Estava para escrever um texto sobre a eleição estadunidense e a surpreendente figura de Bernie Sanders, quando me chegou, através de Marcos Aurélio Nogueira (UNESP), o artigo aí abaixo do historiador Eric Reis Godliauskas Zen (USP), escrito em testemunho direto dos fatos, dado que o autor se encontra nos Estados Unidos. Dispenso-me de escrever o referido texto, por, no básico, subscrever o que é assinalado no de Eric Reis. Repiso três notas: 1) De modo geral, certos analistas sociais brasileiros parecem ter uma profunda dificuldade (histórico-sociológica) para compreender a complexidade dos Estados Unidos; 2) Essa dificuldade fica bastante acentuada em determinados segmentos (determinados, note-se) com abordagem crítica em relação a Sanders; 3) setores da direita (intolerante) brasileira, defensores da volta da ditadura militar e apologistas de Bolsonoro, sendo ao mesmo tempo admiradores dos Estados Unidos, estão agora numa 'situação desconcertante' com a ascensão de um candidato à Casa Branca que, à sua maneria, pronuncia em alto e bom som a palavra socialismo e ergue bandeiras que a eles causa ojeriza. É pouco provável, muitíssimo pouco, que Sanders logre êxito, mas a sua ascensão é de ser tida em conta - sem ufanismo e com equilíbrio. Eric Reis nos faz, penso eu, um bom ponto da situação. Vale a leitura.
Bernie Sanders |
Por Eric Reis Godliauskas Zen
No início das primárias da eleição
americana, o pré-candidato Donald Trump chamou bastante a atenção da imprensa.
O bilionário midiático se destacou por vociferar frases misóginas, racistas,
anti-imigrantes, anti-latinos, anti-China e anti-etc. Seu jeito espalhafatoso,
cabelo engraçado e sem nenhuma noção de respeito fizeram com que suas bobagens
ecoassem e despontassem como o fator mais importante das primárias. No entanto,
para além da panaceia de ódio e mediocridade do pré-candidato Republicano, o
fato mais relevante está do lado Democrata, com o crescimento de Bernie
Sanders.
Bernie Sanders se define como um
“socialista democrata”. Essa definição tem causado muita confusão, em
particular no Brasil, tanto na imprensa como nas publicações especializadas.
Essa dificuldade se dá, ao meu ver, pelo impressionante eurocentrismo nas Ciências
Humanas no Brasil. Eurocentrismo tanto na elevada carga horária dos cursos de
graduação (seja em História de Ciências Políticas, Relações Internacionais e
Jornalismo), bem como na visão europeia de mundo que coloniza a nossa
percepção. Com isso, o nosso conhecimento, e a produção do conhecimento, sobre
Estados Unidos é muito limitado.
No que se refere às questões
temáticas, em geral, os estudos sobre os EUA se dedicam à política externa
americana e sua influência no Brasil e muito pouco à sociedade americana (a
exceção são as comparações entre escravismo no Brasil e nos EUA). Como
resultado, não dispomos de muitos analistas que tenham instrumentos
intelectuais adequados para interpretar a sociedade e a política americana e,
quando o fazem, utilizam instrumentos e paradigmas europeus para a análise ou
se colocam mais no papel de tradutores do que de intérpretes.
O fenômeno Sanders poderia servir
como estudo de caso, nesse sentido. O principal erro, me parece, está em tentar
analisar o que Sanders propõe como socialismo através da história da Europa,
pela lente do Partido Social Democrata Alemão ou pelo Partido Socialista
Francês, ambos utilizados como paradigma da social-democracia. Ocorre que, em
grande medida, o socialismo tem um desenvolvimento histórico particular nos
Estados Unidos.
Se é verdade que o Partido
Socialista e o Comunista seguiram por longo tempo os caminhos da Segunda e da
Terceira Internacional, no que se refere ao campo das ideias, muitas
perspectivas socialistas e anarquistas, nos EUA, se combinaram com um
liberalismo radical, em particular na virada do século XIX para o XX.
O local mais profícuo do
desenvolvimento socialista e anarquista nos EUA foi Nova York, em especial em
dois bairros, Harlem e Brooklyn. Bairros estes que são tradicionalmente de
operários negros, mas também de imigrantes do leste Europeu, no início do
século, e de imigrantes latinos a partir da segunda metade do século XX. Em
muito, esses imigrantes operários se desenvolveram economicamente e chegaram à
classe média americana, principalmente após a Segunda Guerra Mundial (1939 –
1945).
O socialismo na América, no decorrer
do século XX (e aqui precisaríamos de páginas e páginas para explicar), toma
bandeiras como a luta por igualdade e equidade, o que significou defender
salário justo, direitos trabalhistas, liberdades individuais e direitos civis,
sobretudo para inclusão do negro, do indígena e das mulheres. Ao mesmo tempo,
apresentou uma crítica aguda ao domínio do Estado e às ameaças à liberdade
individual, desferidas por uma plutocracia financeira, ao segredo de Estado, às
guerras não justificadas, ao crescente poder do complexo militar e industrial
sobre a democracia. Tais ideias se manifestaram fortemente em movimentos
sociais, mas não alcançaram os dois principais partidos e as candidaturas para
o presidência durante a Guerra Fria, o que não significa que devam ser
desprezadas, pois o poder de pressão dos movimentos sociais é significativo nos
Estados Unidos.
Portanto, se existe um socialismo à
americana, ele é uma combinação peculiar entre a defesa dos direitos
individuais, herdados do liberalismo radical, e a perspectiva social-democrata
de um Estado que garanta os direitos trabalhistas, os direitos fundamentais,
como saúde e educação e assistência aos mais necessitados através de programas
sociais.
Quem é Bernie Sanders?
Bernie Sanders nasceu no Brooklyn em
1941, filho de judeus imigrados da Polônia e foi educado em uma família laica e
progressista. Sua paixão pelos Direitos Civis tem uma longa trajetória e um
acúmulo de experiência que deixam claro não se tratar de um oportunista, mas
sim de um militante histórico. Iniciou sua carreira política na juventude da
Liga Popular Socialista, participou ativamente da luta pelos Direitos Civis na
década de 1960, do histórico Congresso pela Igualdade Racial, bem como
diretamente se envolveu no movimento estudantil pacifista contra a Guerra do
Vietnã. Em 1963, participou da Marcha de Washington por Emprego e Paz. Ainda na
década de 1960 teve uma experiência em Israel onde atuou como voluntário em um
Kibutz formado por judeus socialistas laicos.
Radicou-se no Estado de Vermont e
foi eleito prefeito (Mayor) de Burlington, a principal cidade, por três vezes.
Serviu como Congressista deste mesmo Estado por dezesseis anos, sendo que, na
maior parte das vezes, sua eleição se deu como candidato independente, sem
vínculos com Democratas ou Republicamos. Em 2006 foi eleito Senador e reeleito
em 2012 com 71% dos votos.
Como Senador, Sanders foi um dos
poucos que votaram contra a Guerra no Iraque durante o governo W. Bush e
criticou ferrenhamente o corte de impostos para os ricos feitas por este
presidente. Se posicionou contra o USA Patriotic Act,
adotado após o atentado terrorista de 11 de setembro, que deu enormes poderes
de espionagem para as agências de Segurança limitando Direitos Civis. Mais
recentemente se tornou um dos críticos dos programas de espionagem defendendo,
como sempre, as liberdades individuais, como a liberdade de expressão.
Contudo, é importante lembrar que a
sua defesa radical da Constituição americana já foi alvo de crítica pelos
setores progressistas. Um exemplo é a sua interpretação da Segunda Emenda, o
que fez com que ele nunca se colocasse como favorável a restrição para a
aquisição de armas de fogo. Quando foi eleito Governador do Estado de Vermont
recebeu, inclusive, doações da NRA (Associação Nacional de Rifles), principal
lobista dos fabricantes de arma.
Assim, Bernie Sanders reúne algumas
características muito importantes enquanto candidato: uma ampla trajetória e
larga experiência na administração pública além de uma incondicional luta pelos
direitos dos trabalhadores. O candidato não é um exótico, oportunista,
populista, ou um falso socialista. Ao contrário, faz parte das lutas políticas
e das crises recentes pelas quais os Estados Unidos passaram nas últimas décadas.
Se as ideias de Sanders têm longa
trajetória, o que levou a que ele crescesse politicamente bem agora, a ponto de
colocar pressão sobre Hillary Clinton?
Duas respostas me parecem ser
centrais. O fato de Barack Obama não ter realizado suas promessas de campanha,
desagradando os setores mais progressistas entre os Democratas e,
principalmente, a defesa que Sanders propõe dos direitos dos trabalhadores.
Esse é o ponto central.
Desde a crise de 2008 os EUA
passaram por uma enorme onda de desemprego que vai até 2010 (2011). Atualmente,
a maioria dos americanos já recuperou o emprego (o desemprego está por volta de
5%). No entanto, nesse dado esconde uma mudança nas relações de trabalho.
Se o nível de emprego aumentou,
o salário diminuiu, ou seja, os americanos que já estiveram próximos a classe
média tem dificuldade de pagar suas contas. Quem recebe o salário mínimo ($7
dólares por hora) não consegue pagar por aluguel ou hipoteca, ter um plano de
saúde (nos EUA não há saúde pública universal e é preciso comprar um plano
privado ou agora estatal) e menos ainda pagar educação (College) para os
filhos!
Ainda é preciso acrescentar o papel
dos jovens, que são os principais apoiadores da sua campanha. As possibilidades
de entrar ou de se manter na classe média na atual situação americana é
bastante limitada, para os jovens, ainda mais com as enormes dívidas que
acumulam para estudar e a dificuldade para se conseguir um emprego com
benefícios ou contrato longo. É para essa população que as propostas de Sanders
soam como música.
As propostas econômicas de Bernie
Sanders, vale ressaltar, são distantes da dos demais candidatos, Democratas e
Republicanos, pois não defendem uma forma de liberalismo, mas colocam como
horizonte o Estado de bem-estar social dos países escandinavos. Sanders sempre
cita o New Deal de Franklin D. Roosevelt (1882-1945), como uma referência.
Propõe que os mais ricos paguem mais impostos e que o Estado seja provedor de
melhores e universais serviços públicos, como saúde, educação, incluindo a universitária,
bem como a regulamentação do mercado financeiro e das grandes corporações, a
defesa dos direitos trabalhistas e o aumento do salário mínimo.
A esta visão de economia se soma a
uma defesa dos direitos civis, dos direitos individuais, a defesa das minorias
étnicas, da LGBTT, dos imigrantes, do aborto, da liberação da maconha, de
uma reforma do sistema penal, de um salário igual entre homens e mulheres, e,
também, ponto mais polêmico, do porte de armas (que na tradição americana faz
parte do direito dos indivíduos). Com relação ao sistema democrático, defende o
poder local contra o poder das corporações e a influência do mercado financeiro
nas decisões políticas e econômicas do país. Não é à toa que é o único
candidato que não aceita receber doações de corporações.
As lutas de Bernie Sanders são
históricas e ganharam força diante de uma conjuntura em parte estrutural e em
parte específica. Se tudo isso será suficiente para conseguir a vitória sobre
Hillary Clinton e sobre o candidato Republicano ainda é cedo para saber. O
certo é que tentar medir Sanders e suas ideias a partir de uma referência
europeia ou latino-americano não vai facilitar nosso entendimento e pode
resultar em um desprezo por possíveis mudanças ou em empolgação demais com
relação a elas.
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Fonte: http://neai-unesp.org/. Título original: 'Um Socialista à Americana? Conheça Bernie Sanders, o democrata'.
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