Diz a sabedoria hindu que 'engano pior não há do que o autoengano' e que 'a pressa na formação de ideias e tomada de decisão pavimenta meio caminho para o erro e para a injustiça'. No mundo ocidental, sobretudo atualmente, onde pessoas são desconsideradas e descartadas ao ritmo dos cliques de redes sociais, é bem provável que, para alguns, essas expressões hindus soem sem relevância. O que é que se há de fazer? Sinais dos tempos, opções individuais. Seja como for, elas (as expressões hindus) têm significado valorativo que vai além da esfera da 'sociabilidade privada', e podem se constituir também em parâmetro para apreciação da ação na 'esfera pública'. Dito isto, neste momento pós-eleitoral, logo é de se lembrar de algumas avaliações que estão a circular a respeito dos resultados do pleito. Exercitam o autoengano e induzem a erros de análise, tendo em vista cenários futuros. Reproduzo aí abaixo a avaliação do Carlos Melo, em relação à qual tenho alguns reparos, mas que, de modo geral, não se nivela às perspectivas que se perdem no erro do autoengano.
Por Carlos Melo
(Cientista político e professor do Insper)
O resultado
das eleições municipais encerra um ciclo da política nacional em que o PT foi
protagonista. Na capital paulista, este ciclo se iniciou em 1988, com Luiza
Erundina; no Brasil, em 1989, com a disputa entre Collor e Lula. De lá até este
início de outubro — para o bem e para o mal, despertando paixões a favor e
contra — o PT se manteve no centro da cena política. Esse protagonismo acabou.
Responsabilizado
– e responsável — pela brutal crise econômica dos últimos anos, autor de
inúmeros erros na condução administrativa e implicado até a medula com a
Operação Lava Jato – embora não seja o único –, o PT se dilacera vendo o patrimônio
político descer acelerado a ladeira da desgraça. Agrava o quadro o fato de não
ter construído liderança alternativa a Lula — à exceção poderia ser Fernando
Haddad, chegasse ele ao menos ao segundo turno da eleição paulistana.
Ninguém saberá
dizer qual será seu futuro — nem mesmo os petistas, atordoados e destituídos de
largos espaços institucionais; a máquina e até mesmo as bases diminuíram
drasticamente. Uma volta às origens é improvável – o discurso moral já não lhe
é permitido; além disso, o país mudou e os movimentos sociais não são os
mesmos. Pela esquerda, a ameaça é o PSOL; ao centro, não há alternativa. A vida
será dura e a porta dos fundos será a saída mais rápida para muitos quadros.
Restará torcer pelo caos econômico e a inviabilidade do governo Temer? O
partido se esfarelou.
Já no PMDB, os
números são vigorosos. A legenda tornou a conquistar uma quantidade de
prefeituras superior ao milhar — de cidades minúsculas às grandes, mas nada
excepcional como Rio de Janeiro ou São Paulo. Como máquina eleitoral — para
eleger deputados e senadores – continua exuberante; como alternativa de poder
permanece sem nome capaz capitalizar o patrimônio. Michel Temer é uma incógnita
e Eduardo Paes – uma de suas apostas – está entre os grandes derrotados. Novidades,
como Paulo Hartung (ES), ainda são pouco conhecidas.
PMDB, PSD e
PSDB somados numa coligação imaginariamente possível ultrapassam os 2.000
municípios. Mais uma vez: como máquina, são magníficos os números, mas falta
nome que aglutine. No curto prazo, o PMDB continua um conjunto contraditório:
uma federação de interesses regionais dispersos e difusos, sem unidade. Os
demais aliados não se diferem muito. Com a derrocada do PT, a base governista
saiu vitoriosa, mas não necessariamente o governo; as partes não formam um
todo: contradições e disputas internas dificultam a conciliação de interesses.
Também as
expectativas geradas pela eleição municipal foram às alturas, como a
expectativa do próprio governo Temer aprovar medidas estruturais e retomar o
desenvolvimento econômico. Mas, a partir de janeiro de 2017, os novos prefeitos
– aliados, inclusive – baterão às portas do Planalto atrás de recursos que não
existem. Será difícil cumprir as promessas de 2016. A reversão desse tipo de
expectativa é pior do que começar de baixo, esperando pouco. Como sparing, o PT fará falta.
Durante a
campanha, não houve atenção e cuidados para a complicada situação fiscal.
Naturalmente, se já no curto prazo as novas vitrines dos aliados nada ou pouco
realizarem haverá desgaste para 2018. Sabendo disto, no final de semana da
eleição, Lula já começava a reclamar do desemprego, cobrando Temer. Política é
assim: volátil, irônica, oportunista. Com os futuros prefeitos não será
diferente. Pressionados, eles passarão a bola dos conflitos ao governo federal.
A fragmentação
é evidente, das urnas não saiu força hegemônica — há grande dispersão. Para o
governo federal, os custos de negociação aumentarão: mais atores, mais
demandas, mais conflitos. O país vai à busca de um novo protagonista, um
aglutinador. Onde será que ele se esconde?
***
Já o PSDB
merece um tópico à parte em torno dos números e dos desafios de Geraldo
Alckmin. Naturalmente, eleitores de João Dória estão eufóricos: o feito da
dupla Alckmin-Dória é inegável. A vitória interna do governador também: em São
Paulo, ele realmente atropelou os adversários e consolidou seu poder. Mas, à
parte da euforia, o sucesso eleitoral precisa ser compreendido sem negligenciar
problemas e a magnitude dos desafios.
João Dória
obteve 53,29% dos votos válidos. Como quase em todo país, os números de
abstenção, brancos e nulos chamam à reflexão: 21,84% dos eleitores de SP, por
exemplo, não foram votar. Ok, tem sido assim. Mas, somados a brancos e nulos —
mais 13% do total — constata-se que 34,84% do eleitorado votou em “ninguém”. Se
apenas 65,16% dos eleitores votaram em “alguém”, os 53,29% de Dória perfazem,
de fato, 34,72% do eleitorado, pouco mais que 1/3.
As
vitórias são, evidentemente, legítimas, mas a representação de Dória e dos
futuros prefeitos é limitada. Trata-se de fenômeno estrutural: crise de
representatividade. Os que não votam e os que votam contra não se sentem
representados e, assim, não estabelecem compromissos e apoio com os vencedores.
Diante da primeira e inevitável medida impopular, despenca o apoio da opinião
pública. A oposição e as raposas da situação percebem a impopularidade; dá-se o
leilão ou o início ingovernabilidade. No embevecimento de derrotar o PT, os
animados eleitores de Dória não compreendem o busílis.
Num ambiente
de exiguidade de recursos, crise fiscal, necessidade de ajustes e
enfrentamentos com corporações e grupos de interesse, a popularidade se
liquefaz em poucos meses. Claro que as consequências não são mecânicas, o
conjunto da obra conta, mas isto se deu também com Haddad e com Dilma. É
estrutural: a vitória é rapidamente colocada à prova. Pleno de legitimidade,
mas com déficit de representação, o “gestor” poderá recorrer à considerações e
desculpas políticas? Dória e Alckmin serão uma coisa só.
Mas, o maior
desafio do governador está no PSDB. Imperador em sua terra, Geraldo será
provocado a superar a província, colocar-se no cenário nacional; impor-se aos
inimigos íntimos. Disposto a decolar, já prepara o plano de voo. Mas, na torre
de comando nacional, Aécio Neves pretende alçar voo ao mesmo tempo, com o mesmo
destino. E José Serra… Bem, independente da companhia aérea, Serra já está na
cabeceira da pista. Visto com olhos de hoje, parece pouco provável que qualquer
dos três abra mão de suas pretensões.
Mas, a
política é dinâmica e no Brasil, dizia Pedro Malan, “até o passado é
imprevisível”; há descargas elétricas às mancheias, a força supersônica da Lava
Jato e a questionável qualidade das tripulações. Em virtude disto, nada pode
ser descartado. O dado concreto, porém, é que espaço aéreo dos tucanos está congestionado
e é pouco provável que não haja algum tipo de colisão no horizonte de céu
turbulento.
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Fonte: http://jota.uol.com.br/sobre-principes-e-leviatas-resultados-e-implicacoes-das-urnas-de-2016. Título original: 'Resultados e implicações das urnas de 2016'.