Constituiu-se
um significativo consenso em torno da ideia do alemão Bertolt Brecht segundo a
qual é finalidade da ciência contribuir com a ciência e procurar aliviar o
sofrimento humano. Mas se ele ressuscitasse e, atualmente, entrasse no
Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), órgão do governo federal, e reafirmasse
a sua ideia sobre a ciência, possivelmente seria censurado. Se fosse até à sala
do presidente da instituição, o sr. Ernesto Lozardo, provavelmente seria escorraçado e demitido de alguma
função de chefia que exercesse.
Mutatis mutantis,
foi isso que aconteceu com a pesquisadora Fabíola Sulpino Vieira. Ela é autora
de um estudo do Ipea que
sinaliza os cortes bilionários na saúde após a aprovação da dita PEC do teto
dos gastos. O presidente da instituição (amigo do Presidente da República) convoco-a
ao seu gabinete e repreendeu-a - ela saiu da sala exonerada do cargo de Coordenadora de Estudos de Saúde do IPEA. Feito isso, o
dirigente passou à desqualificação pública do trabalho da pesquisadora.
Aqui estamos diante de um caso que vai além do
que o filósofo francês Lamennais assinalava ao afirmar que a ciência serve para dar uma ideia da
ignorância humana. O caso da censura no IPEA não decorre propriamente de
ignorância, mas de uma decisão política maior, deliberada, estruturada em torno
de diretrizes como: 1) impor a qualquer custo ao país uma agenda regressiva em
relação aos direitos e aos preceitos democráticos, agenda essa que não tem a
chancela das urnas, e que dificilmente o teria; 2) para efetivar tal agenda,
desenvolver um meticuloso trabalho propagandístico e de manipulação, justificando
a sua necessidade em decorrência das ações do governo anterior; 3) frear as
investigações da corrupção, para que elas não cheguem à atual cúpula do poder,
sendo a parcialidade procedimental um mecanismo nesse sentido; 4) manter
intocados os privilégios dos que sempre lucram em qualquer governo, com ou sem
crise; 5) lançar mão da repressão pura e dura, para coibir protestos; 6)
silenciar vozes dissonantes, indo dos meios de informação alternativos/não
corporativos e chegando agora, com o caso do IPEA, à esfera da produção
científica.
É fato que o poder político
tende a não ter simpatia pela ciência, conforme, ao longo da história, está bem
demonstrado. Contudo, isso só se torna muito acentuado em momentos que as
tentações autoritárias batem à porta, os regimes de exceção estão consolidados
ou estão à procura de evitar a sua débâcle.
Cabe pensar em que momento o Brasil se encontra.
De resto, é imperativo a
comunidade científica manifestar a mais ampla e irrestrita solidariedade à
pesquisadora Fabíola Sulpino Vieira. Segui il tuo corso, e lascia
dir le gentil.
Aí
abaixo, artigo do jornalista Bernardo Mello Franco, dando conta do caso. Pesquisadora Fabíola Sulpino Vieira |
Por Bernardo Mello Franco
Na última terça, esta coluna [da Folha de São Paulo] publicou um estudo do Ipea que
projeta cortes bilionários na saúde após a aprovação da PEC do teto de gastos.
No mesmo dia, o presidente do instituto, Ernesto Lozardo, chamou a seu gabinete
uma das autoras do texto, a nota técnica nº 28.
Doutora pela Universidade Federal de São Paulo, Fabiola
Sulpino Vieira entrou na sala do chefe como coordenadora de estudos de saúde do
Ipea. Saiuexonerada do cargo e
alvo de uma censura pública, fato inédito nos 52 anos do instituto.
Na reunião, a pesquisadora ouviu de Lozardo que seu
trabalho criou constrangimento ao governo. Foi avisada de que ele divulgaria
uma nota contestando o estudo do próprio órgão e endossando a versão do
Planalto sobre a PEC. Sob pressão, decidiu entregar o posto de chefia.
Na nota nº 28, Fabiola e o colega Rodrigo Benevides
projetaram quatro cenários para a saúde no novo regime fiscal. No pior, a perda
chegaria a R$ 743 bilhões. O estudo reconhece a penúria do governo, mas
sustenta que um ajuste focado nas despesas primárias "afeta
particularmente as políticas sociais". É possível concordar ou discordar,
mas não há nada no texto que autorize a desqualificação dos pesquisadores.
Nomeado há quatro meses pelo presidente Michel Temer, de
quem é amigo, Lozardo reagiu com a ferocidade de um cão de guarda. Tachou o
estudo de "irrealista" e "desconectado" e afirmou que suas
conclusões "são de inteira responsabilidade dos autores" e "não
representam a posição" do Ipea. Entre outras coisas, omitiu que o trabalho
foi submetido previamente à direção do instituto.
A censura do doutor Lozardo é preocupante porque sugere
que o novo regime está disposto a barrar estudos que contrariem suas teses. Se
a regra prevalecer no Ipea, pode se alastrar para o IBGE e as universidades
federais. Em outros tempos, a tentativa de submeter órgãos técnicos à vontade
política do governo era chamada de aparelhamento.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 16/10/2016
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