Por Jessé Souza
(Universidade Federal Fluminense)
Meu colega Luis Felipe
Miguel iniciou um debate interessante sobre a coluna de 16/01/17 de Celso Rocha
de Barros no jornal “Folha de São Paulo”. Celso critica na sua coluna o que ele
chama de explicação dominante da esquerda para o golpe de 2016. Essa explicação
se basearia em três teses, sendo que duas dessas três teses ele retira de meu
livro “ A Radiografia do golpe” de agosto de 2016. São elas a denúncia do golpe
como fruto da articulação entre elite do dinheiro, mídia e Judiciário; e a tese
do ressentimento da classe média contra as políticas de ajuda aos mais pobres
que teria permitido usá-la, contra seus melhores interesses, como massa de
manobra nas ruas e como “base popular” do golpe. Na sua coluna, o autor escolhe
criticar apenas a tese do ressentimento. Celso não nega que o ressentimento
social exista, mas ele acha que essa tese precisaria de “evidências empíricas”
para ser efetivamente válida.
Celso parece esquecer que as pessoas na vida real
têm pouco apreço pela verdade e muito apreço para a legitimação da vida que
levam qualquer que seja ela. Celso parece esquecer, também, que o mundo social
e subjetivo não são transparentes para as pessoas e que seria tão ridículo
perguntar a um coxinha da paulista se ele está ali porque as distâncias com os
miseráveis foram um pouco diminuídas, sendo o combate a corrupção mero
pretexto, quanto perguntar ao homofóbico se ele percebe que sua violência aos
homossexuais só pode ser explicada pela necessidade psíquica de silenciar seu
próprio homossexualismo. A “verificação de uma tese de comportamento social” se
dá sempre pela análise do comportamento objetivo e não pela legitimação
consciente. Senão vejamos. Por que foram um milhão de pessoas – 80% da classe
média – à avenida Paulista contra a corrupção supostamente só do PT e
literalmente ninguém saiu ás ruas quando os principais políticos do PSDB foram
todos eles, sem exceção, envolvidos em delações de desvios milionários? Por que
os dois pesos e as duas medidas?
Mas o mais interessante ainda está por vir. Celso
se pergunta a certa altura: e se o ressentimento tiver existido, por que ele
não levou a classe média descontente às ruas no momento do auge da mobilidade
social das camadas populares? A análise de Celso é toda construída sob o
pressuposto não apenas de que as pessoas agem com total consciência de seus
motivos reais, como também, de que suas ações e opiniões não são mediadas por
ninguém. Sua pergunta parece revelar uma dúvida autêntica: ora, se a classe
média se ressentiu, por que não teria mostrado, então, este ressentimento
antes? Bingo! O coxinha leitor de Celso de Barros deve ter se sentido aliviado
e pensado:
“Esses esquerdopatas e suas invencionices
chavistas e bolivarianas, ressentido é ele que perdeu a mamata do petrolão”.
O grande e ensurdecedor silêncio na análise de
Celso é a percepção da mídia como mediador neutro e imparcial. Existiria,
assim, um tipo muito especial de empresa no capitalismo: aquela que não joga
tudo que tem para maximizar seus lucros, mas sim para esclarecer de modo
anódino, correto e sóbrio seu consumidor telespectador/leitor.
Celso fala do ressentimento e de sua transformação
em ação coletiva como se este se desse espontaneamente, por um acordo secreto
entre as pessoas que foram à avenida Paulista protestar. Tudo se dá como se num
belo dia, todos os coxinhas resolvessem ligar um para o outro e combinar um
passeio de protesto na avenida Paulista. Eles não foram motivados nem
manipulados por ninguém. Perceba leitor, que Celso é sociólogo e doutor,
formado em uma das melhores universidades inglesas. Se especialistas cometem
essa ingenuidade, o que dizer dos leigos? Os leitores dos jornais e das
televisões podem ser ótimos médicos, enfermeiros, advogados ou mecânicos, mas
eles não compreendem a complexidade da realidade social assim como não percebem
– do mesmo modo que o Doutor em Sociologia Celso Barros – as formas de
violência simbólica e de distorção sistemática da realidade às quais estão
expostos.
O silêncio de Celso é sintomático e expressa a
mentira e a fraude mais importante para que o golpe tenha acontecido e esteja
hoje realizando a maior regressão histórica em todas as dimensões da vida que
este pais jamais viu: a negação do papel da mídia como partido político das
elites internas e externas que se uniram para rapina da riqueza de todos em
favor de meia dúzia. O papel manipulador da mídia depende precisamente de que
ela não seja percebida como um “ator social com interesses próprios”. Quando
ele se pergunta, candidamente, talvez motivado por uma dúvida autêntica, por
que o ressentimento da fração, mais conservadora da classe média contra a
pequena ascensão social dos mais pobres não teria se mostrado antes, a ausência
de qualquer referência ao papel da mídia é o dado principal e sem dúvida mais
curioso.
Ora, foi a mídia que dignificou e sacralizou o
incômodo mesquinho e venal da fração conservadora da classe média primeiro com
a necessidade de partilhar espaços sociais antes restritos a ela, como
aeroportos e “shopping centers” e, depois, o “medo irracional” da competição
por seus salários e prestígio social com a política de cotas sociais e bolsas
nas universidades. O que aconteceu foi uma “sacralização moral” do ódio de
classe – contra uma classe de “escravos modernos” desprezada, abandonada e
percebida como mão de obra farta e barata para seu uso e abuso – que foi
transformado em “indignação moral” contra a corrupção.
Antes da criminosa manipulação midiática - que hoje
atolou o pais em ódio e obscurantismo – esse ódio de classe não era de
expressão “legítima”. Em uma sociedade ainda que superficialmente cristã como a
nossa, quem odeia os mais frágeis e os mais fracos é um simples canalha. Foi o
trabalho da mídia que transformou o canalha em “herói nacional”, ao conferir o
pretexto, o discurso e o herói de carne e osso (o juiz Sérgio Moro) da grande
farsa que possibilitou transmutar o ódio ao PT e a sua obra de combate à
pobreza em cruzada moral contra a corrupção.
E não é necessária nenhuma “survey” para comprovar
isso caro, colega Celso de Barros. Basta usar a velha e boa capacidade humana
de reflexão autônoma e confrontar a reação da mídia e de seu público cativo
contra o PT com a reação de ambos às inúmeras delações envolvendo todos os
principais políticos do PSDB. Cadê os panelaços, onde estão os milhões de tolos
que saíram a rua pelos mesmos motivos contra Lula e o PT? Afinal, se era para
combater a corrupção, por que parou? Parou por que? E onde estão os editoriais
inflamados e cheios de indignação que enchiam os jornais e as televisões do
pais. A classe média foi feita de tola e trocou a sacralização de seu ódio
covarde e canalha contra os mais frágeis que ela explora por uma exploração
agora sem precedentes de toda a população inclusive dela própria classe média.
Agora ela vai ter que pagar caro pela universidade, pelo plano de saúde e agora
também pela própria aposentadoria privada. E outras contas pesadas virão. Além
disso, é ela que vai andar com medo nas ruas e que vai empobrecer de modo
crescente. Essa é a conta da dignificação e sacralização do ódio que a mídia
lhe proporcionou.
Mas vamos insistir e usar aquele órgão que a mídia
quer tornar obsoleto no Brasil: nosso cérebro e sua capacidade de reflexão.
Será que os dois pesos e as duas medidas são por que o PSDB é o partido da
rentismo e do capital financeiro e a imprensa é a defensora bem paga de ambos?
É por isso que o país empobreceu e milhões perderam empregos e as causas são
sempre postas na herança maldita? Quanto tempo irá decorrer até que a classe
média compreenda que o trabalho que o PT fez foi superficial e apenas garantiu
um grau de civilidade mínimo ao país? E que as calamidades que estão vindo e
ainda virão como insegurança pública crônica, massacres e epidemias vão cair
como as pragas do Egito sobre a própria classe média?
O silêncio sobre o papel da imprensa é o
fundamento da continuidade da nova ordem. Uma imprensa que deu os motivos –
todos falsos como vemos hoje – construiu a narrativa, criminalizou a política,
justificou o ódio e até transformou sua marionete jurídica em herói nacional.
Não existiriam Bolsonaros como ameaças reais sem esse trabalho prévio da
imprensa. No entanto, como mostra meu colega Celso de Barros tão bem, ela fez
todo o trabalho sujo e ninguém ainda a responsabiliza por isso. Até quando?
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Fonte: Texto socializado pelo autor.