Este ano a chamada nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, 9.3994/96) completa duas décadas. Convenhamos, já deixou de ser nova e já deveria ter dado muitos frutos. Mas ocorre que, como bem evidencia a boa pesquisa educacional, uma coisa são os dispositivos legais (as leis); outra, é a arena dos interesses e das opções políticas - no caso, da concepção, da efetivação e da tradução das políticas educacionais. O imediato pós-LDB, sob o governo Fernando Henrique Cardoso, foi desastroso a um setor básico para a construção da qualidade de ensino: a educação superior, isto é, a esfera da formação docente. Basta lembrar apenas, na época, da não realização de concursos nas universidades, do déficit de professores e da compressão do sistema universitário (restrito às capitais) frente a uma demanda crescente. Os anos passaram e veio a expansão das universidades federais e da rede tecnológica, decerto algo importante, mas a expansão também trouxe consigo um crescimento desordenado e com problemas de gestão. Dessa forma, no vigésimo aniversário da LDB 9.394, o debate sobre a qualidade social da educação brasileira continua mais atual do que nunca. Atual e cada vez mais urgente de ações para a sua efetivação. A esse respeito, os últimos dados da OCDE deveriam, no mínimo, levar-nos a refletir sobre o assunto, principalmente no contexto universitário e da formação de professores. Por exemplo, sobre o tipo de profissionais que estão a ser formados para ensinar às novas gerações. Evidentemente, a responsabilidade pelas deficiências estruturais do sistema educacional cabe à esfera governamental, mas há outras (intermediárias e da ponta do sistema) que decorrem de questões de gestão e de postura individual. Aí abaixo, seguem dois textos sobre o calamitoso quadro do ensino básico brasileiro. O primeiro, de Thomas Conti, tem em consideração os resultados da avaliação do estudo da OCDE, divulgados agora em fevereiro. O segundo, de César Benjamin, publicado na Folha de São Paulo em 2010, quando também se tinha presente resultados avaliativos da educação nacional, serve como comprovativo histórico para demonstrar como os problemas educacionais brasileiros persistem durante o passar dos anos.
Por Thomas Conti
Saiu o resultado do estudo
da OCDE sobre a qualidade do ensino em 64 países, onde o Brasil ocupou a 63ª
posição em número absoluto de estudantes de 15 anos (1,1 milhões entre os 2,7
milhões analisados) que "não têm
capacidades elementares para compreender o que leem, nem conhecimentos
essenciais de matemática e ciências." Legendei
o vídeo abaixo apenas para contextualizar um pouco esses dados e dar uma noção
da gravidade do problema que nosso país enfrenta. No vídeo, o físico teórico
Michio Kaku (nascido no Japão, naturalizado nos Estados Unidos) argumenta como
nem os EUA teriam um sistema educacional adequado para os desafios do século
XXI, dependendo de estrangeiros para a pesquisa. Imagine no Brasil, onde não há
nem sistema educacional básico de qualidade, nem grandes incentivos à
internacionalização da pesquisa. É um quadro triste, para dizer o mínimo.
Especialmente se pensarmos que mesmo se hoje mudássemos completamente o sistema
educacional, levaria mais de uma década para vermos o impacto da mudança. E
essas reformas não parecem sequer estar em pauta, quanto menos saírem hoje.
Segue o vídeo para a reflexão.
OBS1: O "sistema"
que Michio se refere (1m24s do vídeo) é o complexo educacional do MIT
(Massachusetts Institute of Technology). É provavelmente o centro de pesquisa
tecnológica mais avançado do mundo.
OBS2: O comentário final do Michio sobre formandos em sociologia no contexto do
debate refere-se ao fato de que as estatísticas americanas sobre quantos % dos
doutorandos são do próprio país são infladas pela participação deles nas
humanidades. Quanto mais próxima da ponta tecnológica é a área de pesquisa,
menor é a participação de estudantes americanos. Como não quis fazer um vídeo
longo esse contexto acabou sendo perdido.
OBS3: Em 2014, mais de 315 mil pessoas residem nos EUA por meio dos vistos
H-1B, para trabalhar, estudar e/ou desenvolver pesquisas de ponta na
pós-graduação. O total de estrangeiros naquele país apenas por meio destes
vistos é maior que todos os alunos da USP, Unicamp e Unesp somados. Fonte: U.S. Citizenship and Immigration Services,
Characteristics of H-1B Specialty Occupation Workers Report for Fiscal Year
2014."
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Ler, escrever, calcular
Por César Benjamin
Não devem passar despercebidos dois
artigos publicados nesta Folha nos últimos dias. Em “Repetência e
alfabetização”, de 27 de janeiro, João Batista Araújo e Oliveira apresentou
resultados de um teste aplicado em 338 mil
alunos do segundo ao quinto ano em 350 municípios brasileiros
espalhados por 25 estados, uma amostra
excepcionalmente representativa. Nada menos de 70% dos alunos avaliados foram
considerados analfabetos, independentemente da série em que estavam, e 50% dos
estudantes do quinto ano foram classificados assim.
Em 4 de fevereiro a Folha noticiou o desempenho
de alunos da rede municipal de São Paulo em matemática. Não me estenderei.
Ocimar Alavarse, da USP, avaliou o resultado como “escandaloso”. Um teste
semelhante, em escala nacional, certamente mostraria resultado igual ou pior.
Tais avaliações nos dizem que o Brasil ainda
recusa à maioria dos seus filhos a possibilidade de participar ativamente das
potencialidades da civilização contemporânea. Estamos diante de um problema
grave, antigo, estrutural, que envolve todos os níveis de governo e a
sociedade. Mas não conseguimos reagir.
Há íntima relação entre a capacidade formal de
expressão e os conteúdos que se deseja expressar. Em um dos Seminários de
Zollikon, Heidegger pergunta: “Por que os animais não falam?” Ele mesmo
responde, de maneira simples e muito
perspicaz: “Porque não têm o que dizer.”
Quando depois se refere ao homem como “o animal
falante”, talvez possamos ler “o animal que tem o que dizer”.
Os homens sempre tiveram muito a dizer. Todas
as sociedades, desde as mais primitivas até as mais
avançadas, separadas por dezenas de milhares de anos, criaram línguas que
apresentam grau semelhante de complexidade, a ponto de até hoje não ter sido
possível construir uma teoria evolutiva da linguagem, esse grande enigma humano.
Pois é de uma linguagem criativa que se trata,
justamente o que nos diferencia. Adquirimos na infância a misteriosa capacidade
de construir e entender um número indefinido de sentenças que jamais ouvimos e
que talvez jamais tenham sido enunciadas, enquanto os sistemas de comunicação
usados por outras espécies só permitem a transmissão de um pequeno conjunto de
mensagens cujo significado é fixo.
Assim, além das funções de expressão pessoal e
de comunicação imediata, que compartilhamos com os animais, nossa linguagem
possui funções superiores que lhe são
específicas, como descrição, conceitualização e argumentação. Graças a elas,
podemos desenvolver, por exemplo, padrões de crítica, a ideia de verdade, o
conceito de razão. Popper é enfático: “É a esse desenvolvimento das funções
superiores da linguagem que devemos a nossa humanidade, a nossa razão, pois
nossos poderes de raciocínio nada mais são
do que poderes de argumentação crítica.”
A capacidade de abstração, a formulação de
diferentes explicações, a compreensão de objetos complexos – tudo isso exige o
cultivo das funções superiores da linguagem, que, no mundo contemporâneo,
implica o domínio pleno da leitura e da escrita, além de fundamentos de lógica
que nos são transmitidos, principalmente, pela matemática.
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