Um amigo da UFPE sugere-me que faça uma postagem sobre o tema criança e leitura, sobretudo considerando que estamos na semana dos pequeninos. Pois bem, lá vou. Tenho iniciado uma pesquisa longa sobre infância, designadamente a partir do background da história e da sociologia da infância. O que daí temos é que parece ser "um tanto descompassado" querer elevar, como alguns enfoques elevam, perspectivas da psicogênese da leitura escrita/construtivismo à condição de cânone metodológico (monolítico). Disso resulta, por exemplo, equívocos graves, como a exclusão de conteúdos específicos da alfabetização: discriminação entre letras e sons, análise e síntese de palavras e silabas, etc. Passemos à outra paragem. Há consistentes evidências de que a dicotomia 'método silábico x método global' tem se revelado bastante improdutiva, como aliás é próprio de qualquer dicotnomia. Parece haver questões mais imprescindíveis a focar, como o permanente problema relativo à dificuldade de crianças estabelecerem correspondência entre os fonemas (sons) e os grafemas (transcrição escrita dos sons). Em termos convencionais, dislexia. Como consequência, muitas crianças, ao lerem, não conseguem decodificar corretamente as palavras escritas - e bem sabemos que o domínio da decodificação é a condição da aprendizagem e da leitura. A disortografia aparece igualmente em determinadas crianças, que multiplicam os erros de ortografia e fazem divisões arbitrárias das palavras ou, ao inverso, as justapõem. Problema de natureza similar verifica-se em relação aos números, à matemática, em decorrência da discalculia. Seja como for, nesse universo desafiante, é imperativo fazer da criança um leitor, conforme realçam Chantal Horrellou-Lafarge e Monique Segré ao tratarem do tema sob o inovador enfoque de uma sociologia da leitura, no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS)/Paris. Aí abaixo, reproduzo um pequeno extrato do trabalho delas voltado à tese de 'fazer da criança um leitor'. É extraído do livro Sociologie de la Lecture (Paris: Éditions Fraçois Maspero/La Découverte, 2007).
Chantal Horrellou-Lafarge
Monique Segré
Além do imperativo escolar de
aprender a ler, de fazer que a criança adquira a capacidade de ler, torna-se
necessário que o texto escrito esteja inserido no universo familiar da criança
desde a terna idade. A iniciação à leitura é um longo processo que pressupõe,
antes da iniciação escolar, o contato precoce da criança pequena com o mundo
escrito. A criança aprende a ler ao impregnar-se precocemente dos diferentes
tipos de escrito que lhe são lidos pelos adultos que a cercam. É no seio da
família que se realiza, no século XIX, o aprendizado prévio da leitura, é no
meio familiar que a criança habitua-se progressivamente ao escrito, que o
livro, pouco a pouco e de modo natural, ocupa o lugar em seu universo
cotidiano, graças às histórias, aos contos que lhe são narrados ou lidos desde
a mais tenra idade pelos pais. São as entonações da voz e suas variações
marcando o ritmo da frase que insuflam a vida ao texto e facilitam sua
compreensão. A criança é, no começo, um ouvinte, como o eram outrora os
primeiros leitores que escutavam os textos religiosos transmitidos pelos
monges. Por meio da leitura oral do adulto, a criança se familiariza com o
texto escrito, conhece nos menores detalhes a história contada e chega às vezes
a corrigir o leitor culpando-o de introduzir algumas variações.
A imagem é também um poderoso apoio
do escrito; os livros de imagens são os primeiros que devem ser destinados às
crianças. As imagens suscitam os comentários da criança e podem ser explicadas
pelo adulto; facilitam o acesso ao texto. As histórias em quadrinhos continuam
sendo leituras preferidas das crianças que têm dificuldades com o escrito.
Leitura e escrita se tornarão cada
vez mais uma das práticas costumeiras para a criança, graças a uma
familiarização com o texto escrito e à sua integração na vida das crianças.
A escola ajudará a criança a
tornar-se um leitor de todos os textos. O escrito, sob formas variadas, levando
em conta a diversidade dos usos correntes, é introduzido, portanto, na
instituição escolar. Apela para a curiosidade da criança, que lê para conhecer
o conteúdo do texto, para se informar, para conhecer uma história. Os textos
oferecidos vão-se adaptar aos interesses da criança. Cartazes, artigos de jornal,
correspondências, receitas, gráficos dão à leitura uma função diretamente
utilitária. O professor procura também suscitar o gosto de ler, propondo
leituras. Como disse o ministro da educação [francês] em 2003, o professor deve
propor aos alunos a leitura de dez livros durante o ano.
Suscitar oportunidades de leitura,
estimular, ajudar e levar a criança a ler, seja qual for o objeto de leitura da
sua escolha (livros com imagens, histórias em quadrinhos, revistas), criam o
hábito da leitura.
A ação da escola, da família, do
conjunto da vida social deve ter por finalidade a construção da criança-leitora
e fazer da leitura uma prática cultural costumeira compartilhada por todos.
Apesar das inovações pedagógicas
introduzidas na aprendizagem e no exercício da leitura, persistem as desigualdades
sociais neste domínio. O hábito da leitura não é compartilhado por todos.
Na escola, a leitura deve ser
considerada um dever e também uma distração útil.