domingo, 23 de outubro de 2016

O que está em nenhum lugar

Por Carlos Eduardo Berriel 

Há exatamente meio milênio, em 1516, saiu em Amsterdã um livrinho destinado a ter um papel central na vida dos debates políticos e da ética: conta a história de um navegante português que descobriu uma ilha desconhecida, chamada Utopia, cujo nome não consta de nenhum mapa geográfico. Seu autor, o londrino Thomas Morus, inventou o neologismo "ou-topia", "não-lugar", articulando as palavras gregas "où", "não", e "tópos", lugar. Portanto, utopia quer dizer, literalmente, "o que está em nenhum lugar". Na pronúncia inglesa é formada uma homofonia de ou-topia (não-lugar) e eu-topia (terra de felicidade), o que gerou uma ambiguidade intencional e contribuiu – querendo ou não – para as ambiguidades que o uso do termo conheceu, e conhece, em sua história.
Desde então o pensamento moderno pulula de cidades hipotéticas e de mundos ideais, situados em um além imaginário, países que não existem de fato, mas que são dotados, pela mente de seu inventor, de realidade impactante sobre nossas vidas.
São cidades hiper-racionais, geométricas, ou mundos exóticos, trazidos pelos relatos dos viajantes. Podem ser países da Cocanha, abundantes e justos; podem ser mundos de ponta-cabeça, onde os servos são senhores e vice-versa. Ou então realidades situadas em um não tempo, em uma "u- cronia", onde as leis universais da história já concluíram seu périplo e encontramos então um admirável mundo novo.
Tudo isso se inscreve na imaginação, numa transversal do tempo, quando o pensamento e a imaginação utópica conseguem equilibrar a esperança de um mundo melhor. Mas a esperança pode se transformar em angústia, e o sonho pode desandar pois, como disse a antropóloga Margaret Mead, "O sonho de um é o pesadelo de outro".
A utopia é uma forma de pensamento basicamente moderna, para onde convergiram numerosas outras formas tradicionais de pensamento político, principalmente vindas dos gregos –da República de Platão e das viagens imaginárias de Luciano de Samósata. Plutarco, Cícero, os epicuristas também habitam essa ilha, assim como o messianismo judaico-cristão, que fazia esperar a regeneração do homem e a volta ao Paraíso Terrestre.

CONTRADIÇÃO
A utopia, porém, nasce trazendo uma contradição congênita: sendo filha do desenvolvimento das forças produtivas próprias do Renascimento, funda virtualmente uma sociedade tão perfeita em seus fundamentos que termina por impedir toda forma de desenvolvimento. É uma construção imaginária refém de sua própria perfeição. É o que levou Marx a dizer: "Quem compõe um projeto para o futuro é um reacionário".
Se a utopia é uma sociedade perfeita, isto significa em decorrência que não pode ser aperfeiçoada e nem se degradar, porque ambas as coisas pressupõem a imperfeição. Na prática, a utopia significaria uma estática social, um mundo parado e eternizado em si mesmo. Isto é, a "u-cronia", ou ausência de tempo – uma impossibilidade.
Mas podemos ir além: uma sociedade utópica real, para garantir sua existência estática, precisaria recorrer à eterna vigilância e a todas as formas de violência: "A utopia prática é indissociável da violência", já disse Karl Popper.
Quem projeta uma sociedade crê que os seres humanos estejam inteiramente à sua disposição, num consenso incondicionado, aceitando implicitamente que serão controlados e dispostos conforme o desenho lógico do engenheiro social –aquele que crê que sua lógica particular deve se tornar universal. Estamos, obviamente, falando daqueles personagens de tão turva memória, tais como o Grande Inquisidor, o Condutor, o Grande Irmão, o Guia Genial.
Conectada ao chão histórico do qual surge, a utopia sempre corresponde aos desejos e às esperanças coletivas de seu tempo pois, partindo de elementos reais, constrói virtualmente todas as histórias possíveis, todos os cenários que a história não realizou. A raiz desta ideia vem da "Poética" de Aristóteles, que diz ser a poesia mais ampla que a história, pois realiza até o fim aquilo que a história apenas esboçou.
A utopia está aí: é uma tendência da realidade, operante e efetiva, mas que não se materializa enquanto Estado – existe numa dimensão própria, entre o mundo das ideias e a dura poesia concreta do mundo material.
Para a disciplina do utopista, o mundo não é apenas aquilo que se nos apresenta, mas é também aquilo que está oculto. Para o bem e para o mal. A utopia não parte de um ponto fora do sujeito histórico (de Deus, por ex.), mas do próprio sujeito. Isto quer dizer que toda utopia, mesmo falando de um futuro fictício, está na verdade falando dos problemas da época em que foi escrita. A utopia possui a sua própria história, que de certa maneira é a história do inconformismo intelectual diante das formas do mundo estabelecido.

-------------------------------
Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 28/08/2016.