segunda-feira, 6 de março de 2017

A Luz entre Oceanos

Chamava-se Janus o deus romano das mudanças, com as suas duas faces – olhando para frente e para trás – com vista no futuro e no passado, ao mesmo tempo. Deu nome ao mês de janeiro, o mês que, no calendário cristão, faz a transição entre o ano velho e o ano novo. É essa narrativa da mitologia romana que oferece nome à pequenina ilha do filme ‘A Luz entre Oceanos’ (The Light Between Oceans), exatamente por ela se situar entre dois mares. Já foi dito que uma das características de um bom filme é quando ele continua após as luzes do cinema serem acesas, nas conversas que se seguem. Bom, já não é mais tão habitual se assistir filme em cinemas, mas a metáfora continua a valer. E se aplica, a meu ver, muito bem ao filme ‘A Luz entre Oceanos’. Personagens à deriva, dilemas ético-morais e o sentido da afirmação do caráter. Pelo meio disso tudo tudo, uma ciranda de sobressaltos, e o contar dos dias de vidas que buscam mais do que o registro de existirem. Assim, no final das contas, é o ‘real da vida’, no dizer de Guimarães Rosa. Aí abaixo, mais sobre ‘A Luz entre Oceanos’. 

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Por Marcelo Perrone

O melodrama é um gênero subestimado por conta dos excessos de açúcar e lágrimas que roteiristas e diretores menos talentosos lançam sobre enredos que, de maneira geral, transitam pelo caminho dos romances tortuosos, das fissuras familiares e das lições edificantes de superação. Mas, vez que outra, surgem realizadores como o norte-americano Derek Cianfrance, que, em A luz entre oceanos, reforça a elevada potência desse gênero sobre o espectador quando se combinam a boa história, o elenco afiado e a mão segura de quem harmoniza o conjunto sem apelar para o golpe baixo do sentimentalismo desmedido — como se costuma ver nas adaptações para o cinema de best-sellers desse estrato.
Autor de filmes dramaticamente densos como Namorados para sempre e O lugar onde tudo termina (leia mais sobre esses filmes abaixo), Cianfrance desta vez não trabalha com um roteiro original. A matriz de A luz entre oceanos  é o romance homônimo de estreia da australiana M.L. Stedman, lançado em 2012. Deslocado do tempo contemporâneo dos longas anteriores, o diretor encontra na história ambientada logo após o fim da I Guerra Mundial (1914 — 1918) elementos com os quais estabeleceu sua marca autoral: personagens emocionalmente à deriva que ensaiam tomar o rumo para se recompor mas que, em vez de uma jornada mais feliz — ou menos amarga —, acabam tragados por uma ciranda de sobressaltos afetivos e dilemas morais. E, ao desviarem da rota, em razão das escolhas feitas, mesmo as banais e aparentemente inconsequentes, não conseguem mais voltar.
E os protagonistas de A luz entre oceanos não poderiam estar mais deslocados no mundo que se redesenhou após o conflito — vivem numa cidadezinha da costa australiana que perdeu quase todos os seus jovens no front. Tom (Michael Fassbender) sobreviveu à carnificina nas trincheiras da Europa. É recebido como herói, mas tudo que ambiciona agora é isolar-se do mundo. Assim, lhe é providencial o posto vago de faroleiro em uma ilha próxima, chamada Janus — nome do deus romano de duas faces, que representam o antes e o depois decorrente de uma transição, de uma tomada de decisão, como a que norteará a reviravolta na vida de Tom. Por sua vez, Isabel (Alicia Vikander) ficou sozinha com os pais após todos os seus irmãos morrerem na guerra. Enxerga em Tom, embaralhada à atração genuína, a oportunidade de alçar voo daquele ambiente impregnado pelo luto. Tom e Isabel se aproximam, se casam e vão morar em Janus, refúgio idílico onde só de tempos em tempos ganham a companhia dos marujos que lhe levam provisões.
Os anos passam, e Isabel fica emocionalmente abalada pelos sucessivos abortos sempre na reta final da gravidez. Um dia, bate nas rochas da ilha um barquinho com o cadáver de um homem e um bebê sobrevivente. Tom quer reportar a tragédia, mas Isabel o convence a ficarem com a menininha, para ela uma recompensa do destino até então ingrato. Tem início um lento processo de corrosão no relacionamento, que ficará adormecido na aparente felicidade familiar até ganhar, mais adiante, um decisivo vértice na figura de Hannah (Rachel Weisz), viúva que Tom conhece no continente.
A vigorosa performance do elenco, a delicada trilha de Alexandre Desplat e a paleta de cores e molduras da fotografia de Adam Arkapaw (responsável pelo visual da primeira temporada do seriado True detective e do recente Macbeth estrelado por Fassbender) compõem um painel dramático grandioso, do tipo que se mostra sua real dimensão pelo impacto provocado por seu esfacelamento. 
Fassbender e Alicia correspondem plenamente à exigência dramatúrgica imposta a seus personagens. Tom é exemplo de uma pétrea retidão de caráter. O trauma da guerra o deixou impermeável a qualquer emoção, até deparar com a radiante Isabel. A leveza e a serenidade que ela lhe traz nos primeiros anos de casamento, contudo, darão lugar ao imenso peso que passa a arrastar após atender ao desejo da mulher pela maternidade. Fassbender entrega uma atuação  primorosa transitando pelas intensas nuanças do personagem. Alicia, por sua vez, reflete em seu registro a penosa transição da garota que desabrocha diante de seu amor à mulher que murcha na depressão quando o sonho se mostra frustração. A intensidade da ficção se desdobrou na vida real, e Fassbender e Alicia terminaram as filmagens como um casal de verdade.




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Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/