Aí abaixo, caro leitor, dois artigos que introduzem nacionalidade no embuste que tem se tornado o debate sobre a redução da maioridade penal. Um de autoria do deputado Orlando Silva (ex-Presidente da gloriosa UNE) e o outro do médico Drauzlio Varella. Ambos publicados originalmente na Folha de São Paulo.
Justiça e direitos para todos
Por Orlando Silva
A violência assusta a todos os brasileiros,
independentemente de condição social, econômica ou faixa etária. Não importa
onde moramos nem o que fazemos. A insegurança é parte do nosso cotidiano e
todos nós buscamos o direito de viver sem medo.
A violência é um problema complexo, resultado de
diversos fatores. Soluções simplistas são falsas e ineficientes. Pior ainda,
podem agravar os problemas. É nesse contexto que está a proposta de redução da
maioridade penal no país.
Os deputados constituintes, em 1988, incluíram a
maioridade penal na Carta Magna como cláusula pétrea, parte do conceito de
proteção à infância e à juventude.
A inscrição na Constituição pretendeu preservar
direitos aos jovens, independentemente de eventuais maiorias na opinião
pública, como a que se vê diante do atual debate sobre o tema. É um compromisso
que só pode ser desfeito pelo poder constituinte originário.
A Câmara dos Deputados, por isso, erra ao admitir a
tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição com esse conteúdo.
Reduzir a maioridade penal é colocar o Brasil na
contramão do mundo. Fará com que o país rompa tratados internacionais, como a
Convenção sobre Direitos da Criança da ONU (Organização das Nações Unidas),
ratificada em 1990.
Cerca de 70% dos países têm 18 anos como idade
penal mínima. E essa é a realidade, sobretudo, nos países que têm democracias
maduras e tradição na defesa dos direitos humanos. Países como a Alemanha e a
Espanha, que reduziram a maioridade penal, diante da não diminuição da
violência, recuaram de suas decisões.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)
determina sanções para jovens em conflito com a lei, inclusive a restrição de
liberdade. É um regime próprio porque é peculiar a condição da juventude.
Admito ajustes nessa lei sem deixar de reconhecer que a condição juvenil merece
tratamento diferenciado.
A sociedade tem o desafio de reinserir quem comete
atos infracionais, a partir de sanções que tenham eficácia e impeçam o infrator
de voltar a delinquir. Enquanto os jovens em conflito com a lei que passam por
unidades socioeducativas têm reincidência de 20%, no sistema penitenciário esse
índice é de 70%.
Os presídios brasileiros se converteram em
verdadeiras universidades do crime. A população carcerária já é composta, em
sua maioria, por jovens. Reduzir a idade penal vai ajudar aumentar o
encarceramento da juventude e fazê-la engrossar o contingente que está a
serviço do crime organizado.
O debate sobre a maioridade penal sempre ressurge
quando a sociedade entra em estado de choque diante de alguma barbaridade. Vejo
com tristeza a manipulação da dor de famílias que sofrem com a perda de entes
queridos brutalmente. Fico indignado com oportunistas que fazem da cultura do
ódio bandeira política.
A sociedade e o Congresso Nacional --em especial--
devem agir com racionalidade, sob pena de aprofundar essa barbárie.
Acredito que o Estado deva garantir políticas
públicas e permitir à juventude brasileira ser plena no exercício dos seus
direitos. Acredito que as famílias devam afirmar valores e produzir jovens
sadios, conscientes, solidários e aptos a uma boa convivência social. Acredito
que o Brasil deva superar tantas desigualdades, que é fator de tensão
permanente na nossa sociedade.
Sou contra reduzir a maioridade penal porque sou a
favor da vida. Quero justiça e direitos para todos.
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Maioridade penal
Por Drauzio Varella
Acho
errado internar menores em penitenciárias de adultos.
É evidente que um adolescente de 16 ou 17
anos capaz de assaltar à mão armada e atirar naqueles que se negarem a
obedecê-lo tem consciência plena de que comete um ato abominável. Considerá-lo
criança imatura para compreender a enormidade do crime praticado é paternalismo
ridículo.
Também acho frouxa a legislação atual que
recolhe um assassino dessa idade à Fundação Casa, para ser submetido à privação
da liberdade e a medidas socioeducativas, por um período máximo de três anos.
Por coincidência, nesta semana a revista
"The Economist" publicou uma matéria em que analisa a experiência
americana com a prisão de menores nas penitenciárias do país.
A Constituição americana garante a cada
Estado a liberdade para julgar menores da forma que considerar mais justa.
Em Nova York maiores de 16 anos são
enquadrados nas leis que regem os adultos, independentemente da natureza do
crime. No Mississipi, a partir dos 13 anos, os autores de crimes graves recebem
condenações iguais às dos adultos; em Wisconsin, a partir dos 10 anos em casos
de assassinato.
Apenas em 2005, a Suprema Corte dos Estados
Unidos proibiu que menores de 18 anos fossem condenados à morte. Em 2010, foi
vetada a prisão perpétua para menores que não tivessem cometido assassinatos.
De acordo com a Anistia Internacional, hoje
há no país 2.500 prisioneiros condenados à prisão perpétua por crimes cometidos
antes da maioridade.
Quais as consequências de leis tão severas?
Paradoxalmente, no período de 1990 a 2010, o
número de menores em penitenciárias aumentou 230%, segundo o insuspeito Centers
for Diseases Control and Prevention (centros de controle e prevenção de
doenças, em português).
A probabilidade de um adolescente condenado a
cumprir pena com os adultos voltar a delinquir é cerca de 35% maior do que
aqueles que são julgados pelas leis específicas para infratores jovens.
Do ponto de vista pessoal, não tenho a menor
simpatia por criminosos de qualquer idade, mas frequento cadeias como médico há
26 anos.
Não é preciso ser grande criminalista para
saber que é mais fácil recuperar para o convívio social infratores mais jovens.
Marginais de longas carreiras têm a vida tão estruturada no mundo do crime que
eles dificilmente se adaptam ao convívio com a sociedade que os rejeita.
Para agravar-lhes a desesperança, passaram
tantos anos enjaulados em condições desumanas nos presídios brasileiros que o
aprisionamento só serviu para castigá-los e torná-los ainda mais revoltados e
antissociais.
Trancar adolescentes em celas apinhadas de
criminosos profissionais pode atender aos desejos de vingança da população
assaltada por eles nas esquinas, mas é uma temeridade.
Se houvesse prisão perpétua ou pena de morte
no Brasil, como defendem os radicais, poderíamos ficar livres deles para
sempre.
Não sendo esse o caso, dia mais, dia menos,
eles voltarão às ruas. Estarão recuperados, dispostos a respeitar seus
concidadãos, ou mais agressivos?
Um rapaz de 16 anos chega numa penitenciária
de homens mais velhos com medo de ser estuprado, abusado e de perder a vida nas
mãos dos desafetos. Será presa fácil das facções que dominam os presídios.
Contará com a proteção do grupo e com as vantagens da cesta básica para a mãe e
o transporte gratuito para a família visitá-lo nas cadeias espalhadas pelo
interior.
Quando for libertado, entretanto, será
forçado a pagar uma mensalidade de cerca de R$ 700, cobrada a pretexto de
retribuir aos irmãos presos a ajuda que recebeu enquanto esteve na mesma
situação. Para saldar essa dívida eterna, não poderá mais abandonar a vida no
crime, a menos que arrisque perdê-la.
Se a sociedade julga suave a condenação
máxima de três anos na Fundação Casa, no caso de menores de idade autores de
crimes hediondos, nada impede a criação de leis que lhes imponham penas mais
longas. Mas que sejam cumpridas em presídios especiais, distantes da
convivência com marginais perigosos.
Violência urbana é doença contagiosa que
precisa ser tratada com racionalidade técnica, baseada em evidências. Adotar
medidas drásticas ao sabor das emoções quase sempre provoca efeitos opostos aos
desejados.
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