segunda-feira, 13 de março de 2017

A festa da insignificância: constante alegria sem significado

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Por Lucas Grosso

O filósofo Marshall Berman nomeou sua obra mais famosa a partir de uma máxima de Karl Marx: Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar, propondo, em seus instigantes ensaios, debater os diversos aspectos socioculturais que compõem a dita modernidade, isto é, o período que se inicia por volta do século XVIII e que se estende até os nossos dias, em sua enorme gama de questões e problemas. O que Berman procura exprimir, enfim, sobre a modernidade, com essa colocação de Marx? Grosseiramente, podemos dizer que o filósofo americano se refere à ruptura dos valores, ideologias e signos que tradicionalmente constituíam as diversas sociedades por todo o globo; para tanto, esse autor parte de análises das mais diversas áreas de estudos (cultural, econômica, social, entre outras), procurando compreender como compreendem o mundo e como as suas concepções caracterizam-se como elementos da modernidade. Morto em 2013, Berman não pode emitir seu parecer sobre o novo romance de Milan Kundera, A Festa da Insignificância, mas podemos supor que iria ficar simplesmente fascinado com o livro do romancista tcheco: a obra é uma metonímia dos séculos XX e XXI.
É simplesmente fascinante percebermos como o escritor de 85 anos (à data do lançamento) consegue interpretar de forma tão precisa e contundente as novas gerações e, ainda mais, como esse autor consegue produzir um romance tão harmônico e coeso em relação à sua bibliografia e, não obstante, tão original. Pelos aspectos estéticos ou pelas questões filosóficas levantadas por Kundera em menos de 130 páginas, o romance pode figurar seguramente entre os melhores da década  - e de toda a produção de seu autor.
O enredo abrange a vida de cinco homens parisienses, e é marcado por um profundo tom pessimista e anti-utópico, que a todo momento evoca o esvaziamento das simbologias e dos valores de nossa contemporaneidade. As personagens Alain, Ramon, Charles, D’Ardelo e Calibã, tendo superado as ditas “crises da meia-idade”, vivem em um perene presente, sem se ligarem emocionalmente a ninguém, descrentes quanto a ideologias ou planos futuros. Como alegorias da intelligentsia francesa do século XX, procuram interpretar seu tempo, sem chegar a conclusões.
Essa sociedade descrita por Kundera é extremamente fútil e carente de um sentido para o ato de viver. Seus concidadãos precisam estar constantemente a buscar subterfúgios para completarem suas vidas; o ritmo acelerado da narrativa de Kundera (que Ítalo Calvino já elencava como uma das seis propostas para o romance do século XXI) amplifica a inconstância da essência desses atos. Nesse sentido, o próprio título, A Festa da Insignificância, pode ser interpretado como o epônimo de nossos dias: viver no século XXI é efetivamente viver sem qualquer significado.
O próprio termo “festa”, aqui, é revelador, uma vez que, ao considerarmos o termo latino “festivus”, vemos que esse não significa apenas “festa; celebração” -  é, também, “engraçado; alegre”. Uma leitura reveladora em se tratando de Kundera, autor de prosa tão pessimista e irônica: seria nosso tempo, uma constante alegria sem significado? Podemos pressupor que essa amarga posição do autor tcheco é crível, principalmente quando ele nos retoma os episódios de Stalin a contar piadas à alta cúpula do Partido: “Pois ninguém mais em torno dele [Stalin] sabia mais o que era uma brincadeira. E é por isso, a meu ver, que um novo grande período da história se anunciava” (p. 29), sentencia a personagem Charles. Kundera aponta para uma sociedade que celebra seu próprio vazio cultural, ético e político; viver é insuportável, pois não há a que se conectar (para usarmos a palavra-chave de nossa era) concretamente, senão transitória e rapidamente.

Individualismo de Massa
Neste contexto, mesmo a arte acaba servindo apenas para redimir o ser de seu vazio existencial. Em um fantástico capítulo sobre uma exposição de Chagall, constata Ramon, sorrindo ante o descaso dos visitantes em meio às esculturas retratando nomes das artes francesas: “Olhe para eles! Você acha que, de uma hora para outra, começaram a gostar de Chagall? Estão dispostos a ir a qualquer lugar, a fazer qualquer coisa, apenas para matar o tempo com o qual não sabem o que fazer” (p. 123). O público do museu ignora as demais obras por suposto apreço a Chagall; ver a mostra do pintor consagrado torna-se uma obrigação, uma condição para ser alguém, ao mesmo em que se é, só outro componente de uma massa. Tal constatação demonstra o peso da inoperância na era da comunicação instantânea: a ausência de ações é desesperadora e, em nosso tempo, devemos estar sempre agindo; a não-ação é uma inutilidade, uma inadequação, traço impensável na sociedade utilitarista.
Essa evidenciação do desprezo pelo aspecto simbólico permite que uma leitura complementar da obra de Kundera seja a do antropólogo francês Marc Augé quando este fala acerca dos não-lugares: espaços de experiências interativas do indivíduo no mundo, entretanto, determinadas pelo utilitarismo mercantil. Define perfeitamente o espectro que atravessa as páginas do romance. No terceiro milênio nada é um fim em si, senão um caminho até um objetivo a ser alcançado; o ser significa parecer.
Podemos, como Charles, questionar o que significa a nuclearização da sensualidade em um traço físico tão simplista e invariável quanto é o umbigo. O personagem procura interpretar o que significa a popularização dos crop tops (camisetas femininas curtas, que deixam exposto o ventre): “Mas como definir o erotismo de um homem (ou de uma época) que vê a sedução feminina concentrada no meio do corpo, no umbigo?” (p. 10). O sarcasmo a serviço da crítica à frivolidade permeia toda a obra, ressaltando o hedonismo e o individualismo, paradoxalmente manifestados em comportamentos massivos (como os crop tops).
Esse oximoro -  o individual que se constrói no massivo - se faz constante ao longo do romance: percebemos o esvaziamento de significado dos símbolos por causa de uma falsa individualização em meio a um constante de iguais. Outro pensador que versa sobre a adequação individual por meio de comportamento de massas, Gilles Lipovetsky, em seu O Império do Efêmero, ressalta, exatamente, esse elemento da moda: ser uma tendência  a qual deve-se buscar, para estar adequado, apesar de essa não ser constante ou única.
A escrita de Kundera é dinâmica, irônica e polifônica. E são precisamente esses elementos seus principais traços de contemporaneidade.
 A forma adotada por Kundera, por sua vasta confluência de vozes simultâneas, breves e instantâneas, se faz propriamente como uma linguagem desse nosso século XXI.

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Fonte: https://revistacapitu.com.br/. Título original: Símbolos Vazios: A Festa da Insignificância e o Século XXI'.