'Efeitos não intencionais da ação intencional', eis aí uma chave fundamental na teoria social para se analisar/entender a interação entre as pessoas e as suas decorrências, os desdobramentos das manifestações coletivas, os encaminhamentos da ação política, etc. Sim, é de microanálise social que se trata, até com fronteiras, vá lá, com a abordagem psicológica. 'Regimes de verdade', ao invés da verdade 'finca pé', a manifestação do comportamento irracional em quem supostamente exala racionalidade, o turvamento de relações pessoais em decorrência dos 'efeitos não intencionais da ação intencional', a inversão dos resultados esperados na ação política planejada, etc. O texto aí abaixo, da lavra de André Singer, inscreve-se nessa perspectiva de análise, mesmo que ele não a assuma explicitamente. É de certo modo, por outro lado, uma lição a determinados "cientistas políticos" que andam por aí a destilar arrogância, fazendo espuma de palavras no (sofrível) esforço pseudoerudito. Singer usa, e bem, a imagem do xadrez, para tratar da nova movimentação para depor a Presidente Dilma - com a contribuição, inclusive, dela própria, ou, colocando nos termos aqui em tela, como decorrência dos 'efeitos não intencionais da sua ação intencional'. Vale a leitura.
Por André Singer
(Universidade de São Paulo - USP)
A
espetacular prisão de João Santana, em timing cada vez mais calculado, joga,
não por acaso, lenha grossa na fogueira de novas eleições para presidente e
vice este ano. Apanha Dilma em curso de perigoso isolamento, ao mesmo tempo em
que a alternativa do impeachment continua queimada pelos erros de Michel Temer
e pela imagem de Eduardo Cunha. Nesse contexto, a "operação derruba
chapa" procura pressionar o frágil colegiado do TSE a cassar os vitoriosos
em 2014.
A estratégia dos enxadristas da Lava Jato
combina duas linhas de força. De um lado, plantam devagar cerco que imobiliza o
ex-presidente Lula. De outro, avançam rápido na direção de comprometer a
presidente da República. Lembro que o anterior fato espetaculoso, também
preparado com esmero, foi a prisão "em flagrante" do líder do governo
no Senado, Delcídio do Amaral. Ressalte-se: do governo.
Os erros que Dilma comete contribuem para a
eficácia da estratégia. Na medida que o ex-presidente fica na berlinda, aumenta
a tentação da atual mandatária salvar-se por conta própria. Há indícios de que
o Planalto cedeu à ilusão de que se cumprir o programa liberal completo
receberá salvo conduto para cumprir o resto do mandato, mesmo que Lula e o PT
se estrepem.
Trata-se de miopia. Quanto maiores forem as
concessões, maiores serão as exigências, sem qualquer apoio sólido em troca.
Basta ver o que foi o programa do PMDB, que pretende liderar a reforma
liberalizante, anteontem na TV. O partido se colocou de maneira aberta a favor
da solução argentina, com Temer procurando aparecer como o Macri brasileiro.
Dilma que se estoure.
A detenção de Santana, como era de se
esperar, reativou a pressão pró-impeachment dos peemedebistas, que daria lugar
a um governo Temer. Ocorre que, além do percalço menor da desastrada carta
sentimental do vice em novembro passado, o navio do PMDB também está torpedeado
pela Lava Jato. A presença destacada de Cunha no horário político desmonta toda
a credibilidade do peemedebismo.
Ao separar-se de Lula, Dilma serra o galho no
qual está precariamente sentada. A ameaça de conter os aumentos do salário
mínimo e de reduzir a participação da Petrobras no pré-sal alienam os últimos
redutos de apoio à presidente reeleita. Consultado, o antigo mandatário não a deixaria
bater de frente com os movimentos sociais.
Não será surpresa, se a presidente adotar a
defesa de que, se houve problemas nas contas da campanha, elas seriam de
responsabilidade do PT, sem que ela nada soubesse. Completaria, assim, o
isolamento em que se meteu, sem perceber que o lance seguinte consistiria no
xeque-mate.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 27/02/2016. Título original: 'O Xadrez da Cassação'.
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