Por Carlos Eduardo Berriel
Há exatamente meio milênio,
em 1516, saiu em Amsterdã um livrinho destinado a ter um papel central na vida
dos debates políticos e da ética: conta a história de um navegante português
que descobriu uma ilha desconhecida, chamada Utopia, cujo nome não consta de
nenhum mapa geográfico. Seu autor, o londrino Thomas Morus, inventou o
neologismo "ou-topia", "não-lugar", articulando as palavras
gregas "où", "não", e "tópos", lugar. Portanto,
utopia quer dizer, literalmente, "o que está em nenhum lugar". Na
pronúncia inglesa é formada uma homofonia de ou-topia (não-lugar) e eu-topia
(terra de felicidade), o que gerou uma ambiguidade intencional e contribuiu
– querendo ou não – para as ambiguidades que o uso do termo conheceu, e conhece,
em sua história.
Desde então o pensamento moderno pulula de cidades
hipotéticas e de mundos ideais, situados em um além imaginário, países que não
existem de fato, mas que são dotados, pela mente de seu inventor, de realidade
impactante sobre nossas vidas.
São cidades hiper-racionais, geométricas, ou mundos
exóticos, trazidos pelos relatos dos viajantes. Podem ser países da Cocanha,
abundantes e justos; podem ser mundos de ponta-cabeça, onde os servos são
senhores e vice-versa. Ou então realidades situadas em um não tempo, em uma
"u- cronia", onde as leis universais da história já concluíram seu
périplo e encontramos então um admirável mundo novo.
Tudo isso se inscreve na imaginação, numa transversal do
tempo, quando o pensamento e a imaginação utópica conseguem equilibrar a
esperança de um mundo melhor. Mas a esperança pode se transformar em angústia,
e o sonho pode desandar pois, como disse a antropóloga Margaret Mead, "O
sonho de um é o pesadelo de outro".
A utopia é uma forma de pensamento basicamente moderna,
para onde convergiram numerosas outras formas tradicionais de pensamento
político, principalmente vindas dos gregos –da República de Platão e das
viagens imaginárias de Luciano de Samósata. Plutarco, Cícero, os epicuristas
também habitam essa ilha, assim como o messianismo judaico-cristão, que fazia
esperar a regeneração do homem e a volta ao Paraíso Terrestre.
CONTRADIÇÃO
A utopia, porém, nasce trazendo uma contradição
congênita: sendo filha do desenvolvimento das forças produtivas próprias do
Renascimento, funda virtualmente uma sociedade tão perfeita em seus fundamentos
que termina por impedir toda forma de desenvolvimento. É uma construção
imaginária refém de sua própria perfeição. É o que levou Marx a dizer:
"Quem compõe um projeto para o futuro é um reacionário".
Se a utopia é uma sociedade perfeita, isto significa em
decorrência que não pode ser aperfeiçoada e nem se degradar, porque ambas as
coisas pressupõem a imperfeição. Na prática, a utopia significaria uma estática
social, um mundo parado e eternizado em si mesmo. Isto é, a
"u-cronia", ou ausência de tempo – uma impossibilidade.
Mas podemos ir além: uma sociedade utópica real, para
garantir sua existência estática, precisaria recorrer à eterna vigilância e a
todas as formas de violência: "A utopia prática é indissociável da
violência", já disse Karl Popper.
Quem projeta uma sociedade crê que os seres humanos
estejam inteiramente à sua disposição, num consenso incondicionado, aceitando
implicitamente que serão controlados e dispostos conforme o desenho lógico do
engenheiro social –aquele que crê que sua lógica particular deve se tornar
universal. Estamos, obviamente, falando daqueles personagens de tão turva
memória, tais como o Grande Inquisidor, o Condutor, o Grande Irmão, o Guia
Genial.
Conectada ao chão histórico do qual surge, a utopia
sempre corresponde aos desejos e às esperanças coletivas de seu tempo pois, partindo
de elementos reais, constrói virtualmente todas as histórias possíveis, todos
os cenários que a história não realizou. A raiz desta ideia vem da
"Poética" de Aristóteles, que diz ser a poesia mais ampla que a
história, pois realiza até o fim aquilo que a história apenas esboçou.
A utopia está aí: é uma tendência da realidade, operante
e efetiva, mas que não se materializa enquanto Estado – existe numa dimensão
própria, entre o mundo das ideias e a dura poesia concreta do mundo material.
Para a disciplina do utopista, o mundo não é apenas
aquilo que se nos apresenta, mas é também aquilo que está oculto. Para o bem e
para o mal. A utopia não parte de um ponto fora do sujeito histórico (de Deus,
por ex.), mas do próprio sujeito. Isto quer dizer que toda utopia, mesmo
falando de um futuro fictício, está na verdade falando dos problemas da época
em que foi escrita. A utopia possui a sua própria história, que de certa
maneira é a história do inconformismo intelectual diante das formas do mundo
estabelecido.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 28/08/2016.