Por Guilherme Diniz
O objetivo desse trabalho é
analisar o ensaio de Michel de Montaigne “Do útil e do honesto”. Buscarei
salientar as ideias principais e a tese do filósofo. Debruçar-me-ei sobre um
dado problema que na época do filósofo esteve com forte vigor: a conduta útil e
a honesta. Limitar-me-ei a analisar somente este ensaio especial – obra de sua
maturidade. Escapam da proposta desse trabalho abordagens mais amplas que
remontam a estudos derivados. Em outras palavras, não buscarei situar o
filósofo na história da filosofia, mas elucidar as proposições e argumentos
encontrados no interior do seu ensaio filosófico.
Dividi o trabalho em três
partes: a primeira apresenta os conceitos iniciais, assim como fez o ensaísta
francês; a segunda desenvolve o conceito de útil de forma rápida e coesa; por
fim, a terceira apresenta a tese do autor tendo como fundamento os raciocínios
anteriores. Buscarei com isso demonstrar o que o filósofo disse e como disse.
1 – Apresentação inicial dos
conceitos.
O ensaio Montaigne
convida-nos a pensar um problema de natureza moral - qual a melhor conduta: a útil ou a honesta? A
questão abordada faz referência à dicotomia entre bem moral – ou justiça quando
envolve outros e dignidade pessoal quando se refere à si próprio – e o mau
moral – ou o útil que ignora a dignidade e a justiça visando apenas um fim
desejado (Lalande, Vocabulário). A desonestidade ou o útil pertence aos atos
humanos, mas são inferiores à honestidade ou ao bom senso. Ambas as condutas são encontradas nos diversos
setores de atuação da nossa sociedade. O útil nem sempre corresponde ao
honesto, mas qual é o melhor dos dois atos?
Para ilustrar melhor a
questão, Montaigne descreve brevemente um caso histórico onde um governante
romano (Tibério), em meio a uma guerra, recebe uma proposta pouco honrosa para
desempatar a situação bélica em que se encontrava. Porém, em vez de aceitá-la,
decide-se por rechaçar a proposta a fim de justificar seus princípios, isto é,
optou pela guerra “limpa”, sem artimanhas de qualquer espécie. Preferiu manter-se
em paz consigo ao invés de degredar-se e desonrar-se com uma atitude
proveitosa. Esse é a noção que remete ao termo honesto. Torna-se mais claro
isso quando o autor confessa que seus atos pertencem aos atos honestos. Ao
apresentar-se assim, como quem escolhe o motivo mais correto a fim de melhor
conduzir-se moralmente, revela inicialmente uma “tendência” ao comportamento
honesto. Sem deixar, entretanto, de observar a importância do não-honesto ou
fim utilíssimo que não se atenta a valores morais, como a honra quando a ação desmedida e sem
princípios impera nos motivos.
2 – A natureza do útil
Ocorre agora uma inversão do
termo inquirido de honesto para útil. O útil foge do comportamento honesto
porque possui um valor prático, ele é “o bom para” alguma coisa que se quer
(Lanlande, Vocabulário). Como percebemos no ensaio, utilidade e satisfação dos
desejos identificam-se na função eficaz que empregam quando se tem um objetivo
final desvinculado do bem moral. Outra noção bem elucidada no texto: “Nada
existe que não tenha sua aplicação” (Montaigne, Ensaios, pp. III-365). É assim
que toda falta de honestidade também é funcional, pois propicia algum fim que
pressupomos haver contido também algum bem. É aplicável porque promove
resultados – se são bons ou maus é um julgamento humano. Poderemos entender
certas engrenagens da sociedade, no tocante ao comportamento dos cidadãos com
isso. A dissimulação, a malandragem, o cinismo vulgar, assim como várias outras
condutas pertencentes a esse gênero, possuem suas aplicações e suas utilidades,
sejam no meio político estatal com os governantes e os partidos políticos ou na
extensão da política: a sociedade, as instituições sociais, a vida dos homens
comuns, etc. Tiramos daí uma compreensão do útil, a saber: uma atitude natural,
estritamente ligada à essência da vida e com uma função social clara: a de
soldagem.
Evidentemente, Montaigne não
deixa de comprazer-se em seguir o partido da honestidade, porém também não
deixa ofuscada a dimensão da não-honestidade como mola dos relacionamentos
humanos e conseqüentemente da sociedade. O termo “natural” tem no ensaio um
sentido especial. Nele entendemos ser o gênero de dois caminhos distintos
pertencentes ao problema colocado, isto é, de um lado o honesto que tangencia a
dignidade pessoal (tal postura acontece comumente com o hábito do autor
independentemente das circunstâncias encontradas por ele); já do outro lado,
acarreta parte do útil e desonesto e necessário que é uma espécie de transbordo
da prática justa. É sempre invocado quando não pode mais sustentar-se a
moderação e a honestidade. Mas, a noção de natural não pode ser logicamente e
absolutamente uma coisa e outra contrária. Podemos entender, portanto, que
parte do natural são atos honestos e que são esperados alguns atos úteis e
desonestos; por fim, parte do natural é útil assim como honesto – sendo o útil
e o honesto espécies do gênero natural.
Embora sendo contraditório,
o desonesto é explicado como natural e próprio do modo de vida dos homens, mas,
ainda assim, condenável. No que se refere à profissão exercida pelo filósofo,
obtemos a revelação de que, apesar de muitos dos companheiros de seu ofício
terem tomado o caminho do proveitoso - valendo-se de fingimentos e falsa
concordância com as ideias de outros -, Montaigne, em contrapartida, não
esconde sua opinião ou suas ideias nem as desarticula diante de um ou de outro,
mantendo transparente as suas intenções com fé na coerência de sua conduta
honesta. Assim, escapa das desconfianças dos colegas, coisa que em tal meio não
é comum. Poderiam alguns, mais desconfiados, dizer que essa postura não passa
da mais astuciosa dissimulação e que, sob o véu dessa representação honesta, se
esconde um sujeito malévolo que
secretamente arquiteta diversos planos e calcula sua autopromoção desonesta.
Para responder a essas
objeções feitas contra sua sinceridade, Montaigne afirma não possuir tais
malícias para se aproveitar de momentos oportunos. É graça, antes, à confiança
adquirida de imediato quando se mostra límpido de artimanhas que lhe permite
manter-se “salvo” e com “boa sorte” nos negócios de sua profissão, e não
condescendendo com o desonesto. Graça à felicidade do acaso e da franqueza de
suas palavras e gestos do que à astúcia e às tramas que poderia ele pretender.
O pensador encontra-se isento de desconfianças porque não esconde a
não-pretensão em beneficiar-se de empreendimentos malévolos. Demonstra que lhe
é natural ser assim, simples, honestos… respondendo, desse modo, àqueles que
pensam que suas ações não passam, no fundo, de astúcia.
3 – A ideia de moderação
Se a ideia de honestidade
for um princípio de uma ascese, entenderemos, por consequência, que o resultado
obtido pela sua prática é a moderação. Em outras palavras, a moderação é fruto
verdadeiro do comportamento correto. É comum ao honesto ser moderado em seus
atos. Se pensarmos dessa forma, podemos dizer, de modo complementar, que o mais
viável para melhor entendermo-nos é, sem dúvida, mais aceitável. Sendo assim,
mais aceitável a todos a honestidade do que o contrário dela. Ora, se a
honestidade, como dissemos, conduz à moderação no agir quando esta é
esclarecida pelo bom senso, convém indagar o que aconteceria se recusássemos a
agir quando a causa não é justa ou, ainda, se evitássemos o entusiasmo
demasiado. Devemos dizer que estamos usufruindo-nos, certamente, de autonomia
diante das circunstâncias expostas. Pois, quando agimos dessa forma, não
obedecemos ao comando das causas exteriores ou a imperativos que não se
identificam com a justa conduta de nossa moderação. Sendo assim, é senhor de si
aquele que age moderadamente segundo sua honestidade com outros.
O autor, abstendo-se de
paixões, busca o ato racional, identificando-o com o honesto e este, por sua
vez, com o moderado, levando tudo ao cabo da independência. Mas não estaria
completa essa análise se não nos atentássemos a ressalva feita pelo escritor
correspondente a esse tópico especial. Em dado instante ele faz a importante
citação: “Não se salvou Ático, que se ligara ao partido da justiça, e fora
derrotado, graças à sua moderação” (Montaigne, Ensaios, pp. III-366). Se por um
lado a moderação é boa, pois melhora as relações e leva à autonomia, por outro
lado, ela não é útil quando em certas ocasiões nos é exigido deixá-la de lado
para empreender uma ação firme. Pode-se afirmar que a moderação não é útil em
todos os casos e que sua aplicação possui limites claros, apesar dos benefícios
que remete. Pensar de forma antagônica a essa observação é não ter em
consideração o que foi entendido até aqui.
Não é correto oscilar entre
dois partidos quando uma guerra divide um país, pois, assim, é mais desonesto
quem se aproveita do término do combate para, só então, optar por um lado.
Sabemos que o útil se faz necessário e que para executá-lo são necessários
homens que se arrisquem em benefício desse fim que buscam alcançar. Mas,
sabemos, por outro lado, que o honesto igualmente se faz presente, uma vez que
não seria possível manter qualquer relacionamento coletivo sem essa
“propriedade” humana. Todavia, não é menos abusivo e malévolo deixar de tomar
partido do que abraçar o fim almejado desesperadamente, relutando qualquer ato
de honestidade que, por obséquio ao inimigo, deixaria de alcançar mais proveito
pessoal da situação encontrada. Em outras palavras, é mais repulsivo quando se
acentua demasiadamente o fim útil com interesses pessoais acima de todas as
coisas e acima do honesto. É assim que Montaigne diz: “Nada impede que inimigos
leais se conduzam de maneira sensata. Tratemos todos com igual moderação, senão
com idêntica afeição” (Montaigne, Ensaios, pp. III-367).
Cabe ainda salientar outro
raciocínio: a moderação, tendo entendido o que dissemos, é, além disso, um
trunfo contra um rei perverso com interesses puramente particulares, pois
repele as desconfianças e cristaliza a transparência, útero da confiança entre
as pessoas. A moderação e a sensatez estão acima de todas as coisas. É necessário
manter-se honesto mesmo diante de outros que não comungam da mesma conduta. Ser
honesto é uma máxima, pois permite o entendimento entre uns e outros. No
enunciado: “o caminho da verdade é um só, e simples; o que nosso interesse
pessoal e os negócios alheios nos obrigam a seguir é tortuoso, desigual,
acidentado” (Montaigne, Ensaios, pp. III-368 ). Percebemos que nessa bifurcação
de caminhos a conduta honesta é mais justa, transcende a especificidade desta
outra, menos justa e errônea. Com efeito, podemos ver que o bem moral, em seu
estado natural, é universal e distancia-se do especial. E através do outro
caminho, no que concerne à noção de mal moral ou utilidade desmedida e
particularista, ele observa, com franqueza, sua função no mundo: “Mas seria desconhecer
a realidade não dar à malandragem o mérito que lhe cabe; sei que não raro
presta serviços e é necessária em mais de uma ocasião” (Montaigne, Ensaios, pp.
III-368).
Os exemplos dados pelo
filósofo, demonstram como o útil, por viés prático, se torna um meio de ação
benevolente para os governantes. Por exemplo, quando as leis cessam de cumprir
sua função punitiva, se há infração dela, é sobre armadilhas e traições que se
pune o infrator – um veneno que mantém a saúde do corpo. Vemos que há outros
meios de se manter a lei. Meios que são de enorme necessidade e escapam da
pureza da dignidade para cumprir, com certa contradição, um exercício justo.
São sobretudo meios e nada mais. Pois se conserva à honestidade o papel
legítimo de regularizar a ordem e sustentar o bem moral. Convém ficar com um
mal menor do que com um mal maior. O útil é, também, a flexibilidade do poder e
do cumprimento da lei – isso é outro argumento da moderação.
Uma demonstração
esclarecedora da moderação no ensaio foi o domínio que a razão exerce sobre as
paixões a fim de manter a coerência e a dignidade da pessoa que age. Isso
aparece num exemplo situado próximo do término do ensaio, onde o filósofo expõe
um problema de coerência e honestidade. Devemos ser honestos com um mal feitor,
um ladrão que nos submete ao temor e com isso nos obriga a pagar-lhe uma
importância. Quando Montaigne diz: “O que o temor me fez aceitar, devo
continuar a aceitá-lo quando nada mais tiver a temer” (Montaigne, Ensaios, pp.
III-370).
Evidencia outra função da
honestidade, em um primeiro momento, a de sobrepujar as paixões, e, num segundo
momento, de ser o bom-senso. No sentido latino da palavra: bona mens que quer dizer: “sabedoria prática”. Está claro, se
devemos nos empenhar em cumprir a palavra dita num momento de temor e de
fraqueza da razão (pois não medimos bem o que dizemos numa situação assim) com
a intenção de governar-nos de maneira mais justa e mais digna. Ora, se for
assim, nossos atos serão racionais (mesmo os atos realizados sobre o temor,
porque serão justificados posteriormente) e serão sábios, pois eles possuem uma
qualidade superior, uma justiça mais elevada. Resumindo, a honestidade é,
também, senhora dominadora das paixões e uma sabedoria prática, pois opera
através da justiça, seu principal pilar, e do ato racional mesmo quando
submetida às paixões.
Espaminondas, o homem que
melhor traduz o que Montaigne julga ser a boa conduta. No momento em que o
filósofo enuncia que “pelo rigor de seus princípios” pôde Espaminondas
“introduzir em ações (…) uma imagem de justiça” (Montaigne, Ensaios, pp.
III-370), ele faz clara alusão ao argumento que acabamos de expor (a respeito
da razão posicionar-se sobre as paixões), pois Espaminondas, como o filósofo o
descreve, era um homem bom que não se deixava conduzir por impulsos ou pelo
frenesi da guerra. Mantinha-se centrado em sua razão e firme moralmente para
não se corromper. Podemos imprimir com clareza que o dever e o bem moral estão
além da especificidade das leis governamentais. Cabe ainda pensarmos o papel de
Espaminondas no contexto. Quem é Espaminondas nesse ensaio, um homem perfeito?
É claro que não. Pois já vimos como o útil faz parte da vida de todos os
homens. Podemos dizer que ele é um “mestre” que através de seus gestos
demonstrou a ideia de bem moral. “Aprendamos, pois, com tão nobre modelo”
(Montaigne, Ensaios, pp. III- 371). Convém, ainda, entendermos uma última
característica da justiça. Se Espaminondas era um homem justo, racional,
moderado, bondoso. E não cumpria uma exigência política que lhe obrigasse a
desviar seu curso moral. O que seria o seu contrário, o “Não-Espaminondas”?
Seria um sujeito impulsivo, cruel, raivoso, impiedoso, desregrado e imprudente.
Mas ainda que soe de forma contraditória, dizemos que o “Não-Espaminondas” é
também um homem justo, mas que sua justiça não está endereçada aos homens,
antes ao cumprimento cego da lei especial e ao cumprimento de um dever pouco humano
e até desumano e ao cumprimento dos desejos individuais. Temos, portanto, que
diferenciar a justiça humana, mais elevada, da justiça não tão elevada, e, com
isso, moderar-nos no nosso agir. “É um erro julgar a beleza e a grandeza de uma
ação pela sua utilidade e imaginar que devemos fazer e considerar honesto tudo
o que é útil” (Montaigne, Ensaios, pp. III-371).
Referências
MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução: Sérgio Millet. São Paulo: Abril S. A. Cultural, 1972 (Os Pensadores XI).
LALANDE, André. Vocabulário
Técnico e Crítico da Filosofia. Tradução: Fátima Sá Correia, Maria Emília V.
Aguiar, José Eduardo Torres, Maria Gorete de Souza. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993 (3ª ed., 1999).
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Fonte: https://espacocult.wordpress.com/page/28/