Por Eliane Brum
(Escritora e documentarista)
(Escritora e documentarista)
Mãe, sabia que,
quando a gente cresce, pode voltar a brincar com os brinquedos de criança?”,
anunciou minha afilhada Catarina, três anos e oito meses. E seguiu, em sua
primeira declaração de Ano-Novo. “A gente precisa dos brinquedos pra ir na
faculdade. Eu vou ser escrevista." Escrevista?, pontuou a mãe,
interrogativa. "Escrevista, mãe. Aquela pessoa que escreve pra ler."
Catarina é assim.
Cercada de princesas, porque ela também é uma princesista praticante, ela às
vezes silencia os adultos ao redor, arrancando-nos da repetição neurótica dos
dias. É visível que sente compaixão por nós, a ponto de, neste Natal [2014], ter
fingido acreditar no Papai Noel para não nos decepcionar. Fizemos coisas
ridículas, na falta de chaminés o Papai Noel teria descido por uma janela pela
qual não passaria um duende com anorexia, e ela deixou passar. Mas, juro, seus
olhos eram tão céticos quanto os de Humphrey Bogart em Casablanca.
Dias antes ela já
havia simulado crer numa carta que o velho teria lhe escrito de próprio punho,
na qual, por uma incrível coincidência, lhe dava conselhos iguaizinhos aos que
a mãe lhe dá todo dia. Catarina mal continha o riso quando lhe perguntei sobre
a carta. Mas fingiu acreditar, por amor. Mentiras sinceras já lhe interessam.
Passou a virada do
ano vestida de Alice, a do País das Maravilhas. Percebo que, para ela, somos
todos o coelho branco. “Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, tarde é tarde.
Não, não, não, eu tenho pressa, pressa....” De tanto nos observar, percebeu que
precisamos muito de nossos brinquedos na vida adulta. E nos autorizou. Por isso
nos mandou brincar.
Há quem se engane
e pense que as crianças falam “errado” por não conhecerem ainda as palavras
“certas”. Não. Elas chegam às palavras exatas e depois nós as encaixotamos com
a uniformidade do dicionário, “corrigindo-as”. Alguém pode se confundir e achar
que Catarina queria dizer “escritora” e não “escrevista”, como disse. Nada.
Escrevista era a palavra exata. Aquela pessoa que escreve não para ser lida,
mas para ler, como Catarina mesmo esclareceu. Ler a si mesma. Uma vista de si.
E Catarina já é
uma escrevista. O que pode ocorrer é que, na faculdade, talvez ela deixe de
ser. Mas apenas se esquecer de levar seus brinquedos. Espero estar viva para
lembrá-la.
Catarina já se
conta, passa os dias se contando, em longas narrativas. Ela sabe o que
Fernandes, o personagem do filme indiano “Lunchbox”, de Ritesh Batra, descobriu
quando já começava a envelhecer: “Acho que esquecemos das coisas se não
tivermos a quem contá-las”. Um dia, por engano, Fernandes recebeu no seu
escritório uma marmita que não era para ele, mas era para ele: “O trem errado
às vezes leva ao destino certo”. A partir desse desacerto tão acertado,
iniciou-se uma correspondência entre a mulher que cozinha e o homem que come.
Fernandes, que se limitava a repetir os dias, passou a enxergar os dias quando
começou a escrever para ela. A cor, o cheiro, o sabor da comida onde ela
escondia as palavras despertaram seus sentidos, até então embrutecidos pela
repetição. Ele era um contador – um contador de números que não contava os
sentimentos. Nem contava, não era importante, para ninguém. Ao se contar,
finalmente contou, em mais de um sentido. Contou para ela, contou para si
mesmo.
Há um momento nesse filme tão bonito em que Fernandes pela primeira vez
se detém para observar os quadros de um pintor de rua pelo qual passa todo dia
sem parar. O pintor pinta sempre a mesma paisagem. Mas, se olhar bem de perto,
Fernandes descobre, não é a mesma paisagem. Como o dia dele, que só parece ser
o mesmo. Ou só é o mesmo se ele não for capaz de enxergar a delicadeza, as
infinitas pequenas mudanças, a eterna novidade do mundo de que falava Fernando
Pessoa, aquele que precisou de pelo menos três heterônimos para dar conta de
si.
De repente,
Fernandes descobre-se numa das telas. Sem o véu enganador da rotina, que até
então o cobria, consegue se reconhecer na paisagem. Ele agora é um homem que
está. Decide pegar um riquixá para revisitar as paisagens da sua vida, ver os
lugares que via sem ver, agora vendo. Ao final desse percurso, ele é outro. Um
outro que, agora descoberto, terá de se descobrir novamente em cada dia
seguinte.
Foi o Papai Noel
da Catarina quem me deu esse filme no Natal. E eu acreditei nesse Papai Noel.
Ou fingi acreditar, por compaixão de mim. Me lembrou de um outro filme, mais
antigo, “Cortina de Fumaça”, dirigido por Wayne Wang e Paul Auster. Nele,
Auggie Wren, dono de uma tabacaria, há anos tira todo dia, às oito da manhã,
uma fotografia da mesma esquina do Brooklin, em Nova York. Ele mostra esse
álbum com 4 mil fotografias a um de seus fregueses, Paul Benjamin, que depois
de virar algumas páginas diz: “São todas iguais”. Auggie responde: “Sim, 4 mil
dias comuns”. Paul ainda está confuso, um pouco condescendente. Ele é um
escritor de romances diante do dono de uma tabacaria: “Acho que ainda não
entendi direito...”. Auggie tenta lhe explicar: “É a minha esquina, nessa
pequena parte do mundo também acontecem coisas”. E vai colocando mais um álbum
diante de Paul, que folheia entediado e cada vez mais rapidamente. Auggie
adverte: “Você não vai entender se não folhear mais devagar, amigo”.
Ele sabe que, se
olhar bem, Paul vai reconhecer a esquina. O homem diante dele é um escritor,
mas Auggie, como Catarina, é um escrevista. Então, Paul finalmente descobre.
Ele vê Ellen, a mulher que amou e que morreu, numa das fotos. Ela está lá, na
mesma esquina que agora já não poderia ser a mesma. Ao ver a foto, Paul
reencontra a si mesmo num outro tempo, porque, quando perdemos alguém que
amamos, nosso luto também se dá por aquele que éramos com aquela pessoa. E que,
sem ela, já não podemos ser. Um luto pelo outro é sempre também um luto de si.
E lá ficou Paul, em lágrimas, diante da esquina que finalmente enxergou, com
saudades dela e dele com ela. O álbum, agora, já não tinha a mesma foto
repetida centenas de vezes, mas centenas de fotos de esquinas diferentes.
Temos vivido nesse
mundo de acontecimentos, de espasmo em espasmo. Estamos intoxicados por
acontecimentos, entupidos de imagens. Há sempre algo acontecendo com muitos
pontos de exclamação – ou fingindo acontecer para que de fato nada aconteça. E
há a nossa reação nas redes sociais – às vezes uma ilusão de ação. E nas
viradas de ano há ainda as resoluções, que também pressupõem uma ação.
Mas o que é
preciso para, de fato, se mover? Penso que, para que exista uma mudança real de
posição e de lugar, é preciso perceber o pequeno, o quase invisível de nossa
realidade externa e interna. É pelos detalhes que enxergamos a trama maior, é
na soma das sutilezas que a vida se desenrola, são as subjetividades que
determinam um destino. É preciso desacontecer um pouco para ser capaz de
alcançar a delicadeza dos dias.
Nesse tempo em que
ninguém tem tempo para ter tempo, a delicadeza de uma vida parece ter sido
relegada à ficção. É no cinema e na literatura que nos enternecemos e
derrubamos nossas lágrimas ao testemunhar as sutilezas que esquecemos de
enxergar ou não somos capazes de enxergar nos nossos dias de autômatos. Os
personagens da ficção têm mais carne que nós, precisamos deles para nos lembrar
de quem somos. Os robôs já estão aí, temos agora de reinventar os humanos.
O exemplo extremo
talvez seja o dos pais que se esquecem dos filhos trancados no carro, bebês que
acabam morrendo por asfixia ou por insolação no banco de trás. Já foi dito que
esse fenômeno seria uma marca do autocentrismo ou do narcisismo que assinalaria
a paternidade desse momento histórico. O filho como uma desimportância, um
atrapalho, no máximo um troféu da potência do pai. Minha hipótese é outra.
Acho que esses
pais estão automatizados, como estamos todos. Tão incapazes de enxergar as
diferenças de dias que parecem iguais, que acabam deixando de ver algo tão
grande quanto a presença de um bebê no banco de trás. Não é que se esqueçam dos
filhos, porque para esquecer, assim como para lembrar, é preciso estar
presente. Presos no pesadelo de estarem vivendo sempre o mesmo dia, esses pais
estão ausentes de si, numa espécie de transe mortífero. São despertados para a
vida pela morte do filho.
O título do
comovente filme do brasileiro Caetano Gotardo é expressivo: “O que se move”.
Ele contas três histórias baseadas em notícias de jornais. Numa delas,
alcançamos os detalhes e os acasos de um pai que, no primeiro dia de férias da
mãe, carrega o filho no banco de trás do carro. Com o balanço, o bebê acaba
dormindo, e o pai o “esquece”. Ele passa a manhã no trabalho sentindo-se
perturbado, doente, mas não consegue identificar o que está errado. É de novo
no cinema, muito mais do que nas notícias, que conseguimos enxergar esses pais
na delicadeza monstruosa da tragédia.
Em algum momento esquecemos do que sabe Catarina, paramos de nos contar.
Alguém pode argumentar que nunca tantos falaram sobre si e se registraram em selfies em
todas as situações. Mas o que o selfie conta? Penso que há algo no selfie para
além da crítica que em geral lhe fazem, a de ser um mero registro do
autocentrismo ou do narcisismo dessa época. O mesmo vale para muitos Tweets e
posts no Facebook. Há qualquer coisa de pungente no selfie, uma
expressão de nosso desespero por tentar provar que existimos, já que não
conseguimos nos sentir existindo. Melhor ainda se for um autorregistro com
alguém famoso, detentor de um certificado de existência validado pela mídia,
que então seria estendido ao seu autor. Nesse sentido, o selfie não
me exaspera, mas me emociona. Cada selfie é também a imagem de
nossa ausência.
O contar de que
fala Catarina, a escrevista, é outro. É por esse contar que sugiro que façamos
não uma lista de resoluções de Ano-Novo, mas uma lista de delicadezas que
estiveram presentes em 2014, mas que não vimos e não reconhecemos por termos
nos tornado seres condenados à repetição.
Esse mundo que
criamos nos brutaliza de tantas formas ao nos reduzir a consumidores, e também
a consumidores de acontecimentos. Diante da brutalidade das horas, a delicadeza
é um ato de insubordinação e um ato de resistência.
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Fonte: http://brasil.elpais.com/
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