Por Lucas Grosso
O filósofo Marshall Berman
nomeou sua obra mais famosa a partir de uma máxima de Karl Marx: Tudo que é
Sólido se Desmancha no Ar, propondo, em seus instigantes ensaios,
debater os diversos aspectos socioculturais que compõem a dita modernidade,
isto é, o período que se inicia por volta do século XVIII e que se estende até
os nossos dias, em sua enorme gama de questões e problemas. O que Berman
procura exprimir, enfim, sobre a modernidade, com essa colocação de Marx?
Grosseiramente, podemos dizer que o filósofo americano se refere à ruptura dos
valores, ideologias e signos que tradicionalmente constituíam as diversas
sociedades por todo o globo; para tanto, esse autor parte de análises das mais
diversas áreas de estudos (cultural, econômica, social, entre outras),
procurando compreender como compreendem o mundo e como as suas concepções
caracterizam-se como elementos da modernidade. Morto em 2013, Berman não pode
emitir seu parecer sobre o novo romance de Milan Kundera, A Festa da
Insignificância, mas podemos supor que iria
ficar simplesmente fascinado com o livro do romancista tcheco: a obra é uma
metonímia dos séculos XX e XXI.
É simplesmente fascinante percebermos
como o escritor de 85 anos (à data do lançamento) consegue interpretar de forma
tão precisa e contundente as novas gerações e, ainda mais, como esse autor
consegue produzir um romance tão harmônico e coeso em relação à sua
bibliografia e, não obstante, tão original. Pelos aspectos estéticos ou pelas
questões filosóficas levantadas por Kundera em menos de 130 páginas, o romance
pode figurar seguramente entre os melhores da década - e de toda a produção de
seu autor.
O enredo abrange a vida de cinco homens
parisienses, e é marcado por um profundo tom pessimista e anti-utópico, que a
todo momento evoca o esvaziamento das simbologias e dos valores de nossa
contemporaneidade. As personagens Alain, Ramon, Charles, D’Ardelo e Calibã,
tendo superado as ditas “crises da meia-idade”, vivem em um perene presente,
sem se ligarem emocionalmente a ninguém, descrentes quanto a ideologias ou
planos futuros. Como alegorias da intelligentsia francesa
do século XX, procuram interpretar seu tempo, sem chegar a conclusões.
Essa sociedade descrita por Kundera é
extremamente fútil e carente de um sentido para o ato de viver. Seus
concidadãos precisam estar constantemente a buscar subterfúgios para
completarem suas vidas; o ritmo acelerado da narrativa de Kundera (que Ítalo
Calvino já elencava como uma das seis propostas para o romance do século XXI)
amplifica a inconstância da essência desses atos. Nesse sentido, o próprio
título, A Festa da
Insignificância, pode ser interpretado como o epônimo de nossos
dias: viver no século XXI é efetivamente viver sem qualquer significado.
O próprio termo “festa”, aqui, é
revelador, uma vez que, ao considerarmos o termo latino “festivus”, vemos que
esse não significa apenas “festa; celebração” - é, também, “engraçado;
alegre”. Uma leitura reveladora em se tratando de Kundera, autor de prosa tão
pessimista e irônica: seria nosso tempo, uma constante alegria sem significado?
Podemos pressupor que essa amarga posição do autor tcheco é crível, principalmente
quando ele nos retoma os episódios de Stalin a contar piadas à alta cúpula do
Partido: “Pois ninguém mais em torno dele [Stalin] sabia
mais o que era uma brincadeira. E é por isso, a meu ver, que um novo grande
período da história se anunciava” (p. 29), sentencia a personagem Charles.
Kundera aponta para uma sociedade que celebra seu próprio vazio cultural, ético
e político; viver é insuportável, pois não há a que se conectar (para usarmos a
palavra-chave de nossa era) concretamente, senão transitória e rapidamente.
Individualismo
de Massa
Neste contexto, mesmo a arte acaba
servindo apenas para redimir o ser de seu vazio existencial. Em um fantástico
capítulo sobre uma exposição de Chagall, constata Ramon, sorrindo ante o
descaso dos visitantes em meio às esculturas retratando nomes das artes
francesas: “Olhe para eles! Você acha que, de uma hora para outra, começaram a
gostar de Chagall? Estão dispostos a ir a qualquer lugar, a fazer qualquer
coisa, apenas para matar o tempo com o qual não sabem o que fazer” (p. 123). O
público do museu ignora as demais obras por suposto apreço a Chagall; ver a
mostra do pintor consagrado torna-se uma obrigação, uma condição para ser
alguém, ao mesmo em que se é, só outro componente de uma massa. Tal constatação
demonstra o peso da inoperância na era da comunicação instantânea: a ausência
de ações é desesperadora e, em nosso tempo, devemos estar
sempre agindo; a não-ação é uma inutilidade, uma inadequação, traço impensável
na sociedade utilitarista.
Essa evidenciação do desprezo pelo
aspecto simbólico permite que uma leitura complementar da obra de Kundera seja
a do antropólogo francês Marc Augé quando este fala acerca dos não-lugares:
espaços de experiências interativas do indivíduo no mundo, entretanto, determinadas
pelo utilitarismo mercantil. Define perfeitamente o espectro que atravessa as
páginas do romance. No terceiro milênio nada é um fim em si, senão um caminho
até um objetivo a ser alcançado; o ser significa parecer.
Podemos, como Charles, questionar o que
significa a nuclearização da sensualidade em um traço físico tão simplista e
invariável quanto é o umbigo. O personagem procura interpretar o que significa
a popularização dos crop tops (camisetas
femininas curtas, que deixam exposto o ventre): “Mas como definir o erotismo de
um homem (ou de uma época) que vê a sedução feminina concentrada no meio do
corpo, no umbigo?” (p. 10). O sarcasmo a serviço da crítica à frivolidade
permeia toda a obra, ressaltando o hedonismo e o individualismo, paradoxalmente
manifestados em comportamentos massivos (como os crop tops).
Esse oximoro - o individual que se
constrói no massivo - se faz constante ao longo do romance: percebemos o
esvaziamento de significado dos símbolos por causa de uma falsa
individualização em meio a um constante de iguais. Outro pensador que versa
sobre a adequação individual por meio de comportamento de massas, Gilles
Lipovetsky, em seu O Império do
Efêmero, ressalta, exatamente, esse elemento da moda: ser
uma tendência a qual deve-se buscar,
para estar adequado, apesar
de essa não ser constante ou única.
A escrita de Kundera é dinâmica, irônica
e polifônica. E são precisamente esses elementos seus principais traços de
contemporaneidade.
A forma adotada por Kundera, por sua vasta
confluência de vozes simultâneas, breves e instantâneas, se faz propriamente
como uma linguagem desse nosso século XXI.
-------------------------
Fonte: https://revistacapitu.com.br/. Título original: Símbolos Vazios: A Festa da Insignificância e o Século XXI'.