Espírito do tempo ou sinais do tempo, é o que significa a palavra alemã zeitgeist, que inclusive deu título ao filme produzido por Peter Joseph. Em um único termo, condensa uma significação que, em outras línguas, é alongada. Remonta à inquietação dos românticos alemães e a sua incandescência pelo que é essência na vida. Há controvérsia sobre a originalidade do seu uso por Hegel, mas, de toda forma, zeitgeist ganhou expressão filosófica. Conjunto do clima do pensamento de uma época, características gerais de um determinado período de tempo. Pois bem, na atual conjuntura no Brasil, em que o governo federal prepara e anuncia uma série de medidas com fortes impactos estruturais, o espírito do tempo parece se encontrar capturado pelo clima de inconsequência. Daí tem-se a irresponsabilidade em, pelo menos, três níveis: 1) o que (auto)entendendo-se como avançado estaciona pelo oba-oba, pelo discurso panfletário e pela crítica sem consistência; 2) o dos presunçosos de redes sociais que, sem terem um palmo de profundidade sobre o que falam, carregam as suas postagens com o verniz da arrogância e da verdade suprema; 3) o dos estafetas do novo governo, que chegam ao ponto de defender propostas dele antes mesmo de as conhecerem. Diante do momento que o país vive e do carácter do programa que a administração Temer deseja efetivar, posturas como essas deveriam ser remetidas ao ostracismo. O cenário que se vislumbra, se não houver mudança de rota, é muito duro e não comporta estupidez. Políticas que trazem insegurança para contratos/dívidas de longo prazo; reforma do Ensino Médio que pode produzir um quadro de "ociosidade docente" pela desobrigação da oferta de disciplinas (o que coloca a questão da demissão em pauta); possibilidade de cobrança pelos serviços de saúde na rede pública; decisão de cobrança de mensalidades nas universidade federais, eliminando também subsídios/bolsas de apoio a estudantes; aumento da jornada de trabalho, etc. Enfim, o cenário não se afigura alvissareiro. Do que resulta a necessidade de, no debate público, descartar as falácias e valorizar os argumentos. Nesse sentido, vale a pena a leitura do artigo aí abaixo, no curso da discussão sobre os pressupostos do ajuste econômico proposto pelo governo. Pressupostos, aliás, muito similares aos que produziram o "espírito do tempo do caos" há alguns anos na Grécia. O texto de Gonzaga Belluzzo e Zahluth Bastos incursiona pela história econômica e, com consistência técnico-analítica, faz um chamado à lucidez. A conferir.
Material da Exposição Zeitgeist - Arte da Nova Berlim |
Luiz
Gonzaga Belluzzo
(Professor
Titular do Instituto de Economia da UNICAMP)
Pedro
Paulo Zahluth Bastos
(Professor
Associado do Instituto de Economia da UNICAMP)
Fomos honrados
pela citação de nosso artigo (publicado no
site da "Ilustríssima") por Luiz Fernando de Paula e Elias Jabbour, que responderam a um artigo polêmico de Marcos Lisboa e Samuel Pessôa a respeito da diferença entre direita e esquerda em
economia. Concordamos em geral com a resposta, mas pretendemos levantar novos
elementos para reflexão.
O argumento
central de Lisboa e Pessôa é que, nos EUA, os debates entre direita e esquerda
são resolvidos com o uso de métodos quantitativos de verificação de hipóteses e
que, no Brasil, isso não se faz. Nesse sentido, o fenômeno da heterodoxia
"sem uso de dados" seria tipicamente brasileiro, como reiterado em
novo artigo de Lisboa e Pessôa em 04/09.
Os equívocos de
Lisboa e Pessôa são diversos e alguns deles foram apontados por de Paula e
Jabbour. Primeiro, não é verdade que praticamente não existam heterodoxias fora
do Brasil, mas apenas divisões entre esquerda e direita no seio da
"economia tradicional". Esse desconhecimento reflete o fato de que as
faculdades neoclássicas não estudam as heterodoxias, embora os heterodoxos estudem
e sabiam bem porque rejeitam a ortodoxia neoclássica.
Por outro lado,
como de Paula e Jabbour alertaram bem, há uso abundante de técnicas
econométricas entre economistas heterodoxos, particularmente (agregaríamos) o
uso de séries temporais. É verdade que a heterodoxia recorre a métodos
quantitativos com muito mais ceticismo do que a ortodoxia, e quase sempre em
simbiose com análises qualitativas (institucionais e históricas). Contudo,
enquanto as meta-regressões de John Stanley documentaram fartamente o viés de
publicação dos resultados empíricos desejados pelos neoclássicos, autores como
Anthony Thirlwall, John McCombie e Jesus Felipe, por exemplo, apresentam
estudos econométricos que refutam cabalmente as hipóteses neoclássicas sobre
determinantes do crescimento econômico e da distribuição de renda, sendo
convenientemente ignorados pela ortodoxia.
O que deve ser
esclarecido é o que de fato diferencia a ortodoxia neoclássica e as
heterodoxias. Depois de fazermos isso, mostraremos que as proposições teóricas
de Lisboa e Pessôa são refutadas empiricamente mesmo no seio da ortodoxia, mas
resolvidas pelas heterodoxias. Finalmente, abordaremos o desastre da proposta
ortodoxa de austeridade no Brasil.
ORIGENS
A ortodoxia e as
heterodoxias podem ser entendidas como derivações da economia política fundada
por Adam Smith. Por um lado, Smith alegava que a livre concorrência levaria à
eficiência e harmonia no uso dos recursos, justificando a liberação das
restrições à busca de interesses pelos indivíduos e o livre comércio entre
países. Por outro lado, Smith posiciona os indivíduos em classes sociais
(aristocratas da terra, burgueses e trabalhadores) que têm conflitos agudos,
documentando coordenação dos empresários para rebaixar salários e aprovar leis
que proíbem a reação coletiva dos trabalhadores.
Grosso modo, a
ortodoxia neoclássica parte do indivíduo como unidade de análise e chega ao
equilíbrio geral entre a soma de indivíduos que formam uma economia harmônica.
As heterodoxias partem da assimetria entre classes sociais ou países e
enfatizam a dinâmica contraditória e a instabilidade geradas pela busca de
enriquecimento dos empresários.
Por isso,
enquanto a ortodoxia legitima um Estado mínimo ou com intervenções pontuais, as
heterodoxias justificam políticas mais estruturantes e maior regulação dos
mercados. Na primeira metade do século 19, Alexander Hamilton nos EUA e
Friedrich List no mundo alemão já questionavam a harmonia entre países
desiguais, inspirando políticas protecionistas e de desenvolvimento.
Em Smith, a
distinção entre indivíduo e classe social não muda sua preferência pelos
burgueses. Tanto ele quanto David Ricardo justificaram a concentração do
patrimônio e da renda pelos capitalistas. Sua abstinência dos prazeres do
consumo supostamente geraria a poupança necessária para o investimento que, em
seguida, geraria a riqueza que gotejaria para os trabalhadores perdulários,
para as rendas dos aristocratas da terra e para a arrecadação tributária. É
isso que Karl Marx e, depois, Keynes questionariam, fundando heterodoxias.
A ênfase no
individualismo metodológico só se completou, porém, com a revolução
marginalista proposta na década de 1870 por Jevons, Menger e especialmente
Walras, patrono do modelo de equilíbrio geral que é a base da ortodoxia
contemporânea. O destaque da economia política clássica nas classes sociais é
substituído, então, pelo equilíbrio harmônico e justo entre indivíduos livres e
iguais, que não se preocupam mais com a aprovação simpática do outro como dizia
Smith, mas apenas com sua vantagem utilitária, à la Bentham.
Assim, a
ortodoxia neoclássica parte do axioma (não-empírico) de indivíduos racionais e
maximizadores de utilidade de acordo com preferências e dotações de recursos
que precedem sua interação social. Nem suas relações nem suas preferências
seriam estruturadas, assimetricamente, de acordo com seu posicionamento em
classes sociais (e países) com poder diferente sobre recursos econômicos e
políticos e sobre a formação de convenções sociais.
Partindo desses
supostos axiomáticos, a dedução lógica assegura a conclusão esperada desde Adam
Smith: as interações livres entre indivíduos (e países) levam a um equilíbrio
estável e maximizador, satisfatório para todos. Como as interações individuais
não são estruturadas por relações desiguais entre classes sociais e países que
mudam historicamente, os fenômenos não precisam ser entendidos com base em uma
análise qualitativa de assimetrias estruturais e suas transformações complexas,
como é típico das heterodoxias.
À moda
positivista, a causalidade é mera concomitância regular de eventos em uma
economia de mercado que é essencialmente a mesma em qualquer tempo e espaço.
Assim, os fenômenos são explicados pela mudança exógena de preferências,
técnicas e intervenções políticas, gerando incentivos comunicados pelos preços
que, por sua vez, induzem a reação de indivíduos maximizadores até que um novo
equilíbrio seja alcançado.
A moeda é vista
apenas como um véu que facilita trocas reais, enquanto o sistema financeiro
apenas intermedia recursos reais entre poupadores e investidores. Assim, a
inflação atrapalha a poupança e as interações mercantis que sempre tendem ao
pleno emprego dos recursos reais, resultando de alguma intervenção exógena,
como gastança do governo ou egoísmo dos sindicatos. Os equilíbrios aquém do
ótimo não seriam resultados endógenos das interações, mas meras reações da
economia de mercado a intervenções que querem levá-la além do ótimo.
O DESAFIO DE
KEYNES
Em 1936, Keynes
desafiou a ortodoxia ao afirmar que a economia monetária de produção tinha
mecanismos endógenos que não asseguravam o equilíbrio com pleno emprego. O
pleno emprego era uma situação possível e especial, mas uma teoria geral
deveria explicar outros estados de equilíbrio sem pleno emprego. Keynes alegou
que a mera disponibilidade de recursos não assegurava que fossem usados ao
máximo, pois os capitalistas investiriam caso houvesse expectativas favoráveis
de demanda efetiva para ocupar a capacidade ociosa.
Se imaginarem
que a capacidade ociosa não será ocupada e estiverem endividados, os
empresários podem destinar recursos para o pagamento de dívidas ou para a
constituição de reservas financeiras. O que é racional para o indivíduo,
contudo, é ruim para a classe: no agregado, a queda do gasto significa queda de
receitas, o que pode tornar ainda mais difícil pagar dívidas e induzir a novas
contrações dos gastos e das receitas.
Ao invés da
causação cumulativa, a ortodoxia confia no feedback negativo da flexibilidade
de preços para restaurar o equilíbrio maximizador: a queda de preços e salários
aumentaria a demanda automaticamente. Keynes acusa aí uma nova falácia de
composição: preços menores reduziriam a capacidade de pagamento de dívidas e
encareceriam sua rolagem, enquanto salários menores reduzem o gasto dos capitalistas,
mas também seu nível de produção e suas receitas, inibindo ainda mais o
investimento. Michal Kalecki, o principal macroeconomista marxista
contemporâneo de Keynes, diria que os trabalhadores tendem a gastar o que
ganham, mas os capitalistas ganham o que gastam.
De nada adianta
que o corte do gasto privado leve a uma redução da arrecadação de impostos. Se
o governo cortar despesas, as receitas do setor privado voltariam a cair e a
capacidade ociosa a subir. E nada garante que as exportações líquidas aumentem
para compensar a contração da demanda interna.
Isso é agravado
pelo funcionamento do sistema financeiro. Como mostrou Hyman Minsky, o sistema
não se limita a intermediar recursos reais entre poupadores e investidores: ele
cria poder de compra, endogenamente, através da expansão do crédito,
alimentando um otimismo crescente que rebaixa exigências para concessão de
empréstimos e inflaciona o preço de ativos financeiros.
Quando o ciclo
muda de direção, as convenções sociais que animam a valoração de ativos
tornam-se pessimistas, levando à queda de preços à medida que são liquidados em
uma busca pela liquidez de saldos monetários e títulos da dívida pública. O
aumento da poupança financeira desejada microeconomicamente não leva a um
aumento da poupança macroeconômica, pois os investimentos caem e, com eles, a
renda agregada, os lucros e a capacidade de pagar dívidas.
Assim como a
elevação de investimentos, consumo dos trabalhadores, gasto público pode se
realimentar e levar a economia a um boom de otimismo e tomada de riscos
crescentes, a reversão dos gastos pode alimentar um círculo vicioso de
pessimismo e queda de demanda até uma crise financeira, se a deflação de ativos
financeiros levar à desconfiança quanto à solvência dos bancos que financiaram
a expansão e a especulação.
O recado de
Keynes é que o sistema não tem a capacidade de se auto-regular. Sem que o
governo diminua sua poupança e incorra em déficits quando os empresários
resolvem poupar coletivamente, a busca de poupança será frustrada pela queda da
renda agregada. Sem que bancos centrais reduzam juros, ofereçam créditos que os
bancos não conseguem contratar no interbancário e até comprem ativos quando os
bancos os liquidam, a desaceleração cíclica e o esgotamento da bolha financeira
acabará em falências bancárias e em uma montanha de dívidas impagáveis.
Melhor que
remediar, contudo, seria prevenir a instabilidade com a construção de
instituições apropriadas. Primeiro, o planejamento e coordenação de um volume
amplo de investimentos públicos reduziria a instabilidade do investimento
privado ao assegurar um nível adequado de demanda efetiva. Segundo, o banco
central deveria assegurar a liquidez dos bancos, mas em troca proibir ou
restringir fortemente o financiamento de posições nos mercados de ativos,
separando o financiamento do investimento produtivo e os ciclos especulativos.
Terceiro, controles de capitais proibiriam a especulação nos mercados de
câmbio, enquanto instituições multilaterais financiariam desequilíbrios de
balanço de pagamento sem impor uma recessão, que apenas transferiria o
desequilíbrio de um país a outro. Finalmente, políticas de renda e sociais
deveriam inibir a desigualdade, pois a maior propensão a consumir dos
trabalhadores (em relação aos ricos) ampliaria o multiplicador do gasto
autônomo e contribuiria para um nível adequado de demanda para os
investimentos.
A RESPOSTA
NEOCLÁSSICA
A reação
ortodoxa foi enquadrar a macroeconomia de Keynes no arcabouço neoclássico,
fazendo da situação de ociosidade de recursos novamente um caso particular da
microeconomia do equilíbrio geral. Os macroeconomistas neoclássicos não
abandonaram o individualismo metodológico nem incorporaram a concepção de
causação cumulativa e endógena dos ciclos de crédito e investimento, o papel da
incerteza e das convenções sociais que induzem os agentes a comportamentos
individualmente racionais, mas coletivamente irracionais em ondas de otimismo
que se desdobram em pessimismo, em razão do excesso de investimento em
capacidade ociosa, inflação de ativos e endividamento.
Os neoclássicos
não chegaram ao resultado keynesiano apontando motivos endógenos à interação
entre capitalistas, pois mantiveram a suposição de indivíduos com acesso
simétrico aos mercados de crédito e seguros e às melhores informações e
tecnologias, usando o mesmo modelo teórico e operando em concorrência perfeita.
O sistema só não seria levado ao equilíbrio maximizador por causa de falhas de
mercado que, no fundo, eram um bloqueio exógeno a um sistema que não teria
qualquer instabilidade intrínseca. Não haveria imperfeição ou equilíbrio
sub-ótimo na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo de indivíduos
racionais e maximizadores de utilidade.
O irrealismo dos
supostos e a experiência recorrente de crises levou a questionamentos
crescentes dentro e fora da igreja neoclássica: como confiar nas previsões se
os supostos eram cada vez mais deslocados de uma realidade de grandes empresas
e bancos com poder oligopólico crescente? A falsa solução foi proposta por Milton
Friedman em 1953, criando a metodologia neoclássica moderna e sua ênfase na
formalização matemática e métodos econométricos.
Friedman alegou
que os economistas neoclássicos não deveriam se importar com o irrealismo das
hipóteses sobre a concorrência perfeita e sobre o comportamento dos indivíduos.
Não era mais necessário fazer pesquisa empírica e histórica sobre as condições
institucionais do capitalismo realmente existente. Bastava partir de supostos
escolhidos arbitrariamente (axiomas não-empíricos) e supor que o mundo funciona
"como se" eles fossem válidos. Ao invés de explicar, tratava-se
simplesmente de prever a correlação entre variáveis exógenas e endógenas ao
modelo, supondo, com toda a fé, que os elos causais entre elas resultem da operação
(não observada) de indivíduos livres sem interações assimétricas.
A imensa maioria
dos ortodoxos sequer sabe que a proposta metodológica de Friedman, próxima do
instrumentalismo, é rejeitada quase universalmente entre filósofos e
epistemólogos, porque faz da economia a única ciência em que a maioria dos
praticantes não se preocupa em explicar fenômenos, mas apenas prever
correlações com base em descrições e supostos completamente irrealistas sobre o
funcionamento do objeto.
A despeito de
sua artimanha metodológica, todas as hipóteses de Friedman foram refutadas
quando se mostrou que confundiam causalidade e correlação ou que a correlação
nem existia: que a oferta de moeda era exógena; que a variação de preços
dependia da oferta exógena de moeda; que a velocidade de circulação da moeda
era praticamente constante; que os agentes econômicos não se preocupavam com
variáveis nominais; que a especulação estabilizante levaria o preço de ativos
ao seu equilíbrio fundamental.
Não obstante seu
fracasso teórico, a liberação do irrealismo dos supostos permitiu que vários
economistas neoclássicos formulassem hipóteses ainda mais ousadas para elogiar
a perfeição dos mercados e a imperfeição de políticas que busquem limitar e
orientar comportamentos econômicos. A economia política neoclássica, por
exemplo, admitiu de modo protocolar a existência de falhas de mercado (como
monopólios naturais e a poluição), mas as considerou raras e menores do que as
falhas dos governos que tentassem revertê-las.
Era a senha para
o ataque neoliberal contra as instituições de regulação do capitalismo
construídas no pós-guerra e desmontadas a partir da década de 1980. A revolução
das expectativas racionais, liderada por Lucas, Barro e Sargent, levou ao
extremo a confiança na mecânica dos mercados livres. Para os autores
novo-clássicos, como os agentes racionais sabem que o aumento do gasto público
levará à elevação futura de impostos, anulam completamente a política fiscal
com cortes compensatórios dos gastos privados, para economizar recursos para o pagamento
futuro de impostos. A melhor política contracíclica seria, portanto, cortar o
gasto público, o que levaria os agentes a aumentar o gasto privado desde logo!
Como os mercados
financeiros seriam eficientes e bolhas de ativos seriam impossíveis, as restrições
às operações financeiras deveriam ser eliminadas ou fortemente reduzidas para
permitir a melhor alocação possível dos recursos. Finalmente, políticas de
rendas e sociais deveriam ser "flexibilizadas" para permitir a
redução de salários e o aumento da poupança, a realocação de trabalhadores
entre ramos e o aumento dos incentivos para o trabalho duro.
Hoje em dia, o
campo neoclássico é dividido em dois grupos. A visão novo-keynesiana, mais à
esquerda, reconhece falhas de mercado (rigidez de preços e salários ou
assimetrias de informação) e confia na capacidade do Estado em regulá-las,
enquanto os novo-clássicos desconfiam à direita. Os novo-keynesianos defendem
políticas contra a desigualdade, mas, contra Keynes, compartilham com os
novo-clássicos a hipótese de que geram perda de eficiência e crescimento.
Também admitem a política fiscal "de emergência" durante crises, mas
até 2008 se uniram em uma "nova síntese" que alegava que novas crises
seriam improváveis graças à submissão dos banqueiros centrais às regras do
regime de metas de inflação. Nenhuma das escolas neoclássicas previu a crise
financeira mundial, ao contrário de inúmeros autores heterodoxos que mantiveram
a concepção dinâmica das instabilidades do capitalismo herdada de Marx, Keynes
e Minsky.
AUTOCRÍTICA SEM
TEORIA
É claro que o
fracasso das políticas e reformas neoliberais não poderia passar desapercebido
pelo campo neoclássico. Curioso é que a autocrítica não passe perto dos
neoclássicos brasileiros. Lisboa e Pessôa, por exemplo, sustentam o dogma que
"em geral, as economias operam nas proximidades do pleno emprego" e
não o consideram refutado pelas evidências desde 2008.
Continuam
afirmando a contradição - central ao programa neoliberal - entre busca de
igualdade e ganho de eficiência e crescimento, como se o aumento da
desigualdade não tivesse convivido com redução do crescimento nas três décadas
de neoliberalismo e como se até o FMI já não rejeitasse tal causalidade.
Também defendem
a pauta mínima dos neoinstitucionalistas anglo-saxões quanto aos direitos de
propriedade e gastos em educação como fonte do poderio de seus países, e não a
percebem refutada 1) pelos casos de desenvolvimento com planejamento
industrial, empresas estatais e bancos públicos nas periferias do capitalismo,
2) pelo fato de que regras legais, direitos de propriedade intelectual e o
gasto educacional foram ampliados nas últimas três décadas, o que não impediu o
aumento e aprofundamento das crises financeiras depois do ataque neoliberal,
liderado por reformadores anglo-saxões, às instituições keynesianas de
regulação dos mercados.
Com efeito, os
países que mais cresceram foram os que combinaram a flexibilidade da empresa
privada com controles amplos sobre o sistema financeiro, assim como empresas
estatais, bancos públicos e políticas industriais que orientavam investimentos
públicos e privados, internos e externos. Em suma, o neoliberalismo fracassou
na promessa de alocar melhor os recursos (sem crises) e de ampliar a
desigualdade para gerar mais crescimento econômico.
É curioso que
Lisboa e Pessôa aleguem que as controvérsias teóricas devam ser resolvidas com
evidências empíricas, mas ao mesmo tempo desconheçam as evidências que os
próprios neoclássicos juntaram contra as proposições teóricas que exportaram,
desde a década de 1980, para o Brasil e o resto do mundo através do Consenso de
Washington.
Há poucas
semanas o Fundo Monetário Internacional surpreendeu ao publicar uma autocrítica
aguda do neoliberalismo. A autocrítica envolveu três aspectos do programa que o
Fundo impôs aos países periféricos desde a década de 1980: 1) liberalização
financeira; 2) a relação entre desigualdade e crescimento econômico; 3)
austeridade fiscal.
É digno de nota
que tamanha autocrítica se fez sem qualquer reflexão teórica profunda (apesar das
dúvidas de Olivier Blanchard), como se não houvesse sistemas universitários e
teóricos que formassem economistas que previam o fracasso das reformas
neoliberais desde o início. Mais do que isso: como se o próprio patriarca do
FMI, John Maynard Keynes, não tivesse criado um sistema teórico que explica
porque fracassam as políticas e instituições que a nova ortodoxia neoliberal do
FMI difundiu pelo mundo quarenta anos depois de sua criação, apoiada pelas
"melhores" faculdades de economia e pelo próprio governo dos EUA,
assim como por "think-tanks" financiados por grandes empresários e
corporações.
Diante da
descoberta muito tardia do fracasso das previsões de seu sistema teórico de
base neoclássica, os neoclássicos não sabem o que fazer, a não ser agregar hipóteses
secundárias, ad hoc, por cima de modelos hipotéticos que partem de um único
"agente representativo", mas preveem o equilíbrio maximizador entre
indivíduos racionais. A mágica é retorcer os modelos com "choques
imaginários" e "falhas de mercado" de modo que, exogenamente,
produzam resultados econométricos aparentemente adequados aos dados recortados.
A explanação teórica e a reconstituição histórica, no entanto, se perdem em
meio a formalizações e racionalizações irrelevantes para entender e explicar as
economias capitalistas realmente existentes.
Quanto à
liberalização financeira, foi acompanhada pela explosão de crises, à medida que
os países confiaram na capacidade de auto-regulação dos mercados e desmontaram
a regulamentação keynesiana do sistema financeiro doméstico e os controles ao
movimento internacional de capitais. O FMI agora voltou a admitir controles de
capitais como no mundo anterior à década de 1980 e como na Índia e na China
ainda hoje, embora o principal sócio da instituição multilateral, os EUA, vete
uma defesa explícita que sequer é discutida no meio da ortodoxia brasileira.
No que tange às
relações entre desigualdade e crescimento econômico, tecnocratas neoliberais
legitimaram o ataque de empresários, desde a década de 1970, contra os impostos
que financiavam o Estado de bem-estar social e contra os arranjos sindicais e
políticos que asseguravam o aumento de salários reais. Recuperando argumentos
pré-keynesianos, economistas neoclássicos apresentaram evidências episódicas
para assegurar que a redução de alíquotas de impostos sobre os ricos e a
"flexibilização" (queda) de salários reais e do gasto social
aumentariam o crescimento econômico, o nível de emprego e a própria arrecadação
tributária. Hoje o FMI admite que o aumento da desigualdade, parcialmente
resultante do desmonte das políticas sociais e salariais que buscavam maior
igualdade social, trouxe menos e não mais crescimento econômico.
Programas de
austeridade fiscal, por sua vez, não se mostraram capazes de controlar o
crescimento da dívida pública em relação ao PIB, tendendo ao contrário a
aumentá-la ao provocar desacelerações ou mesmo recessões que deprimem a
arrecadação tributária. Hoje, o FMI considera melhor reduzir o peso da dívida
pública no PIB "organicamente", isto é, depois que o crescimento
econômico seja retomado com políticas anticíclicas e, então, provoque aumento
da arrecadação tributária a um ritmo superior ao do gasto público, enquanto a
redução da taxa de juros diminui o peso da dívida pública no PIB. A ideia de
que a contração fiscal é expansionista só não morreu no meio da ortodoxia
brasileira.
A DITADURA DA
AUSTERIDADE
Só a fé na
hipótese de contração fiscal expansionista explica a desconsideração dos
neoclássicos brasileiros em relação aos dados de queda da rentabilidade das
empresas (apesar das isenções fiscais), deflação do preço das commodities e o
ciclo longo de endividamento de empresas e famílias cuja reversão se iniciava
em 2014. Nestas condições, tomar a parte pelo todo, o micro pelo macro, a
economia doméstica ou a empresa pelo sistema complexo, implica em recomendações
desastrosas de política econômica: para um empresário individual, o corte do
gasto público e do salário real pode representar promessa de custos menores no
futuro, sem que entenda a interação complexa por meio da qual a queda
resultante da demanda agregada vai prejudicar, antes da redução de custos, as
receitas e o balanço patrimonial de sua empresa.
Mais grave é que
o mesmo equívoco se repita entre economistas. Sua esperança é que o investimento
privado se recupere à medida que corte do gasto público acompanhe a queda da
arrecadação, sem prever que, ao se defrontar com o corte da demanda gerado pela
austeridade fiscal e salarial, o empresário vai destinar receitas para pagar
suas dívidas e comprar títulos públicos, sobretudo se o Banco Central prometer
um ciclo longo de elevação de juros.
Em um sistema
complexo, a falácia de composição implica que quando todos, inclusive o
governo, tentam poupar, o corte de demanda agregada frustrará o desejo de
poupar e dificultará ainda mais o pagamento das dívidas. Como não perceber o
desastre caso o governo e o Banco Central também sinalizem para uma grande
depreciação cambial que, antes de estimular exportações, encarecerá importações
e passivos externos?
Nos meses finais
de 2014, já escrevíamos que a economia brasileira estava à beira da recessão.
Também apontávamos a queda do preço das commodities, a operação Lava-Jato e a
possibilidade de racionamento de água e energia como motivos porque um ajuste
fiscal seria contraproducente ao jogar a economia na recessão que acentuaria a
queda da arrecadação tributária e aumentaria o peso da dívida pública no PIB.
Ao mesmo tempo, economistas neoclássicos faziam festa com o anúncio do programa
de Joaquim Levy, expressa por exemplo na previsão do boletim FOCUS de que a
economia se recuperaria em relação a 2014, crescendo 0,8% em 2015. A breve
melhoria da confiança empresarial no final de 2014 parecia dar materialidade à
crença de que, pelo menos no Brasil, a fada da confiança faria milagres.
Nunca afirmamos
que foi apenas o corte severo da despesa pública, acelerado no primeiro
semestre de 2015, que provocou a contração do PIB de 3,8%. Neste caso, o
"conjunto da obra" que reforçou a desaceleração cíclica já em curso e
jogou a economia na recessão incluiu, além das políticas monetária e cambial
incensadas pela ortodoxia, o aumento de receitas por meio da elevação de preços
públicos e impostos federais e estaduais, e as declarações de Levy que
continuaria cortando o que fosse necessário para correr atrás da enorme queda
de arrecadação e alcançar a meta fiscal irrealista, acentuando a espiral
descendente que, certamente, contribuiu para aumentar a impopularidade da
presidenta e as incertezas trazidas pela crise política.
Afirmamos sim
que o programa fiscal seria contraproducente para sua finalidade declarada,
melhorar o resultado fiscal ou, pior ainda, a relação dívida pública/PIB.
Estudos econométricos apontam que o multiplicador fiscal, o montante que a
renda nacional cresce (ou cai) para cada Real gasto (ou eliminado) pelo
governo, se amplia em uma recessão, podendo chegar a um valor maior do que 3,5,
sobretudo se cortar o investimento público e prejudicar a confiança no futuro
de empresas e famílias. A sensibilidade da arrecadação tributária a uma
recessão também é maior, de modo que a tentativa do governo de aumentar sua
poupança tende a se frustrar à medida que o multiplicador fiscal se eleva e a
arrecadação despenca. Não se estimou o esforço tributário de Estados e municípios,
mas o da União chegou a pelo menos 0,44% do PIB, com ganho de carga tributária
de apenas 0,12% em 2015 (e com IRPF de 2014!).
Ou pior, uma
política que contribui para derrubar o PIB não tem como reduzir a relação
dívida/PIB, tanto mais se a política de juros altos colabora para aumentar o
numerador e reduzir o denominador. Como dizia Keynes, se há algum momento
propício para a austeridade, esse é o boom e não a recessão. O ônus da prova de
que o contrário vale para o Brasil, mas não no resto do mundo, continua com os
defensores de primeira hora da austeridade expansionista.
Eles precisam
provar, também, que a concentração da renda aumenta a capacidade de recuperação
da economia brasileira, que acabou de passar por um longo ciclo de crescimento
sob o impulso da desconcentração da renda e da incorporação de trabalhadores
pobres aos mercados de consumo. Joaquim Levy afirmou em junho de 2015 que havia
gente que não queria entrar mais no mercado de trabalho, mas voltaria com a
recessão a procurar emprego, o que seria bom pois "não existe crescimento
sem aumento da oferta de trabalho."
Em debate que
tivemos em outubro de 2015 com Lisboa e Pessôa, este afirmou que "quanto
mais os salários reais caírem, mais rápido e indolor o ajuste vai ser. Em maio,
junho, fiquei super feliz porque as expectativas estavam mostrando uma queda de
salário real de 5%". Ora, Keynes já mostrara há décadas que, assim como o
corte do gasto público, a queda de salários e do nível de emprego também reduz
os lucros agregados à medida que as vendas caem. Mesmo prevendo salários e
custos menores, os capitalistas não investem sem demanda. E, paradoxalmente,
não lucram se não gastam.
O resultado é
que a queda de receitas torna as empresas superendividadas, com risco crescente
de inadimplência que, por sua vez, retrai ainda mais o crédito bancário. Ou
seja, quando todos poupam para pagar suas dívidas ao mesmo tempo, tanto a
dívida pública quanto a privada aumentam em relação ao PIB em queda.
Curiosamente,
muitos dos economistas que diziam não haver espaço fiscal para uma política
anticíclica no final de 2014 aceitaram a primeira revisão da meta de déficit
fiscal para R$ 170,5 bilhões em 2016 pelo governo interino, nos fazendo supor
que não eram tecnicamente equivocadas, mas politicamente motivadas, as censuras
àqueles que, como nós, criticavam a resistência do ministro Levy a revisar a
meta fiscal irrealista em 2015.
A solução do
novo governo Temer é, contudo, dobrar a aposta na austeridade, tornando-a
permanente com a PEC 241, que impede a ampliação real do gasto público. Se
aprovada, levará a cortes radicais nas leis que preveem ampliação da cobertura
de bens e serviços públicos, inclusive educação e saúde, para poupar recursos
para o pagamento da dívida pública.
Macroeconomicamente,
é um mau negócio. O gasto social tem um grande multiplicador fiscal,
conservadoramente estimado pelo IPEA acima de 1,5, mas o multiplicador do
pagamento de serviços da dívida pública é estimado pouco abaixo de 0,8, dado o
fato que seus portadores são, em geral, liberados de preocupações imediatas de
consumo.
Embora mesmo o
FMI admita que a melhor maneira de controlar o peso da dívida pública no PIB é
estimular o PIB e reduzir a taxa de juros, as atas do Copom sob comando de Ilan
Goldfajn parecem condicionar a queda da taxa de juros à "continuidade dos
esforços para aprovação e implementação (das) reformas fiscais", leia-se a
PEC 241.
O problema
disso, primeiro, é que o déficit público não resulta de gastança, mas de queda
de arrecadação, logo a inflação não resulta de excesso de demanda pública a
controlar com juros altos. Segundo, os juros elevados e inexplicáveis são o
principal determinante da ampliação da dívida pública, gerando custos que a
austeridade do gasto social e do investimento público é incapaz de controlar,
tanto mais porque os cortes limitam o crescimento do PIB.
Politicamente, é
uma impostura: pesquisas de opinião mostram que a imensa maioria da população
(até 98%) aprova a universalidade e a gratuidade da saúde e da educação
pública. No mundo acadêmico, além de injusta, a austeridade é vista como
contraproducente tecnicamente. O maior risco atual à democracia brasileira é
que instituamos uma ditadura de tecnocratas que legitimam, com retórica
cientificista, mudanças no pacto social inscrito na Constituição Federal com
base em argumentos desatualizados empírica e teoricamente.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 09/10/2016. Título original: 'Uma Crítica aos Pressupostos do Ajuste Econômico'.