sábado, 8 de outubro de 2016

Do alto ao desconhecido do nada


Por Leont Etiel

De nome, chamava-se José. Nunca terá tomado conhecimento das máximas cioranianas a respeito da vida e da morte, e todavia, de quando em quando, dizia as suas que mais pareciam genéricas das proferidas pelo exilado parisiense. Por este, sabemos que as camadas da existência carecem de espessura. Logo, quem a existência escava, o arqueólogo do ser, encontra, ao fim do seu labor, um profundo deserto enigmático.
Não é de se negar, seguindo o mesmo passo romeno, que esse encadeamento leva ao horizonte segundo o qual, de tanto monopolizar  o sem sentido, a vida poderá inspirar mais pavor do que a morte. 
José era dado a essas deambulações mentais, ao mesmo tempo em que o gosto pela terra fê-lo, desde sempre, levantar-se do chão e deixar-se dissolver pelos ares da natureza. Homem, por vezes, de poucas palavras, não perdia uma só oportunidade para fazer agrados aos entes do mato. Do que plantava, quando colhia, colhia a sua parte e sempre deixava outra para os pássaros e os demais habitantes do misterioso mundo natural.  Para ele, tratava-se de um justo pacto de convivência. Como os pássaros, com o seu canto, poderiam alegrar as matas e os terreiros, trazendo música aos seus ouvidos, se eles não fossem alimentados? Não funcionaria, conforme a lógica probabilística de José. De igual modo, se ele não cuidasse do seu burro, dando-lhe, além de alimento, banho, penteando-lhe e perfumando-lhe, como poderia o animal se dispor de bom grado a ser seu meio de transporte e de condução de mercadorias entre Cruz da Serra e Osomim? Coisas dos cálculos das tabelas veritativas de José. O certo é que o grau de lealdade do burro a José estaria talvez, especula-se, acima do grau manifestado por determinados humanos. Conta-se que, mais de uma vez, tendo sido ele obrigado a fazer paragem forçada em decorrência da ingestão de determinados líquidos, o animal a seu lado permanecia até que as condições de seguir viagem fossem restabelecidas.
Homem rural à antiga, daqueles que a palavra falada vale mais do que o papel escrito, José tinha as suas contas sob controle total. Criado num pedaço de terra em que era seu prazer agradar a quem lhe deu acolhida e morada, José tratava os filhos dos seus acolhedores com uma atenção poucas vezes vista. Dizia não querer muitas coisas, e que apenas o pequeno mundo que carregava em sua cabeça bastava para tocar os dias.
Esse seu pequeno mundo não resistiu à urbanização do rural e ao estabelecimento de lógicas monetárias no que é próprio da livre sociabilidade. Foi um contrato feito, no que ele viu como sendo uma alta dívida impagável, que o levou a ficar pensativo e cabisbaixo, a ponto de até descuidar do banho no burro. Dizem que, para grandes tragédias, coisas pequenas bastam. Assim sucedeu com José, numa noite de primavera. De posse das cordas com as quais amarrava o seu estimado animal, num pé de jasmim subiu, fez o laço, apertou-o no pescoço e de lá não mais desceu por ele mesmo. Nesses momentos finais, teve como companhia o seu inseparável burro, que, a tudo testemunhando, caiu em tormento disparando estrada acima e estrada abaixo, acordando vizinhos para o trágico acontecimento. Desapareceu José na natureza.
Muito do que respira ou insiste em respirar só assume essa condição porque se alimenta do inverificável.