sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Bauman e o inverso: a química do amor que fica

A avaliação do legado intelectual de um autor dificilmente é feita adequadamente no "calor de sua partida". Exceções existem, claro. De toda forma, convém deixar as emoções baixarem um pouco. Falemos sobre Zygmunt Bauman. Coincido, e muito, com uma breve avaliação que o Marco Aurélio Nogueira fez de sua obra. Com uma longa vida, Bauman mostrou a sabedoria que se encontra no passar dos anos; transitou por diversos campos, não fazendo concessões às grades da fragmentação disciplinar que aprisionam o conhecimento; e provocou-nos com um pensamento genuíno. Da minha parte, o seu livro O mal-estar da pós-modernidade foi o mais significativo, sobretudo em decorrência da fecunda articulação que empreende entre desejo de liberdade e (necessidade de) segurança. Já a ideia de 'relações sociais líquidas', ou melhor dizendo, o conceito de vida líquida provavelmente seja bastante problemático, por não ter o rigor analítico exigido. A vida individual e social, conforme demonstra uma incursão histórico-empírica (mesmo com as sociedades mudando de configuração), depende de um grau de segurança ontológica para existir. Depende de dispositivo ético-morais, que não significam moralismo, mas, sim, 'parâmetros de socialização' para dotar a existência, convencionalmente,  da estabilidade necessária. Do contrário, o que se poderá ter é, do ponto de vista social, um caos completo (algo como uma espécie de 'Estado de Natureza'); e, do ponto de vista individual, a perda de autorreferência, a loucura, a vida disparatada. A propósito, o jornalista Xico Sá, o nosso 'cronista dos costumes', escreveu um texto no Jornal El País rendendo homenagem a Bauman, mas dizendo que a ideia 'de amor líquido' liquida-se e se solidifica. Amor que fica. Aí abaixo, os principais extratos do texto. 

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Os Amantes, de René Magritte

Por Xico Sá  

Pode ser apenas impressão deste escorregadio cronista de costumes, caríssimo amigo polaco Zygmunt Bauman, mas, cá entre nós, a goteira do amor pinga em ritmo mui vagaroso, começa a perder a força, pelo menos aqui no meu telhado e nas casas das redondezas - o mundo é uma vila Tolstoi, por suposto. Tudo que foi líquido, repares, parece que se solidifica. Será uma virada, um novo ciclo na roda da história? Muito cedo para avaliar, meu prezado, embora na vitrola João Gilberto retome o seu “hô - ba - lá – lá, hô - ba - lá – lá, uma canção...”
Pelo menos aqui na área, “hô - ba - lá – lá, hô - ba - lá – lá”, pelo menos no parque da Tupi, no Sumaré, SP, um casal se beijava no coreto ontem à tarde e fazia da chuva uma sólida tempestade de granizo, pelo menos é o que tenho observado, mr. Zyg, e olhe que nem citei ainda as malditas estatísticas. Sabias que voltou a crescer o número de casamentos nos trópicos? É o que dizem os anuários desde 2014.
Este país é tão contraditório, meu velho, que até os encontros do Tinder — e outros correlatos aplicativos da sacanagem moderna e líquida— podem levar ao matrimônio. Maria, minha amiga gaúcha lá em Brasília, que o diga. Casadíssima, depois de um chamego tindernético na cidade do Rio de Janeiro. “Hô - ba - lá – lá, hô - ba - lá – lá, esta canção...”
Amor  picaresco, amor quixotesco que solidifica. A busca por nós mais firmes, porém, voltou com o visgo dos casais de outrora. Uma busca romântica, não obrigatoriamente careta.
Não testemunhava nada igual, polaco pai d'égua, desde priscas eras. Depois do lançamento do teu livro Amor Líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos (ed. Zahar, 2003),  somente agorinha, na virada para 2017, comecei a entender que o amorzinho gostoso e demorado está de volta.
Tempo ao tempo, só a areia da ampulheta sabe a resposta e a guarda em silêncio. Até lá, paciência, que se mantenha o processo de solidificação do que parecia apenas gotejante. Mesmo que em alguns casos a inocente água inodora e incolor seja capaz de gerar um coração de gelo. Rio o riso possível, talvez com o filtro degradê do cinismo. Já é um avanço, hoje me encontro mais otimista do que um filme do Frank Capra.
Grande Zyg, que a terra lhe seja leve, sentiremos muito tua falta, sem palavras... Embora o amor estrebuche sinais de vitalidade, viejo polaco, no restante tudo segue na mesma lengalenga social clube.
A modernidade do atraso neoliberal liquida sem dó nos Tristes Trópicos. Vi um filme esta semana no cinema da rua Augusta, rapaz, que nem te conto. Título: Eu, Daniel Blake. Direção do teu amigo Ken Loach, aquele Corisco que não se entrega, que resistência,  hombre.
Pobre Daniel. Um  personagem do teu livro Vidas Desperdiçadas. Daquelas figuras que deram até a última gota de sangue ao país e agora não contam com nenhuma segurança social por parte do Estado liquidado. Só pega a senha da decepção histórica na fila dos desvalidos. E olhe que o tiozinho mora em Newcastle, Inglaterra. Imagina no Brasil, Zyg, que adota aquele receituário capaz de tragédias gregas.
Guardes, porém, a reviravolta no amor como boa nova, te dou em breve notícias do nascimento de Irene, uma filha da imaginária Cratóvia, mistura do meu Crato com a Varsóvia materna. O sangue cosmopolita ainda bombeia os encontros amorosos de São Paulo.
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Fonte: http://brasil.elpais.com