segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Parques do Piauí e do Vale do Catimbau-PE: importantes para a ciência, invisíveis para o Brasil

Aí abaixo, um bom texto de divulgação científica veiculado, há já algum tempo, pelo jornal El País sobre o Parque Nacional Serra da Caipivara, no Piauí, e o pioneiro trabalho da pesquisadora Niéde Guidon, o seu esforço e a sua luta. Mutatis mutandis, a importância da Serra da Caipivara e, ao mesmo tempo, a sua invisibilidade para o Brasil são similares ao que se verifica em relação ao Parque Nacional Vale do Catimbau, situado entre o agreste e o sertão de Pernambuco, e que é detentor de pinturas rupestres e artefatos de ocupação pré-histórica datados de pelo menos 6000 anos, além de possuir cerca de 30 sítios arqueológicos - o que lhe coloca na condição de segundo parque arqueológico do Brasil, ficando atrás apenas, exatamente, da Serra da Caipivara. Que isso não seja invisível para as novas gerações e sobretudo para os professores responsáveis pela sua formação. E que os historiadores, arqueólogos, etc., superem as barreiras (muitas) nas pesquisas sobre esses lugares, conforme a amostra delas que o texto a seguir evidencia. 

Pinturas rupestres na Serra da Caipivara 

Por Talita Bedinelli

A pesquisadora franco-brasileira, Niéde Guidon, de 81 anos, participava de uma exposição sobre pinturas rupestres no Museu do Ipiranga (em São Paulo) no início da década de 1970, quando um homem se aproximou e disse:
- Lá na minha cidade tem um monte desses desenhos.
Guidon, na época professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, montou então uma missão de pesquisadores rumo a São Raimundo Nonato, um município do Polígono das Secas no Piauí. Chegando lá, foi levada por moradores locais a um abrigo de pedra (similar a uma caverna, mas menos profundo) em cujas paredes estavam gravadas, em vermelho, imagens de animais e cenas de dança, sexo e caça. Ela decidiu, então, se dedicar à pesquisa no local e nunca mais foi embora.
Em 1979, a pesquisadora conseguiu que a área de 129.000 hectares fosse demarcada para preservação, tornando-se o Parque Nacional da Serra da Capivara. Lá, descobriu com a sua equipe 1.350 sítios arqueológicos com cerca de 750 pinturas rupestres, a maior concentração do continente americano, e começou uma disputa científica que procura demonstrar que a presença do homem na região é muito mais antiga do que se imaginava anteriormente. Os últimos achados na Capivara dão conta de que a chegada à América foi dez mil anos antes do que supunha a teoria predominante, o paradigma de Clovis First. E pode ter começado pela América do Sul e não pela do Norte.
Em uma publicação no periódico científico “Journal of Archaeological Science, Christelle Lahaye e Eric Boëda, que comandaram a escavação na Toca da Tira Peia, dentro do Parque Nacional, descobriram 113 artefatos de pedras lascadas ou polidas, feitos com uma matéria-prima que não foi achada perto do sítio escavado, o que indicaria a manipulação desses objetos pelos homens. A análise deles mostrou que os mais antigos haviam sido usados há pelo menos 22.000 anos.
Os achados são elementos que fortalecem os indícios contrários à teoria de Clóvis e dão força para a briga que Guidon iniciou ainda na década de 1970, com as primeiras escavações na Serra da Capivara. Para ela, o local foi povoado na verdade há mais de 100.000 anos, uma data considerada “absurda” pelos discípulos de Clóvis.
A teoria de Clóvis First foi proposta por arqueólogos norte-americanos na década de 1930, após a descoberta de pontas de lança feitas com ossos de mamute na cidade de Clóvis, Novo México (EUA). Assim, os pesquisadores norte-americanos afirmam que o homem chegou há 11.500 anos pela Ásia, a pé, durante o Pleistoceno (a Era do Gelo). Só depois de se espalharem pela América do Norte povoaram a do Sul.
Mas as escavações da equipe de Guidon no Piauí começaram a contestar esse modelo já em 1983. Na ocasião, pedaços de carvão encontrados no sítio Paraguaio, o primeiro investigado pela pesquisadora, traziam indícios de que a ocupação ali era de, ao menos, 31.500 anos atrás. Em 1984, uma nova datação, também em pedaços de carvão, marcava 32.160 anos. Os achados foram publicados na revista Nature, em 1986. Com o passar dos anos, no entanto, descobriram-se indícios de 58.000 anos atrás e, em 1991, chegou-se à data que deixava, e muito, Clóvis para trás: os 100.000 anos. “Como o Carbono 14 não funciona para datações tão antigas, aplicamos a termoluminescência, que faz com que o material emita uma luz que permite saber quando o fogo foi aceso”, conta ela.

Canion das Andorinhas, Serra da Caipivara 

As análises, consideradas “irrefutáveis” pela pesquisadora foram contestadas por pesquisadores que diziam que o carvão descoberto seria consequência de fogueiras naturais. Guidon e sua equipe afirmavam que as fogueiras não eram naturais, pois as marcas estavam apenas em paredes dentro do abrigo. Próximo a esses locais, foram encontradas evidências de pedras lascadas pelo homem e de pinturas rupestres. A teoria da pesquisadora é de que o homem teria chegado diretamente à América do Sul, vindo da África, na época de uma grande seca no continente africano.
A querela científica, no entanto, perdurou devido ao que alguns pesquisadores chamam de “imperialismo acadêmico” norte-americano. Só que evidências achadas justamente em solo norte-americano passaram a demonstrar, nos últimos anos, que a teoria de Clovis não se sustentava mais.
Em 2008, em Oregon, pesquisadores descobriram por meio de análises de DNA em ossadas humanas que a ocupação já havia acontecido há 14.000 anos. No Texas, em 2011, descobriram 15.528 artefatos no chamado complexo Buttermilk Creek, datados de um período entre 13.200 a 15.500 anos. E um pesquisador norte-americano chamado Tom Dillehay, na década anterior, já havia conseguido reconhecimento acadêmico para suas descobertas no sítio arqueológico Monte Verde, no Chile, onde objetos encontrados remontavam a 12.500 anos.
No ano passado, com a publicação dos novos achados na Serra da Capivara, a comunidade científica voltou os olhos novamente para o Piauí. Os indícios de pedras lascadas ou polidas de 22.000 anos são menos polêmicos que os pedaços de carvão das fogueiras e, por isso, a tese de Guidon começa a não parecer tão “absurda”.
“Dizer que a chegada do homem na América há 100.000 anos é algo absurdo não é uma afirmação muito científica. Em ciência, não se pode dizer, a priori, que algo não aconteceu. Mas é preciso de mais dados [para a tese de Guidon]”, diz Astolfo Araújo, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP).
“É lógico que falar em 100.000 anos deixa a gente assustado. Mas, por outro lado, a presença do homem na África é de 200.000 anos atrás. Não é impossível que alguém tenha vindo de barco para a América do Sul”, continua ele.
Ele ressalta ainda que uma das possibilidades para o intervalo entre os indícios de 100.000 anos atrás e os de 22.000 anos poderia ser o desaparecimento do primeiro grupo populacional, mais antigo, na América do Sul. “Mapeamentos do genoma descobriram que nós temos muito pouca variabilidade genética. Isso poderia significar que a nossa população quase se extinguiu”, explica ele. Um estudo publicado em 2008 no American Journal Of Human Genetics apontou que há 70.000 anos a população humana pode ter encolhido para apenas 2.000 pessoas por conta do clima extremo. Essa “quase extinção” teria ocorrido justamente na época do intervalo dos achados na América.
Com isso, defende ele, existe a possibilidade de que tenha havido duas entradas de homens na América. Hipótese defendida também pelo professor do Instituto de Biociências da USP Walter Neves, descobridor de um crânio de 11.000 anos na região de Lagoa Santa (Minas Gerais), apelidado de Luiza. Para Neves, no entanto, houve duas ondas migratórias, ambas vindas da Ásia. A primeira, há 14.000 anos, foi de indivíduos parecidos com Luiza, de morfologia semelhante à dos australianos e africanos atuais. Essa espécie não teria deixado descendentes.
A segunda leva, de acordo com ele, chegou há 12.000 anos. Eram indivíduos de tipo físico asiático, semelhante aos índios americanos atuais, explicou, em entrevista à revista da Fapesp. Neves, que foi “inimigo científico” de Guidon por anos, diz que finalmente visitou o parque da Capivara para avaliar a coleção lítica dos sítios e saiu de lá “99,9% convencido de que houve no local uma ocupação anterior a 30.000 anos”. Mas a dúvida que restou ainda é significativa, disse ele na mesma entrevista.
Mas a disputa entre as teses científicas continua. Pesquisadores que publicaram um artigo na revista Science descobriram no México um esqueleto de 12.000 anos que, segundo eles, sustenta tese de que as populações que chegaram à América vieram da Ásia pela região do estreito de Bering, posteriormente se espalhando para o sul. Com a descoberta, eles descartam a possibilidade de que tenha havido diversas ondas de povoadores. O crânio da menina de aproximadamente 15 anos, apelidada de Naia, tem a morfologia dos australianos e africanos, mas a análise do DNA mitocondrial extraído dos dentes do esqueleto é semelhante a dos índios atuais. Assim, a Luiza descoberta por Neves teria os mesmos ancestrais de Naia, de acordo com a pesquisa publicada na Nature. A descoberta foi vista com ceticismo por Neves, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
O fato é que a falta de esqueletos antigos que poderiam trazer afirmações mais precisas sobre a questão é um problema na América do Sul. Por isso, sítios como os do Parque Nacional da Serra da Capivara, onde a pesquisa continua, são essenciais para que o enigma chegue perto do fim. No entanto, aos 81 anos, Guidon luta para fazer novos seguidores da sua tese [entre estudantes e jovens pesquisadores] que possam continuar com seu trabalho para manter o local, que recebe pouca verba e corre o risco de se tornar cada dia mais precário.
------------------------------------------------------------
Fonte: http://brasil.elpais.com/. Título original: 'Parque do Piauí: Um Gigante para a Ciência, Invisível para o Brasil'. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário