Por Franklin Leopoldo e Silva
(Professor de História da Filosofia Contemporânea na USP)
Bergson afirmou que a originalidade de uma intuição filosófica se mede
pelo poder de dizer “não” a tudo aquilo que a época aceita como verdade
constituída. Assim, uma nova filosofia não se faz desde logo pela coerência de
uma sucessão de afirmações, mas, sim, por uma negatividade que, a princípio,
pode parecer até mesmo obstinação. Depois, esse ímpeto de contradizer se
revelará como a primeira manifestação da força da convicção.
Esse é certamente o caso de Kierkegaard, que viveu de 1813 a 1855 na
Dinamarca, país que, como quase toda a Europa, estava nessa época sob o império
da influência cultural de Hegel (1795-1831), de quem se pode dizer que teria
sido o autor do mais vasto sistema de compreensão da totalidade que se produziu
na filosofia. Com efeito, provavelmente não se encontre na história do
pensamento uma tentativa de articulação compreensiva que manifeste igual poder
de abrangência do curso da história humana por meio de uma lógica que incorpora
todos os movimentos da realidade, situando todos os pormenores da experiência
vivida na dimensão de uma racionalidade universal entendida como síntese
absoluta em que todas as aventuras particulares do espírito encontrariam lugar
e sentido, de acordo com a realização necessária do Absoluto.
Sujeito e objeto, indivíduo e história, arte e religião, sociedade e
Estado, ação e moralidade, tudo poderia ser explicado através de uma visão
retrospectiva de uma filosofia que teria encontrado finalmente o método
adequado para sobrevoar a História e nela observar uma trajetória que se teria
constituído por meio de uma perfeita adequação entre lógica e realidade,
finalmente revelada na mais alta expressão do Espírito, capaz de conciliar em
si todas as contradições do drama humano, verdadeira síntese de finito e
infinito. Tal poder explicativo, em que as singularidades de todos os processos
de vida acabam por se manifestar na universalidade, em que a multiplicidade
complexa se revela unidade absoluta, em que a contingência e a oposição se
transfiguram em necessidade e verdade, impõe-se aos contemporâneos – e mesmo à
posteridade – como a mais perfeita realização da capacidade especulativa do
pensamento: a resposta a todas as perguntas.
E, no entanto, diante dessa impressionante construção intelectual, em
que a própria Razão parece transparecer na sua essência, Kierkegaard diz: não.
E por um motivo muito forte. Nessa representação intelectual da realidade, em
que a articulação dialética se mostra com uma vitalidade a que tudo teria de se
submeter, falta algo de fundamental: a consideração da realidade singular do
indivíduo como dado primário e irredutível. A incorporação do singular no
universal revela uma lógica pautada pela anterioridade do conceito em relação à
experiência vivida. Se o sentido do evento singular só pode aparecer
verdadeiramente à luz de uma universalidade finalmente revelada, é porque todo
singular, na efetuação da sua particularidade, já possuía um sentido vinculado
ao universal em vias de realização. Em outras palavras, a existência singular é
pensada, no sistema hegeliano, sempre em função de uma razão universal à qual
essa existência estaria a priori submetida. Dessa maneira, julga Kierkegaard, a realidade da
existência, que é sempre individual e singular, dissolve-se numa totalidade
universal formalmente concebida. O que Hegel teria ganhado em termos de
ordenação lógica e conceitual, ele teria perdido em termos de realidade
concreta.
Esse prejuízo foi incorporado ao sistema como sendo uma virtude, porque
o pressuposto filosófico de Hegel, que nele figura a ambição que de modo geral
anima todo projeto filosófico, é o de uma explicação racional completa desde os
fundamentos até as últimas conseqüências. Ora, na medida em que o instrumento
da razão é o conceito, a explicação pretendida somente pode ser construída
através de um corpo conceitual dotado de uma lógica capaz de articulá-lo em sua
totalidade, com a mesma evidência presente do começo ao fim. A certeza dos
fundamentos antecipa a verdade da totalidade e a necessidade com que o percurso
se mostra quando visto a partir da totalidade realizada confirma a evidência
dos fundamentos. Essa dupla visão do verdadeiro aparece a Kierkegaard como
característica de um sistema formalmente demonstrado, em que os acidentes do
percurso finalmente se revelam como aparências de uma necessidade implícita
desde o princípio. Assim, o sistema hegeliano se definiria como a subordinação
da realidade ao conceito e se constituiria a partir da hierarquia lógica que
vincula universal e singular.
A pretensão de certeza dos fundamentos indica que a totalidade do
sistema de Hegel é orientada por uma concepção abrangente de Razão: não se
trata apenas de uma racionalidade subjetiva que constituiria a realidade por
representação. Para Hegel, segundo uma fórmula tornada célebre, “tudo que é real
é racional e tudo que é racional é real”: com essa reciprocidade, que
identifica lógica e realidade, Hegel pretende escapar da racionalidade
meramente subjetiva, sem, no entanto, recair num realismo que faria da
subjetividade – ou da razão subjetiva – mero reflexo ou efeito dos objetos, ou
da racionalidade objetiva. A superação dessa dualidade resulta numa relação de
imanência da razão à realidade em todos os seus aspectos. Ora, essa concepção
mais larga da racionalidade implica um maior rigor no tratamento da
generalidade, exatamente porque Hegel deseja escapar de aspectos parciais ou
particulares da Razão. Assim, é por conta da necessidade do percurso em direção
ao universal que é preciso superar a dicotomia sujeito/objeto. Para
Kierkegaard, interessa particularmente uma conseqüência desse percurso
sistemático: a pretensa superação da subjetividade.
Observe-se que, para Hegel, o que está implicado nessa superação é a
necessidade de ultrapassar a evidência subjetiva que, para ele, ainda seria
apenas uma figura da verdade. Ora, para Kierkegaard, é
evidente que, sendo a realidade substancialmente o indivíduo, a verdade é
subjetiva. Mais que isso, “a verdade é a subjetividade” porque unicamente na
subjetividade está o lugar da experiência vivida de modo concreto e singular.
Para avaliar o alcance dessa oposição de Kierkegaard a Hegel, é preciso
compreender o significado de sujeito e de experiência subjetiva para o pensador
dinamarquês.
Assim como Hegel via na universalidade a realização do absoluto,
Kierkegaard vê a subjetividade como absoluta e a experiência subjetiva como
irredutível. Mas esse caráter absoluto da subjetividade não quer dizer que ela
seja algo como uma realização lógica completa. Pelo contrário, a subjetividade
é absoluta porque, para o homem, é absolutamente impossível superar
a sua condição finita: a experiência humana está absolutamente encerrada na
finitude e esta se mostra como a singularidade individual que deve ser vivida
em cada caso. O singular não se relaciona com o universal da mesma maneira como
o particular se relaciona com o geral. A vinculação lógica dos termos nada nos
diz acerca da irredutibilidade da experiência do indivíduo singular, porque
essa experiência possui, fundamentalmente, uma dimensão existencial e religiosa
que escapa à conceituação racional.
A partir dessa concepção radical, Kierkegaard critica de forma
contundente o cristianismo de sua época, institucionalmente adaptado ao mundo
através de toda sorte de concessões e que faz com que os cristãos estejam muito
longe de serem testemunhas da Paixão, como exigiria um cristianismo autêntico.
No limite, o cristão é uma figura inexistente: no máximo, podemos nos esforçar
para nos tornarmos cristãos, e esse seria o primeiro passo
para uma verdadeira reforma do cristianismo. A institucionalização da
comunidade cristã representa uma infidelidade a Cristo: a experiência
religiosa, vivida existencialmente, é solitária e angustiada; a fé não traz certeza
nem tranquilidade; trata-se de uma opção constantemente renovada por tornar-se aquilo
que ainda não se é. Nenhuma igreja pode tornar estável e tranquila uma fé que
deve ser vivida no “temor e tremor”.
Por isso o paradigma do crente é Abraão, figura emblemática no
pensamento de Kierkegaard, por ter colocado a fé acima de todas as certezas
mundanas, mesmo aquelas mais moralmente arraigadas na natureza humana. No
episódio em que Deus pede o sacrifício de Isaac, todos os critérios humanos são
invalidados, todas as leis são anuladas pela força da palavra de Deus, sentida
unicamente pela fé. Essa experiência vivida na solidão, no silêncio, na
incerteza de sua própria origem e justificativa é o ponto mais alto que o
indivíduo pode atingir – e esse ponto coincide com o desamparo, com a angústia
diante do absoluto incompreensível. Nenhuma mediação nos faria superar essa
distância; somente o salto no abismo insondável que nos separa
do infinito pode equivaler à vivência real da fé.
Se essa é a condição humana, se é esse o drama da subjetividade, não há
como pretender atingir qualquer certeza acerca de seus fundamentos. Por isso a realidade da
experiência individual, subjetiva e singular, é vivida na incerteza e a partir
da ausência de fundamentos. Não há como construir um sistema geral em que a
subjetividade seja explicada como um momento a ser absorvido numa
universalidade mais compreensiva, como pretendia Hegel. O instante da
decisão de Abraão não pode ser explicado; não podemos oferecer mediações que o
tornem racional ou susceptível de ser racionalmente incorporado. Ele é único e
irredutível como a subjetividade. Nesse sentido, conceituar a subjetividade é
torná-la abstrata; explicá-la é destruir a sua realidade.
Kierkegaard refere-se a si mesmo como um pensador religioso. Mas a
religião não desempenha nele a função de nos fazer compreender fundamentos da
condição humana a que a filosofia não nos permitiria chegar. A religião não
antecede nem sucede à razão: assim como entre as duas não há medida comum,
também de pouco adiantaria proclamar a incomensurabilidade. Os dogmas do
cristianismo não são verdades superiores à razão; são princípios misteriosos da
singularidade da nossa experiência subjetiva: só podemos explorá-los vivendo-os
de forma encarnada. Aquilo que é vivido subjetivamente é irredutível à razão
analítica não porque seja uma experiência psicológica em si inefável, mas
porque constitui a vivência do paradoxo e do mistério.
Por isso a experiência da condição humana passa pelos três “estádios”
enumerados por Kierkegaard. O primeiro é o estético em
que o indivíduo adota como critério da existência a busca de um prazer
idealizado, que nunca poderá ser realizado no mundo. Na sucessão pela qual
aceita e recusa tudo que lhe é ofertado pelo mundo, o indivíduo vê a realização
do ideal se afastar cada vez mais. Essa negação romântica do mundo significa a
experiência vivida na imediatidade. Segue-se o estádio ético em
que a vivência do imediato é substituída por uma forma de vida que
pretenderia conferir algo de universal à descontinuidade da experiência.
Não mais a indiferença, mas o compromisso, isto é, a escolha de valores que
conferem estabilidade à existência, a opção por algo que seja mais que o
relativo a si mesmo e inclua uma dimensão geral da vida, isto
é, a vida com os outros. Para o homem ético, a realidade vivida é duradoura e
não apenas transitória. Mas essa racionalidade ética se mostra insuficiente,
porque o indivíduo sente que o absoluto escapa às normas da razão e que a
lógica pode manifestar fragilidade. Passa então ao estádio religioso:
a religião (cristã) não se resume a normas que devem ser obedecidas como se
fossem regras. O estádio religioso se
aproxima da experiência da interioridade.
E é pela interioridade que o indivíduo se faz; nela está a sua
singularidade, o seu segredo, a sua absoluta subjetividade – e também a sua
dignidade, porventura encontrada no fundo da miséria. Não há mediação exterior
pela qual se possa atingir essa dimensão, nem normas pelas quais se possam
solucionar os conflitos que aí são vividos. A subjetividade não é uma coisa nem
uma forma: é quase um impasse. Talvez se possa dizer que ela é um pathos.
O que teria Kierkegaard a dizer para nós, que vivemos num mundo ao mesmo
tempo tão povoado de egos e tão vazio de indivíduos singulares, um mundo
habitado por tantos desejos e tão abandonado pela subjetividade – um mundo em
que vigora a obsessão da exterioridade e a opressão da interioridade? Talvez a
dramática atualidade daquele que viveu e morreu em defesa das prerrogativas do
sujeito consista apenas em nos levar a pensar o quanto tem sido negativa
a nossa experiência da subjetividade, que temos feito sob as diversas ditaduras
da exterioridade e as mais variadas formas de alienação. Kierkegaard se
esforçou por dizer aos seus contemporâneos que eles estavam vivendo a perda de
si mesmos. Essa mensagem é ainda mais válida para nós.
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/. Título original: 'Kierkegaard: o indivíduo diante do absoluto'