Os antigos costumavam dizer que, para "as mentes versadas nos jogos do espírito", exceder-se em explicações fazia com que as teses apresentadas parecessem ser propostas cum grano salis. Daí se entender que a síntese da ironia, entrecortada de erudição, diz bastante, e muitas vezes basta. Mas não se confunda ironia com deboche. Se ela (a ironia) é devidamente entendida ou não, que se fale com "as mentes versadas nos jogos do espírito", sobretudo num momento em que, no Brasil, a manipulação campeia e cabeças são entorpecidas. Em tempos assim, tem-se boa licença para a "escrita simulada", navegando em ondas literárias e da ficção, para revelar duas características aniquiladoras da manipulação ideológica: a ideia de perpetuidade do presente, de que não há saída além do que a construção discursiva dominante descreve, e a apresentação de forma inversa, e muitas vezes perveras, de partes constituintes da realidade. O episódio da censura aos pesquisadores do IPEA fornece muito subsídio para esse debate. Por sua parte, o jornalista Elio Gaspari produziu um breve artigo com o referido sentido de escrita simulada, como carta do economista Paul Samuelson, Prêmio Nobel de Economia, dirigida ao Presidente do IPEA. Aí abaixo, vale conferir. Em poucas palavras, o essencial do que está em causa.
Paul Samuelson: 'quando todo o mundo está louco, é uma loucura estar de acordo' |
Elio Gaspari
Prezado
professor Ernesto Lozardo, ilustre presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada),
O senhor me conhece, estudou no meu clássico Introdução à
Análise Econômica e viu quando ganhei o prêmio Nobel. Escrevo-lhe para
compartilhar um episódio de 1973 que invadiu minha memória quando li a censura
pública que o senhor impôs a dois pesquisadores do Ipea que criticaram os
efeitos de uma medida proposta pelo governo que o nomeou.
À época, não dei maior importância ao que me aconteceu.
Hoje, vejo o papelão em que me meteram. No segundo semestre de 1973 a editora
Agir, que publicava meus livros no Brasil, estava traduzindo a 9ª edição do
"Economics". A certa altura, discutindo o fascismo, mencionei o
regime militar brasileiro e seu crescimento de 10% ao ano. Lembrei que todos os
regimes semelhantes tinham ido à breca.
O diretor da editora escreveu-me dizendo que não
publicaria aquilo. Dias depois, outra carta, desta vez do economista Eugenio
Gudin, o grande liberal brasileiro. Passaram algumas semanas e veio a terceira,
do economista Roberto Campos. Todos reclamavam do meu texto, da comparação e do
tom.
Pareceu-me uma tempestade em copo dágua, pois a minha
política era de permitir que os editores expurgassem trechos que pudessem criar
problemas com as traduções, sobretudo nos países comunistas. Resultado: quem
leu a edição americana aprendeu que o Brasil ia quebrar. Quem leu a tradução da
Agir comprou Samuelson e levou Gudin-Campos.
Eu achava que as duas cartas poderiam ser reflexões de
intelectuais, dirigidas a um professor. Coisa nenhuma, o que eles queriam era
alavancar suas posições junto ao governo do general Ernesto Geisel, que tomaria
posse meses depois. Queriam me operar, e operaram.
Digo isso porque toda a correspondência enviada a mim,
bem como as minhas respostas a Gudin e Campos, foram parar nas mãos do general
Golbery do Couto e Silva, conselheiro de Geisel. A minha decisão foi comemorada
pelo dono da editora, o banqueiro Candido Guinle de Paula Machado. Num cartão
que enviou a Golbery ele sugeriu: "Se puder, dê um telefonema ao Dr.
Gudin, pois ele ficaria satisfeito."
Encontrei o general Geisel num jantar na casa do
compositor Richard Wagner (ele estava com o professor Mario Henrique Simonsen)
e perguntei-lhe o que aconteceu. Geisel contou-me que Golbery aceitou a
sugestão de Guinle e almoçou a sós com Gudin. Impressionou-me a malquerença do presidente
com o patriarca do liberalismo econômico brasileiro. O melhor adjetivo que lhe
dá é o de "patife".
Os autores da nota técnica excomungada têm a minha
solidariedade e saiba que não a li. Era desnecessário dizer que o texto não
refletia a opinião do Ipea. Essa informação sempre está no cabeçalho desse tipo
de trabalho. O senhor disse que "a posição institucional do Ipea é
favorável à PEC 241". A "posição institucional" de Gudin, Campos
e Paula Machado era favorável ao regime. Direito deles, mas o que a trinca
queria era outra coisa. Fiz-me entender?
Converse com o Pedro Malan. Ele foi um servidor do Ipea
respeitado pela ditadura e ministro da Fazenda na democracia. É um homem
correto e muito bem educado. Pode ajudá-lo.
Cordialmente,
Paul Samuelson
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do 19/10/2016. Título original: 'Desnecessário dizer que o texto não refletia o IPEA, diria Samuelson'.