domingo, 16 de outubro de 2016

Censura no IPEA: ataque à ciência; solidariedade à pesquisadora Fabíola Vieira

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Constituiu-se um significativo consenso em torno da ideia do alemão Bertolt Brecht segundo a qual é finalidade da ciência contribuir com a ciência e procurar aliviar o sofrimento humano. Mas se ele ressuscitasse e, atualmente, entrasse no Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), órgão do governo federal, e reafirmasse a sua ideia sobre a ciência, possivelmente seria censurado. Se fosse até à sala do presidente da instituição, o sr. Ernesto Lozardo,  provavelmente seria escorraçado e demitido de alguma função de chefia que exercesse.
Mutatis mutantis, foi isso que aconteceu com a pesquisadora Fabíola Sulpino Vieira. Ela é autora de um estudo do Ipea que sinaliza os cortes bilionários na saúde após a aprovação da dita PEC do teto dos gastos. O presidente da instituição (amigo do Presidente da República) convoco-a ao seu gabinete e repreendeu-a - ela saiu da sala exonerada do cargo de Coordenadora de Estudos de Saúde do IPEA. Feito isso, o dirigente passou à desqualificação pública do trabalho da pesquisadora.
Aqui estamos diante de um caso que vai além do que o filósofo francês Lamennais assinalava ao afirmar que a ciência serve para dar uma ideia da ignorância humana. O caso da censura no IPEA não decorre propriamente de ignorância, mas de uma decisão política maior, deliberada, estruturada em torno de diretrizes como: 1) impor a qualquer custo ao país uma agenda regressiva em relação aos direitos e aos preceitos democráticos, agenda essa que não tem a chancela das urnas, e que dificilmente o teria; 2) para efetivar tal agenda, desenvolver um meticuloso trabalho propagandístico e de manipulação, justificando a sua necessidade em decorrência das ações do governo anterior; 3) frear as investigações da corrupção, para que elas não cheguem à atual cúpula do poder, sendo a parcialidade procedimental um mecanismo nesse sentido; 4) manter intocados os privilégios dos que sempre lucram em qualquer governo, com ou sem crise; 5) lançar mão da repressão pura e dura, para coibir protestos; 6) silenciar vozes dissonantes, indo dos meios de informação alternativos/não corporativos e chegando agora, com o caso do IPEA, à esfera da produção científica.   
É fato que o poder político tende a não ter simpatia pela ciência, conforme, ao longo da história, está bem demonstrado. Contudo, isso só se torna muito acentuado em momentos que as tentações autoritárias batem à porta, os regimes de exceção estão consolidados ou estão à procura de evitar a sua débâcle. Cabe pensar em que momento o Brasil se encontra.
De resto, é imperativo a comunidade científica manifestar a mais ampla e irrestrita solidariedade à pesquisadora Fabíola Sulpino Vieira. Segui il tuo corso, e lascia dir le gentil.
Aí abaixo, artigo do jornalista Bernardo Mello Franco, dando conta do caso. 

Pesquisadora Fabíola Sulpino Vieira 

Por Bernardo Mello Franco 

Na última terça, esta coluna [da Folha de São Paulo] publicou um estudo do Ipea que projeta cortes bilionários na saúde após a aprovação da PEC do teto de gastos. No mesmo dia, o presidente do instituto, Ernesto Lozardo, chamou a seu gabinete uma das autoras do texto, a nota técnica nº 28.
Doutora pela Universidade Federal de São Paulo, Fabiola Sulpino Vieira entrou na sala do chefe como coordenadora de estudos de saúde do Ipea. Saiuexonerada do cargo e alvo de uma censura pública, fato inédito nos 52 anos do instituto.
Na reunião, a pesquisadora ouviu de Lozardo que seu trabalho criou constrangimento ao governo. Foi avisada de que ele divulgaria uma nota contestando o estudo do próprio órgão e endossando a versão do Planalto sobre a PEC. Sob pressão, decidiu entregar o posto de chefia.
Na nota nº 28, Fabiola e o colega Rodrigo Benevides projetaram quatro cenários para a saúde no novo regime fiscal. No pior, a perda chegaria a R$ 743 bilhões. O estudo reconhece a penúria do governo, mas sustenta que um ajuste focado nas despesas primárias "afeta particularmente as políticas sociais". É possível concordar ou discordar, mas não há nada no texto que autorize a desqualificação dos pesquisadores.
Nomeado há quatro meses pelo presidente Michel Temer, de quem é amigo, Lozardo reagiu com a ferocidade de um cão de guarda. Tachou o estudo de "irrealista" e "desconectado" e afirmou que suas conclusões "são de inteira responsabilidade dos autores" e "não representam a posição" do Ipea. Entre outras coisas, omitiu que o trabalho foi submetido previamente à direção do instituto.
A censura do doutor Lozardo é preocupante porque sugere que o novo regime está disposto a barrar estudos que contrariem suas teses. Se a regra prevalecer no Ipea, pode se alastrar para o IBGE e as universidades federais. Em outros tempos, a tentativa de submeter órgãos técnicos à vontade política do governo era chamada de aparelhamento. 

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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 16/10/2016

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