo ser interpretado como depósito estático para o armazenamento de
informação.
Segundo
Posner e Raichle (2001), os sistemas cognitivos são aqueles sistemas mentais
que regem as atividades diárias do ser humano - como ler, escrever, conversar,
planejar, reconhecer rostos. Alguns sistemas comportam outros sistemas,
agregando complexidade na geração de um comportamento. O sistema cognitivo da
linguagem, por exemplo, envolve falar, ler e escrever, ativando diferentes
estruturas cerebrais. Esses diferentes sistemas cognitivos têm como base
distintas operações mentais: uma dada tarefa mental, como jogar xadrez, pode
ativar diferentes operações mentais, as quais estão relacionadas a redes
neurais de áreas cerebrais específicas. Acrescenta-se a essas proposições a
visão de Moraes (2004), para quem a aprendizagem progride mediante fluxos dinâmicos
de trocas, análises e sínteses autorreguladoras cada vez mais complexas,
ultrapassando o acúmulo de informações e sendo reconstruída, via transformação,
por meio de mudanças estruturais advindas de ações e interações provocadas por
perturbações a serem superadas.
A
memória é responsável pelo armazenamento de informações, bem como pela evocação
daquilo que está armazenado. E a aprendizagem requer competências para lidar de
forma organizada com as informações novas, ou com aquelas já armazenadas no
cérebro, a fim de realizar novas ações. Aprender envolve, assim, a execução de
planos já formulados, resultando de ações mentais bem pensadas, ensaiadas
mentalmente e que influenciam o planejamento de atos futuros. O cérebro está
preparado para funcionar com o feedback interno e externo, pois é autorreferente, isto é,
"o que é recebido em qualquer nível cerebral depende de tudo o mais que
acontecer nesse nível, e o que é enviado para o nível seguinte depende do que
já estiver acontecendo nesse nível" (Ratey, 2001, p. 202).
Apesar
da proximidade entre os conceitos de aprendizagem e memória, Lent (2001) os
distingue de forma bastante clara:
O processo de aquisição de
novas informações que vão ser retidas na memória é chamado aprendizagem.
Através dele nos tornamos capazes de orientar o comportamento e o pensamento.
Memória, diferentemente, é o processo de arquivamento seletivo dessas
informações, pelo qual podemos evocá-las sempre que desejarmos, consciente ou
inconscientemente. De certo modo, a memória pode ser vista como o conjunto de
processos neurobiológicos e neuropsicológicos que permitem a aprendizagem
(Lent, 2001, p. 594).
Considerando
a flexibilidade do cérebro para reagir às demandas do ambiente, explicada pela
sinaptogênese - capacidade de formação de novas conexões, sinapses, entre as
células cerebrais -, e o fato de que o conhecimento deve ser codificado nas
ligações entre os neurônios, a aprendizagem, possibilitada pela plasticidade
cerebral, modifica química, anatômica e fisiologicamente o cérebro, porque
exige alterações nas redes neuronais, cada vez que as situações vivenciadas no
ambiente inibem ou estimulam o surgimento de novas sinapses mediante a
liberação de neurotransmissores (Mora, 2004).
Oferecer
situações de aprendizagem fundamentadas em experiências ricas em estímulos e
fomentar atividades intelectuais pode promover a ativação de novas sinapses. As
informações do meio, uma vez selecionadas, não são apenas armazenadas na
memória, mas geram e integram um novo sistema funcional, caracterizando com
isso a complexificação da aprendizagem. Uma informação pode, pela desordem que
gera, levar à evolução do conhecimento do indivíduo, pois ele precisará
desenvolver estratégias cognitivas a fim de reorganizar e retomar o equilíbrio
na construção do conhecimento. E isso é obtido por meio de um processo dinâmico
e recursivo presente na reconstrução do próprio ato de conhecer. Segundo Demo,
"a aprendizagem, embora dependa de substratos físicos estruturados
caracteriza-se pelo processo de contínua inovação, maleável por natureza,
flexível e dinâmico" (Demo, 2001, p. 50).
Para
Maturana e Varela (2001), a aprendizagem surge de um acoplamento estrutural: as
interações recíprocas entre o indivíduo e o meio fazem surgir mudanças
estruturais na organização do ser vivo e do contexto em que está inserido;
perante as informações, o organismo, num processo auto-organizador, opera com
propriedades emergentes, a fim de se adaptar às condições cambiantes presentes
no processo de conhecer.
Transferir
para a educação, conforme Assmann (2001), o entendimento da aprendizagem como
acoplamento estrutural implica uma visão nova do aprender, a qual passa a estar
fundamentada no fato de que experiências de aprendizagem em contextos
pedagógicos geram alterações na estrutura do indivíduo. As experiências em sala
de aula estimulam reflexões recursivas sobre os pensamentos, sentimentos e
ações, permitindo que a aprendizagem seja concebida como processo
reconstrutivo, envolvendo autorreorganização mental e emocional daqueles que
interagem nesse contexto.
Morin
afirma: "Aprender não é somente reconhecer o que, virtualmente, já era
conhecido; não é apenas transformar o desconhecido em conhecimento. É a
conjunção do reconhecimento e da descoberta. Aprender comporta a união do
conhecido e do desconhecido" (Morin, 1999, p. 70).
A
memória e a aprendizagem são fundamentais para a evolução do indivíduo como ser
social, pois ultrapassam a simples apreensão das informações pelo sujeito
aprendente, passando a fundamentar seu pensamento e suas ações.
Pensar é, com efeito, um
processo, uma função biológica desempenhada pelo cérebro. O processamento do
pensamento é o ato de receber, perceber e compreender, armazenar, manipular,
monitorar, controlar e responder ao fluxo constante de dados. A capacidade para
ligar de forma competente as informações oriundas das áreas de associação
motora, sensorial e mnemônica é decisiva para o processamento do pensamento e
para a consideração e planejamento de futuras ações (Ratey, 2001, p. 198).
Deve-se
ressaltar também que as emoções desempenham um papel decisivo na aprendizagem.
Posner e Raichle (2001), retomando os estudos de Friedrich e Preiss, lembram
que o sistema límbico, formado por tálamo, amígdala, hipotálamo e hipocampo,
avalia as informações, decidindo que estímulos devem ser mantidos ou
descartados, dependendo a retenção da informação no cérebro da intensidade da
impressão provocada nele. A consciência da experiência vivenciada é atingida
quando, ao passar pelo córtex cerebral, compara-se a experiência com reflexões
anteriores. Assim, quando conseguimos estabelecer uma ligação entre a
informação nova e a memória preexistente, são liberadas substâncias
neurotransmissoras - como a acetilcolina e a dopamina - que aumentam a concentração
e geram satisfação.
É
dessa maneira que emoção e motivação influenciam a aprendizagem. Os
sentimentos, intensificando a atividade das redes neuronais e fortalecendo suas
conexões sinápticas, podem estimular a aquisição, a retenção, a evocação e a
articulação das informações no cérebro. Diante desse quadro, os autores
defendem a importância de contextos que ofereçam aos indivíduos os
pré-requisitos necessários a qualquer tipo de aprendizado: interesse, alegria e
motivação. Conforme Lent, "a razão é fortemente relacionada com a emoção.
De um modo ou de outro, nossos atos e pensamentos são sempre influenciados
pelas emoções" (Lent, 2001, p. 671).
Dentro
de uma perspectiva de aprendizagem sustentada nas relações entre os elementos
constituintes da percepção - sentidos e memória - e no pensamento sistêmico, no
qual essas relações acontecem inseridas na complexidade da reestruturação
permanente do conhecimento no cérebro/mente, é imprescindível que o professor
se reconheça como responsável pela configuração de um ambiente que propicie a
autorreorganização dos indivíduos.
Para
Fonseca (1998), ainda que a inteligência do indivíduo dependa, pela interação
entre as células neuronais, do desenvolvimento biológico, somente as mediações
que o indivíduo sofre em suas interações com o meio ambiente onde está inserido
é que permitirão expandir essa inteligência em todo seu potencial.
À
luz desses argumentos, entender como o aluno aprende permite ao professor,
assim, buscar uma forma mais adequada de 'didatizar' os conhecimentos
científicos, pois compreender a forma de cognição do aluno melhora a
organização do ensino.
Conhecimentos neurocientíficos
na formação de professores
Evidentemente,
vivemos no século do estudo da mente e do cérebro. O interesse na área,
ancorado no progresso tecnológico, tem garantido avanços científicos
significativos para a neurociência, contribuindo intensamente para promover com
maior eficácia o entendimento da mente humana.
Há
uma busca exaustiva no campo científico da neurociência em torno de como o
cérebro age. São inúmeros os estudos que têm sido publicados, em revistas
especializadas ou não, e vários os congressos realizados na área da
neurociência. Usando de recursos tecnológicos sofisticados, como técnicas de
mapeamento de imagens, hoje é possível não apenas analisar detalhadamente a
anatomia do cérebro, mas também identificar que partes dele trabalham quando se
realiza uma ação.
Obviamente,
instaura-se aqui a possibilidade de aprender como as pessoas organizam seus
processos cognitivos, bem como de reconhecer as diferenças entre essas
organizações. Essa perspectiva permite que a evolução da ciência do cérebro se
constitua numa das principais alternativas para compreender a complexidade
cognitiva humana.
Para
Pozo (2002), um conhecimento mais aproximado da forma de funcionamento do
processo de aprendizagem permite uma compreensão mais adequada do aprender e do
ensinar, superando-se dificuldades tanto do aprendiz quanto daquele que ensina
- isto é, daquele que ajuda os outros a aprender. E esse conhecimento pode
auxiliar os mestres a reestruturarem o ensino, proporcionando àquele que
aprende um melhor desempenho na tarefa de aprender.
Complementando
essa ideia, Shore (2000) salienta que o conhecimento científico crescente
produzido pela neurociência deve ser dirigido àqueles que, de algum modo,
colaboram profundamente no desenvolvimento cognitivo das crianças - em
especial, pais e professores, interventores reconhecidos na aprendizagem desses
indivíduos.
Entretanto,
apesar de a mídia ter constantemente explorado, de forma bastante intensa, o
tema mente/cérebro, colaborando para o aumento das informações sobre o assunto,
esses conhecimentos têm sido apresentados de forma superficial e desconectada
de seu vínculo com a educação. Além disso, a produção literária nacional com
uma visão unificada das relações entre as ciência da mente/cérebro e a educação
é escassa. Assim, aborda-se de forma mais densa o papel significativo da
biologia da mente na educação. Os livros e materiais disponíveis no mercado
pouco oferecem nesse sentido ou, quando apresentam informações científicas mais
especializadas, destinam-se a um grupo seleto de profissionais e são
direcionados a áreas como medicina e psicologia, afastando-se das atividades do
professor.
Tardif
(2003) lembra que o objeto de trabalho do docente é o humano, e que isso tem
consequências relevantes para a prática profissional dos professores, o que
merece maior discussão. Conforme o autor, num dado grupo de alunos, existem
especificidades individuais, cabendo ao docente atingir cada um dos indivíduos:
Essa tarefa docente
envolve a disposição para compreender os alunos em suas particularidades
individuais e situacionais, acompanhando sua evolução no contexto em sala de
aula. (...) a disposição do professor para conhecer seus alunos como indivíduos
deve estar impregnada de sensibilidade e de discernimento a fim de evitar as
generalizações excessivas e de afogar a percepção que ele tem dos indivíduos
num agregado indistinto e pouco fértil para a adaptação de suas ações. Essa
predisposição para conhecer os alunos como indivíduos parece, aliás, muito
pouco desenvolvida nos alunos-professores (...). A aquisição de sensibilidade
relativa às diferenças entre os alunos constitui uma das principais
características do trabalho docente. Essa sensibilidade exige do professor um
investimento contínuo e em longuíssimo prazo, assim como a disposição de estar
constantemente revisando o repertório de saberes adquiridos por meio da
experiência (Tardif, 2003, p. 267).
Demo
(2005) indica a necessidade de propiciar uma formação mais eficiente aos
professores quanto à complexidade e à reconstrução presentes na aprendizagem.
Em relação a essa necessidade, o autor destaca a importância, com base em
diferentes vertentes teóricas advindas de áreas variadas, do estudo sobre a
aprendizagem na formação do professor, não só adotando como referencial as
ciências humanas e sociais, mas também reconhecendo o caráter interdisciplinar
da aprendizagem. Segundo Claxton (2005), se os professores não sabem em que
consiste a aprendizagem e como ela ocorre, tem as mesmas possibilidades de
favorecê-la ou de atrapalhá-la.
Para
Moraes e Torre (2004), a neurociência oferece conhecimentos que deveriam ser
aproveitados pelos docentes. Os referidos autores lembram que a aprendizagem é
proporcionada pela plasticidade do cérebro e sofre influência do ambiente.
Nesse caso, o professor, por meio de sua ação profissional, transmite estímulos
que podem vir a contribuir para a secreção de hormônios que provocam o
entusiasmo e o desejo de aprender ou o extremo oposto, o desinteresse.
Não
considerar esses pressupostos pode ocasionar uma visão equivocada dos
diferentes momentos de ensino e aprendizagem. Na ausência de informações de
como nosso cérebro faz o que faz, muitas vezes os professores atribuem o
insucesso no aprender à incapacidade de os alunos realizarem determinados tipos
de aprendizagem. Com isso, os professores se esquivam de sua responsabilidade
como mediadores da construção do conhecimento.
Em
contrapartida, oportunizar aos professores a compreensão de como o cérebro
trabalha dá condições mais adequadas para que ele estimule a motivação em sala
de aula e, de certa forma, assegura a possibilidade de sintonizar com os
diversos tipos de alunos, os quais terão suas capacidades mais profundamente
exploradas.
Indubitavelmente,
o ato pedagógico é extremamente relevante para a retenção e o processamento da
informação trabalhada em sala de aula, uma vez que as explicações e a atuação
docente não somente informam, como também oferecem dados os quais, colhidos nas
interações quando realmente vivenciadas, não se restringem às percepções sensíveis
e aparentes. Nesse caso, gesto e fala fornecem mensagens significativas,
pistas, a serem decodificadas. De acordo com Morin (1999), somos influenciados
pelos pensamentos dos outros de tal modo que, apesar de independentes,
dependemos das relações que construímos no ambiente em que nos encontramos.
Na
sala de aula, o que se fala e como se fala constituem
elementos desencadeadores de pensamentos e raciocínios. Tomando como exemplo as
informações visuais e auditivas veiculadas em um dado recurso didático, bem
como o comportamento docente, eles criam circunstâncias capazes de configurar
determinada identidade emocional, em virtude de pensamentos e memórias, que
evocam lembranças e manipulam a interpretação na mente. Segundo Izquierdo
(2002), as emoções e o estado de ânimo interferem na formação e na evocação de
memórias e, como qualquer função cognitiva que envolve sinapses, quanto maior o
número de estímulos condicionados dessa memória, tanto maior a retenção ou a
evocação de uma dada informação.
Quantos
professores sabem que um simples trabalho de memorização de diferentes tipos de
textos exige diferentes níveis de oxigenação do cérebro? Que quanto mais
complexa a atividade proposta e à medida que se eleva o grau de raciocínio, o
fluxo sanguíneo no cérebro é mais intenso? O professor tem noção de que sua
ação pedagógica desencadeia no organismo do aluno reações neurológicas e
hormonais que podem ter influência na motivação para aprender? Como pode o
professor desconhecer a dinâmica mente/cérebro? Basta a análise dessas questões
para que se compreenda a importância desse tipo de informação na adequação de
metodologias de ensino.
Do
reconhecimento de que a compreensão do cérebro é crucial para o ato pedagógico,
surge a necessidade de refletir sobre um novo saber disciplinar baseado nos
conhecimentos neurocientíficos, os quais poderiam ser vinculados às disciplinas
direcionadas à aprendizagem humana. A articulação entre neurociências e
educação pode ocorrer por meio da renovação de um componente já existente ou
pelo acréscimo de um novo componente curricular nos cursos de formação de
professores. Sua prioridade deve ser a de adicionar informações científicas e
subsidiar futuras ações práticas, não se constituindo se constituindo apenas em
mais um saber disciplinar, mas em um saber pertinente e útil para a prática
profissional da docência. Como preconiza Willians: "A pesquisa sobre o
cérebro manifesta o que muitos educadores sabem intuitivamente: que os alunos
aprendem de diversas maneiras e quanto mais maneiras se apresentarem, tanto
melhor aprendem a informação" (Williansapud Moraes e Torre,
2004, p. 88).
Esse
novo saber passaria a constituir um forte embasamento teórico para o saber-fazer docente, pois
possibilitaria como consequência não só a revisão dos processos de
aprendizagem, como também um melhor conhecimento do processo de ensinar,
imprimindo uma reorientação da transposição didática. Trata-se de propor um
saber disciplinar que embasa e se aprimora num saber profissional, pois ao
descobrir o que a neurociência cognitiva pode oferecer à educação e vice-versa,
na perspectiva de que esses saberes se complementam, se enriquecem e se
necessitam, podemos entrelaçar teorias científicas com a prática docente e,
consequentemente, fundamentar o saber pragmático dos professores. De acordo com
a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE):
Nas próximas décadas,
temos boas possibilidades de desvendar as complexidades do cérebro e
compreender, pelo menos, a natureza da memória e da inteligência (por exemplo,
e o que realmente acontece quando o aprendizado ocorre). Quando atingirmos esse
objetivo, seremos capazes de reassentar nossa prática educativa sobre uma
sólida teoria da aprendizagem (Organização de Cooperação e Desenvolvimento
Econômicos, 2003, p. 46).
O
professor, ainda que deva assumir a posição de especialista de sua disciplina,
necessita assumir, concomitantemente, a posição de didata da disciplina, e isto
acontecerá na medida em que sua formação permita compreender onde e como
ocorrem as aprendizagens (Meirieu, 1998; Zabalza, 2004).
Nesse
caso, a interlocução entre neurociências e educação influenciaria a futura ação
pedagógica dos acadêmicos. Os conteúdos neurocientíficos podem vir a colaborar
substancialmente no melhor desempenho docente, uma vez que professores que
compreendem a aprendizagem como processo humano que tem raízes biológicas e
condicionantes socioculturais do conhecimento adotam uma gestão mais eficaz
tanto das emoções quanto da aprendizagem de seus estudantes.
Considerações finais
A
necessidade de aproximar os achados na área da neurociência da educação
sustenta a premissa de que instituições responsáveis pela formação de
professores precisam examinar e discutir os componentes curriculares das
licenciaturas, revendo a estrutura desses cursos, a fim de que os alunos, futuros
profissionais da educação, possam buscar otimizar sua ação pedagógica.
Em
primeiro lugar, pelo reconhecimento de que os componentes curriculares advindos
das áreas de psicologia e didática dos cursos de formação de docentes podem
abordar conhecimentos neurocientíficos, pois, em geral, contemplam em seus
programas questões como memória, emoção, desenvolvimento do sistema nervoso,
dificuldades de aprendizagem e comportamento humano. Com isso, é possível
defender a verificação não só da inserção desses temas, mas também de como eles
são explorados como conteúdos programáticos das áreas de psicologia e didática
nos currículos atuais. Uma análise cuidadosa dos quadros curriculares dos
cursos de formação de professores provavelmente poderá revelar a necessidade de
renovação de alguns dos componentes curriculares, para a sua adaptação às
descobertas no campo da neurociência.
Assim,
considerando que esse pressuposto está em estágio inicial, postula-se como
imprescindível a realização de pesquisas sobre o ensino superior a fim de
atender diversos questionamentos pendentes, entre eles: Conhecimentos
científicos da neurociência são abordados em alguma disciplina nos cursos de
formação de professores? Se o são, estão relacionados aos processos de ensino e
de aprendizagem? Qual a relevância atribuída pelos alunos desses cursos à
existência ou não desses saberes disciplinares durante a formação acadêmica?
De
forma mais específica, no caso de serem percebidas lacunas curriculares, é
possível recomendar a inserção de uma nova disciplina que aborde, de maneira
mais profunda e intensa, a visão integrada da biologia do cérebro com aspectos
mais pedagógicos do ensinar e do aprender. Um exemplo seria a criação de uma
disciplina como 'Neurociência e aprendizagem' ou 'Biologia da aprendizagem'.
Nessa disciplina, poderiam ser desenvolvidos os conteúdos neurocientíficos
atrelados à pedagogia, numa visão transdisciplinar.
A
disciplina, seja ela advinda da inserção de um novo componente curricular ou
resultado da adição de conteúdos científicos para a renovação de alguma
disciplina já existente, deve não só reconhecer a importância dos achados
neurocientíficos, mas também otimizar o seu uso, buscando oferecer ao acadêmico
material significativo para que ele aprimore a sua compreensão da relação entre
cérebro e aprendizagem.
De
um ponto de vista mais prático e tendo como apoio a percepção de que a
visualização do funcionamento do substrato físico onde ocorrem os processos
mentais pode tornar-se um elemento facilitador para o entendimento do cérebro
como sistema complexo, plástico e reorganizável, sugere-se que o componente
curricular faça uso de neuroimagens geradas nas pesquisas desenvolvidas na área
da neurociência, as quais constituem recurso inestimável para uma abordagem
ampla das relações entre cognição, emoção e aprendizagem.
É
interessante ressaltar que, embora a sugestão enfatize a relevância do
entendimento da base biológica da cognição humana, não desconsidera que a
manifestação comportamental é também fruto da interação do indivíduo com o meio
em que vive. Como exposto, achados da própria neurociência têm evidenciado como
os estímulos externos gerados no ambiente afetam as conexões cerebrais,
influenciando o desenvolvimento e o funcionamento cerebral.
Sem
dúvida, um painel detalhado sobre o que existe de mais atual nas neurociências
e que vincule esses dados às teorias pedagógicas deve ser oferecido não apenas
para os alunos durante a formação acadêmica, mas também ser estendido aos
profissionais em atuação, pois pode contribuir para a formulação de diretrizes
pedagógicas que busquem otimizar a adoção de condutas de ensino e de
aprendizagem.
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Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-77462010000300012&script=sci_arttext#back1
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