Por Rogério Cerqueira Leite (Professor Emérito da Unicamp)
Quando, logo após o 6 de agosto de 1945, foram divulgados os lúgubres
relatórios sobre Hiroshima e Nagasaki, amplos setores da sociedade passaram a
criticar acerbamente aqueles cientistas que, de uma forma ou outra, haviam
colaborado na confecção da “arma hedionda”. Durante a segunda metade da década
de 30, Otto Hahn, um físico alemão, brincava com algumas equações teóricas da
física nuclear. Sete anos depois, quando ficou sabendo de Hiroshima e
Nagasaki,caiu em profunda depressão.
Quem poderia ter imaginado que a partir de suas divertidas manipulações
algébricas seria, em frações de segundos, arrasada uma cidade e metade de seus
habitantes aniquilados.
O dilema certamente não era novo. Desde os primórdios da sociedade
humana organizada, “inventores” haviam contribuído para o contínuo
aperfeiçoamento dos instrumentos de guerra e destruição. Entretanto, com a
bomba atómica, a progressão já não se fazia por graus, mas havia ocorrido uma
transformação na essência da “arte de matar”. O homem, como diria
posteriormente Koestler, já não era apenas capaz de destruir seus semelhantes,
individualmente, mas adquirira a competência para exterminar a própria espécie.
Esse aspecto chocara a humanidade embora, até hoje, não tenha sido inteiramente
apreendida pela sociedade dos homens a extensão desse potencial destruidor.
Mas até que ponto estaria a responsabilidade da hecatombe concentrada
naqueles indivíduos que participaram da concepção e da confecção da bomba, ou
mesmo dos membros do governo que decidiram sobre
o projeto Manhatan e
posteriormente sobre a explosão nos céus do já derrotado Japão?
Consciente ou inconscientemente, o trabalho e as motivações do cientista
são dirigidos pelos desejos e necessidades da sociedade de que participa. Se
Newton se dedicou à astronomia foi porque havia, devido à navegação, uma
necessidade fundamental de melhor conhecimento dos
astros. Existia uma necessidade prática,
portanto, e a sociedade de uma maneira ou outra deixava transparecer esta sua
aspiração. Kepler admitiu a influência da demanda social, criada pela
astrologia, em seus estudos sobre mecânica celeste. A busca incessante de
Faraday por uma relação entre eletricidade e magnetismo é explicada pela
necessidade de fontes de energia, frequentemente expressa pela sociedade daquela
época. Maxwell sentiu-se direta ou indiretamente motivado pelos anseios de uma
comunidade que já não podia sobreviver à falta de meios mais eficazes de
comunicação. E a criação
da cibernética por Wiener e outros, ocorreu justamente quando a organização
social exigia meios mais eficientes de codificar e distribuir a informação.
O trabalho do cientista é, portanto, o resultado de dois componentes
fundamentais. De um lado, uma expectativa explícita da sociedade e de outro os
seus impulsos individuais. Mas mesmo esses impulsos, por mais espontâneos que
aparentem ser, advém, pelo menos parcialmente, dos anseios e necessidades da
sociedade com que convive o cientista.
Dentro destas perspectivas a responsabilidade quanto à bomba de
Hiroshima deve ser compartilhada com todo o povo americano e secundariamente
com toda a cultura ocidental. A responsabilidade dos cientistas, não obstante,
não é reduzida pela coparticipação da sociedade. A responsabilidade como a
dignidade é indivisível, e sua intensidade depende fundamentalmente do nível de
percepção de cada indivíduo.
Exemplo magnífico dessa sensibilidade nos é fornecido por Santos Dumont.
Quando soube que o seu invento, concebido para aumentar o conforto do homem,
estava sendo utilizado na primeira grande guerra, afastou-se de suas pesquisas
e, ao ser informado da participação do aeroplano na Revolução de 32,
suicidou-se. Não procurou desculpar-se com o argumento de que o avião fora
inventado para o bem e que outros haviam pervertido seu invento. Assumiu a
responsabilidade pelo que havia criado.
Em contraste, os artífices da bomba atômica procuram recompor sua
autoestima agarrando-se à contravertida promessa da energia nuclear. Para
amenizar seu sentimento de culpa convertem-se em fanáticos defensores daquela
tecnologia que mascaram como a salvação da humanidade.
Pervertem o que o cientista tem de melhor, “o hábito da verdade”, como
disse Bronowsky, que em conjunto com o exercício quotidiano da observação,
determina um elevado nível de percepção para aqueles que exercem
profissionalmente a investigação científica. Dessa sensibilidade decorre
naturalmente o senso de responsabilidade que faz do cientista um crítico
persistente da própria sociedade. Uma parcela desproporcionalmente elevada dos
dissidentes soviéticos é constituída de cientistas e não de políticos
profissionais. Mesmo no Brasil, em que a comunidade científica era diminuta na
década de 60, o número de cassados é extremamente elevado em relação às
dimensões de sua classe, apesar do envolvimento partidário do cientista ser
apenas eventual na sociedade brasileira.
Outro exemplo da responsabilidade social do cientista é ilustrado pelas
reuniões anuais da SBPC, nestes últimos anos, que deixam transparecer o
pronunciado envolvimento que a comunidade científica brasileira veio a ter com
a vida política de seu país quando outras instituições da sociedade civil foram
forçadas a se retrair.
Devemos ainda reconhecer que esta característica é acentuada pela condição
específica de um país em desenvolvimento.
Este estado de alerta da comunidade científica é por certo auspicioso,
mas exige uma contrapartida. Essa coletivização
da responsabilidade deveria, por outro lado, beneficiar também o cientista e a
Universidade.
Entretanto, o que se observa presentemente no Brasil é uma alienação da
sociedade em relação às necessidades da ciência e da cultura.
Enquanto o Estado reprime e penaliza a universidade por sua constante
crítica ao poder e pela sua defesa intransigente dos direitos do cidadão, a
sociedade, talvez por força de desinformação recusa sua solidariedade à universidade e à ciência.
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Fonte: http://rogeriocerqueiraleite.com.br/
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