Por Leont Etiel
De nome,
chamava-se José. Nunca terá tomado conhecimento das máximas cioranianas a respeito
da vida e da morte, e todavia, de quando em quando, dizia as suas que mais
pareciam genéricas das proferidas pelo exilado parisiense. Por este, sabemos que as camadas
da existência carecem de espessura. Logo, quem a existência escava, o
arqueólogo do ser, encontra, ao fim do seu labor, um profundo deserto
enigmático.
Não
é de se negar, seguindo o mesmo passo romeno, que esse encadeamento leva ao
horizonte segundo o qual, de tanto monopolizar o sem sentido, a vida poderá inspirar mais
pavor do que a morte.
José
era dado a essas deambulações mentais, ao mesmo tempo em que o gosto pela terra fê-lo,
desde sempre, levantar-se do chão e deixar-se dissolver pelos ares da natureza.
Homem, por vezes, de poucas palavras, não perdia uma só oportunidade para fazer
agrados aos entes do mato. Do que plantava, quando colhia, colhia a sua parte e
sempre deixava outra para os pássaros e os demais habitantes do misterioso
mundo natural. Para ele, tratava-se de
um justo pacto de convivência. Como os pássaros, com o seu canto, poderiam
alegrar as matas e os terreiros, trazendo música aos seus ouvidos, se eles não fossem alimentados? Não funcionaria, conforme a lógica probabilística de José. De
igual modo, se ele não cuidasse do seu burro, dando-lhe, além de alimento,
banho, penteando-lhe e perfumando-lhe, como poderia o animal se dispor de bom
grado a ser seu meio de transporte e de condução de mercadorias entre Cruz da
Serra e Osomim? Coisas dos cálculos das tabelas veritativas de José. O certo é
que o grau de lealdade do burro a José estaria talvez, especula-se, acima do
grau manifestado por determinados humanos. Conta-se que, mais de uma vez, tendo
sido ele obrigado a fazer paragem forçada em decorrência da ingestão de
determinados líquidos, o animal a seu lado permanecia até que as condições de
seguir viagem fossem restabelecidas.
Homem
rural à antiga, daqueles que a palavra falada vale mais do que o papel escrito,
José tinha as suas contas sob controle total. Criado num pedaço de terra em que
era seu prazer agradar a quem lhe deu acolhida e morada, José tratava os filhos
dos seus acolhedores com uma atenção poucas vezes vista. Dizia não querer muitas
coisas, e que apenas o pequeno mundo que carregava em sua cabeça bastava para
tocar os dias.
Esse
seu pequeno mundo não resistiu à urbanização do rural e ao estabelecimento de
lógicas monetárias no que é próprio da livre sociabilidade. Foi um contrato feito, no que ele viu como sendo uma alta dívida impagável, que o levou a ficar pensativo
e cabisbaixo, a ponto de até descuidar do banho no burro. Dizem que, para
grandes tragédias, coisas pequenas bastam. Assim sucedeu com José, numa noite de primavera. De posse das
cordas com as quais amarrava o seu estimado animal, num pé de jasmim subiu, fez o laço, apertou-o no pescoço e de lá não mais desceu por ele mesmo. Nesses momentos finais, teve como companhia o seu inseparável burro, que, a tudo testemunhando, caiu em tormento disparando estrada acima e estrada abaixo, acordando vizinhos para o trágico acontecimento. Desapareceu José na natureza.
Muito do que respira ou insiste em respirar só assume essa condição porque se alimenta do inverificável.
Muito do que respira ou insiste em respirar só assume essa condição porque se alimenta do inverificável.