domingo, 9 de outubro de 2016

Última curva do horizonte na paleta de outubro: Paisagem de Outono


"– Vem de uma vez...! – gritou finalmente para um céu que achou lânguido e plácido, ainda pintado com aquela paleta azul enganosa do mês de outubro: gritou com os braços em cruz, o peito nu, expulsando seu clamor desesperado com toda a força dos pulmões, para que sua voz viajasse e também para comprovar que sua voz existia, depois de três dias sem pronunciar uma única palavra.
Sua garganta, lacerada pelo fumo e pelo álcool em quantidades desmedidas, sentiu no fim o alívio do parto, e seu espírito desfrutou daquele mínimo ato libertário, capaz de provocar nele uma efervescência interior que o pôs à beira de um segundo grito.
Do alto de sua laje, Mario Conde tinha espreitado o firmamento limpo de brisas e nuvens, como o vigia da nave perdida, com a esperança malsã de, postado em seu cume, conseguir enxergar, afinal, na última curva do horizonte, aquelas duas espirais agressivas que durante vários dias acompanhara em seu trânsito pelos mapas meteorológicos, enquanto se aproximavam cada vez mais de seu destino prescrito: a cidade, o bairro e aquela mesma laje de onde ele as convocava.
No princípio tinha sido uma manchinha remota, ainda sem nome, em sua escala inicial de depressão tropical, afastando-se das costas africanas e atraindo nuvens quentes para sua dança macabra; dois dias depois passou à categoria inquietante de perturbação ciclônica e já era uma flecha envenenada no meio do Atlântico, aproada para o mar do Caribe e com o prepotente direito de ser batizada de Félix; no entanto, na noite anterior, engordada a ponto de se transformar em furacão, apareceu como um remoinho grotescamente sobreposto ao arquipélago de Guadalupe, acachapado por aquele abraço eólico desolador de duzentos quilômetros por hora que avançava disposto a derrubar árvores e casas, a perturbar o curso histórico dos rios e as altitudes milenares das montanhas e a matar animais e pessoas, como uma maldição mandada por um céu que continuava suspeitosamente lânguido e plácido, feito uma mulher pronta para enganar.
Mas Mario Conde sabia que nenhum daqueles acidentes e embustes alteraria seu destino e sua missão; desde que vira o rebento de furacão nascer nos mapas, sentira estranha afinidade com ele: esse sacana chega até aqui, pensava enquanto o via avançar e crescer, porque algo na atmosfera exterior ou em sua própria depressão interior –carregada de cirros, nimbos, estratos e cúmulos relampagueantes, apesar de sempre incapazes de se transformar em furacão– o avisara das verdadeiras intenções e necessidades daquela massa de chuvas e ventos enlouquecidos que o destino cósmico criara com o firme propósito de atravessar aquela exata cidade para executar uma purificação esperada e necessária.
Naquela tarde, porém, farto de tanta vigilância passiva, Conde optou pelo chamado verbal. Sem camisa, com as calças mal e mal abotoadas e portando uma carga etílica que punha em combustão seus motores mais ocultos, escalou até a laje por uma janela para se encontrar com o entardecer outonal, agradavelmente morno, e de lá, por mais que desejasse, não conseguiu descobrir o menor rastro de tocaia ciclônica. Debaixo daquele céu enganador, esquecendo-se por um instante de seus propósitos, Conde dedicou-se a observar a topografia do bairro, povoada de antenas, pombais, varais de roupa e caixas-d'água que refletiam uma cotidianidade simples e agreste à qual ele, porém, não parecia ter acesso. Na única colina do bairro viu, como sempre, a coroa de telhas vermelhas daquele falso castelo inglês em cuja construção trabalhara seu avô Rufino Conde, quase um século antes. Aquela permanência teimosa de certas obras para além da vida de seus criadores, resistindo até à passagem de furacões ou borrascas ou ciclones ou tufões ou tornados ou mesmo vendavais, pareceu-lhe a única razão válida da existência. E o que restaria dele se agorinha mesmo se lançasse aos ares como a pomba que certa vez imaginara? Um esquecimento infinito, deve ter respondido a si mesmo, um vazio arrebatador como o de todas aquelas pessoas anódinas que iam e vinham pela serpente negra da Calzada, carregadas de sacolas e esperanças, ou com as mãos vazias e a mente cheia de incertezas, talvez alheias à proximidade de furacões terríveis e necessários, aquelas pessoas indiferentes até mesmo à vacuidade da morte, sem vontade de memória nem expectativas de futuro, que se alarmaram com o grito desesperado que ele lançou para o horizonte mais longínquo:
– Vem de uma vez...!"

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Excerto do romance 'Paisagem de Outono', do escritor cubano Leonardo Padura - Editora Boitempo. Ilustração da artista plástica Deborah Paiva. Publicado pela Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 09/10/2016.