Aí abaixo, o texto-resposta do cientista social Jessé Souza (Universidade Federal Fluminense) a Marcus André Melo (UFPE), em função da apreciação crítica que este fez, em artigo na Folha, sobre perspectivas anteriormente realçadas por Jessé, também na Folha de São Paulo. Em tempos de aridez intelectual e mediocridade nas discussões, eis aí um bom debate. No fundo, visitando o continente da história, trata-se de entender o que está em causa hoje no país.
Por Jessé Souza
Este artigo é uma resposta ao texto de meu
colega Marcus André Melo publicado na edição de 31 de janeiro deste
caderno, no qual ele critica entrevista minha publicada,
também na "Ilustríssima", no dia 10 daquele mês. Marcus Melo não
critica meu livro – que eu suponho que ele não tenha lido–, mas tão somente meu
argumento da "demonização do Estado" no Brasil. Ele argumenta que se
trataria precisamente do contrário – o Estado teria sido "santificado",
e não "demonizado".
Apesar de discordarmos em quase
tudo, existe uma afinidade importante entre mim e Marcus: a percepção das
"ideias" e de seu debate como fundamental para a compreensão do tipo
de sociedade que se constrói. Mas aí cessam as proximidades com meu colega.
Marcus constrói uma "história das ideias políticas" no Brasil que só
existe na cabeça dele, sem qualquer relação com o mundo concreto lá fora. Pior,
inverte esse mundo de ponta-cabeça.
É que as ideias não são
importantes por si mesmas. As ideias só são importantes quando elas se acoplam
a interesses poderosos e passam a dominar a vida das pessoas comuns
"convencendo-as" de que são as certas e verdadeiras. Para reproduzir
privilégios não basta a "força física". A real e eficaz dominação
social tem que produzir uma "violência simbólica".
Marcus e os liberais brasileiros
são um ótimo exemplo desse tipo de "violência". É uma violência
dizer, por exemplo, que o visconde de Uruguai forjou, com sua imaginação
política, as "instituições fundamentais do país" em um sentido
autoritário e de reforma pelo alto que teria dominado o século 20 entre nós.
Veja bem, leitor, esse é o argumento central de Marcus, a pedra fundamental de
seu texto.
Ora, ele se "esquece"
que o visconde –leitor do liberal Tocqueville e um dos maiores homens de Estado
do século 19 entre nós– queria nada mais nada menos que o "império da
lei", que Marcus assume como princípio político maior do liberalismo, se
tornasse regra no Brasil. A reação do visconde tinha endereço certo: a
experiência "liberal" brasileira de descentralização do poder
político no século 19, que representou o mandonismo sem peias dos proprietários
locais e total abuso de poder sem qualquer controle.
INVERSÃO
Na cabeça de Marcus, no entanto, o
mundo se inverte para caber no seu argumento. O verdadeiro campeão das
garantias individuais liberais no século 19 foi o visconde
"conservador" (para mostrar como as palavras podem ser enganosas e
arbitrárias).
Na verdade, antes de 1930 o Brasil
era pouco mais que uma fazenda de café onde menos de 1% votava em eleições,
ainda assim, fraudadas. O Brasil moderno se inicia, por um lado, com Getúlio
Vargas que cria as bases "materiais" de uma nação urbana e
industrial; e, por outro lado, com Gilberto Freyre, que constrói as bases
"ideacionais" desse mesmo novo Brasil que se cria. Ou seja, Freyre, e
depois dele, seu "filho intelectual" Sérgio Buarque de Holanda são
incomparavelmente mais importantes que todo o "balaio de autores"
citados por Marcus, posto que apenas depois de 1933 o Brasil produz um
"mito nacional popular" que vai ganhar a mente e o coração de todos
os brasileiros.
As "ideias" têm que
estar no dia a dia das pessoas para serem importantes, e não na cabeça do
pesquisador, como imagina Marcus. São essas as ideias presentes até hoje no
nosso debate. Sérgio Buarque, por exemplo, influencia todo o programa e a ação
de partidos, desde o PSDB até o PT; a ação de instituições que se supõem
estarem combatendo essa suposta jabuticaba nacional chamada
"patrimonialismo"; além de pautar o debate público brasileiro até
hoje.
Comparar esse tipo de influência
generalizada e institucionalizada com a intervenção tópica e pessoal em
governos e tribunais dos intelectuais citados por Marcus é uma miopia grave da
percepção da influência das ideias. Apesar de construir uma história das ideias
arbitrária e míope, o esforço de Marcus é sintomático da autocompreensão do
liberalismo brasileiro. E é nesse terreno que quero fazer minha crítica.
DILEMA
O verdadeiro dilema social,
econômico e político brasileiro, não resolvido até hoje, começa em 1930 com
Vargas. Foi o ambíguo Vargas –que efetivamente permitiu atrocidades
imperdoáveis no seu governo, como menciona Marcus– quem criou as bases para uma
moderna sociedade capitalista e industrial no Brasil.
Vargas criou a legislação do
trabalho, a indústria de bens de capital, modernizou o Estado e criou os
primeiros partidos de massa entre nós. Desde 1930 até hoje, a luta política no
Brasil tem a ver com a definição do sentido desse legado: devemos ter uma
sociedade moderna e inclusiva ou seguir a inércia histórica e construir uma
sociedade para poucos? Que o leitor não se engane: essa é a questão central do
desenvolvimento brasileiro no século 20 e 21, e nenhuma outra. Afinal, é a
resposta a essa questão que separava e ainda separa até hoje os partidos e as
ideias.
Veja o leitor como o presente só
pode ser bem compreendido com a perspectiva histórica. Basta recompor o fio
condutor que une o passado e o presente, e o que quer se vender hoje em dia
como novidade se desmascara como repetição e como fraude.
O partido vencedor dessa disputa,
historicamente, foi o partido da sociedade para poucos. Esse partido venceu em
1954 quando Getúlio foi levado ao suicídio por acusações de corrupção (sempre
ela) que se revelariam infundadas –disseminadas por uma "república do
Galeão" que se punha "acima da lei" (bateu algum sininho com
tempos atuais, caro leitor?)–; venceu também de modo acachapante em 1964 –com
os mesmos órgãos de imprensa e a mesma fração da classe média que atuam hoje– e
está agora, mais uma vez, na ordem do dia.
Exceto esse "ponto fora da
curva" que foi Collor de Mello –que conseguiu o milagre de se indispor com
toda uma sociedade depois de 24h de governo ao confiscar a poupança popular–,
literalmente toda a luta política brasileira desde então, todos os golpes de
Estado e todas as perseguições políticas, só pode ser compreendida pelo divisor
de águas que é a luta entre o partido da sociedade inclusiva e o partido da
sociedade exclusiva.
A própria separação artificial
entre mercado e Estado se deve a essa luta. Na verdade, mercado e Estado são
inseparáveis. Sem a atividade de mercado, o Estado não arrecada; e, sem a
infraestrutura estatal, o mercado perde dinamismo. Mercado e Estado formam um
todo indissociável que se retroalimenta. Então por que dramatizar uma oposição
que não existe?
Tatiana
Stropp
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Ora, como existe uma luta de
classes silenciosa por acesso aos recursos escassos, a oposição mercado x
Estado é a "semântica possível" dessa luta, tão reprimida entre nós
como o medo da morte. Ela é reprimida posto que, de outro modo, a classe média
poderia se descobrir sendo feita de "tola" por uma elite do dinheiro
que a endivida com juros escorchantes e ainda lhe vende os piores e mais caros
bens e serviços do mundo.
PAIXÃO
A classe média paga até os
impostos para os ricos que compram boa parte da classe política –via
financiamento privado– para que nenhuma lei de taxação da riqueza possa passar
no Congresso (e fique tudo no lombo dessa mesma boa e velha classe média). A
mesma classe média com a qual os ricos sempre podem contar para defendê-los na
rua e nas urnas. De resto, ainda sonegam o dinheiro grande em paraísos fiscais
em atividades que a classe média, de tão manipulada e apaixonada, não vê nem
como corrupção nem como crime. Como se vê, é um caso de paixão cega e
adolescente de nossa classe média pelos endinheirados. Esse amor não
correspondido vale todos os sacrifícios.
Até há muito pouco tempo, aliás, o
crime de corrupção era exclusivo do agente do Estado, como se não se cometesse
corrupção no mercado. A sociedade exclusiva é para esse punhado de
endinheirados que, inclusive, começa a morar fora do país de modo a externar
para as classes que aqui ficam o custo social da rapina. É aqui que entra o
liberalismo brasileiro e seu trabalho de travestir a rapina em princípio moral.
Em vários lugares do mundo o
liberalismo fez parte de um longo processo de efetivo aprendizado moral. Daí a
íntima relação desses princípios com o direito moderno. Foi o direito moderno
que logrou institucionalizar os princípios liberais representando um ganho
civilizacional de enormes proporções: ao invés apenas da força nua e crua, deve
preponderar também o que é "justo".
Essa definição do que é
"justo" também se enriqueceu historicamente. Ele começa com as
garantias civis, se alonga nas garantias políticas e se aprofunda nas garantias
sociais do indivíduo de modo a lhe garantir real igualdade de oportunidades.
A história do liberalismo é bela.
Ela conta nosso afastamento da barbárie do "cada um por si" e concebe
a ideia do progressivo aprendizado moral da experiência humana em sociedade.
Afinal, moral não é "moralismo". Ao contrário, na moralidade as
convenções sociais e os afetos são reconstruídos e modificados pela reflexão.
Moralidade é, antes de tudo, a possibilidade de aprendizado, ou seja, a
possibilidade de nos tornarmos melhores do que somos.
No seu sentido mais elevado de
"interesse próprio bem compreendido", como em Tocqueville, o
liberalismo nos ensina a ver que até o egoísmo pode ser inteligente, ao
perceber que garantir vida digna a todos significa garantir vida digna para nós
mesmos. Se todos têm uma chance real, então não preciso, por exemplo, andar de
carro blindado como até a classe média brasileira está começando a fazer (como
mostram resultados parciais de pesquisa em andamento).
Confesso, caro leitor, que me
sinto um liberal desse último tipo: cioso de meu espaço individual, mas
compreendendo que todos têm que ter uma chance real de vida digna. Franklin D.
Roosevelt foi um liberal desse tipo também. E logrou, por conta disso, transformar
os Estados Unidos, tornando-os um país muito menos desigual e injusto do que
era. Até hoje, nos EUA, "liberal" é quem tem esse tipo de consciência
social.
Se em outros países o liberalismo
representou um processo de aprendizado "moral", no Brasil ele sempre
foi "amoral", "pragmático" e "instrumental". Em
português claro: ele só serviu para legitimar os interesses do dinheiro.
O exemplo de Marcus –poderia ser o
de qualquer outro típico liberal brasileiro– é perfeito. A origem de todo mal
para ele é o "Poder Executivo" que, supostamente, manda em tudo.
Obviamente, quando o Poder Executivo vende a riqueza nacional a preço de
banana, aceita moeda podre e ainda privatiza com dinheiro público do BNDES é
liberal e bom. Mas ficou provado que a presidência no Brasil exige mais que
dinheiro para ser conquistada. O Poder Executivo foi o que restou de acesso dos
70% de brasileiros não privilegiados ao poder. Daí o ataque do liberalismo
tupiniquim a ele.
ILIBERALISMO
Um Congresso, por sua vez, que
possa ser parcialmente comprado pelo dinheiro e que reflita os interesses de
quem pagou a eleição já está curado do mal do "iliberalismo". A
recusa de taxação dos mais ricos torna-se a pauta "liberal" que
afronta o Executivo supostamente todo-poderoso e que manda em tudo.
Ora, se mandasse em tudo não seria
tão pressionado pelos lobbies organizados. É que a estratégia aqui, leitor, é
tornar invisível o poder econômico dos oligopólios e sua contraparte no
Congresso e na mídia. O nosso liberalismo pragmático tem que esconder a
verdadeira fonte de poder entre nós de modo a bater no espantalho de sempre: a
"corrupção seletiva".
Minha tese inclusive é a de que
não interessa a esses grupos econômicos e seus pares no Congresso e na mídia
nem acabar nem mitigar a corrupção no Brasil, mas, ao contrário, sempre tê-la à
mão para combater o verdadeiro inimigo: o partido da sociedade inclusiva.
Vamos refletir juntos, leitor.
Como Marcus lembra bem em seu texto, as mudanças efetivas são sempre
institucionais. Somente novas práticas institucionais podem mudar as pessoas.
Afinal, ninguém é infalível. Não é, então, muitíssimo estranho que se fale tão
pouco em uma reforma política profunda que torne a relação entre a economia e a
política mais transparente –que é o que importa no combate à corrupção– e se
fale tão somente em "pessoas" e "partidos" específicos?
É que a "fulanização" da
corrupção só serve à sua continuidade. Se o foco se deslocar para uma reforma
política profunda, os endinheirados e seus amigos da mídia conservadora perdem
seu filão. Pense comigo: e se depois de Getúlio, Jango, Lula e Dilma –os alvos
da "corrupção seletiva" no passado e no presente– vier outro
representante da sociedade inclusiva? Como a rapinagem econômica e seu braço
midiático vão destruir o adversário? Como iriam legitimar de outro modo a
drenagem dos recursos de todos – via mercado e Estado – para seus bolsos?
O combate à "corrupção
seletiva" –que como sabemos blinda alguns políticos e persegue outros
arbitrariamente– confere à rapinagem a "aparência" de luta por algo
importante para todos. É nisso que somos feitos de tolos. Nesse contexto,
leitor e leitora, confie em mim quando lhe digo que um debate sério no Brasil
sobre a corrupção dificilmente existirá. A manipulação do tema da corrupção é o
verdadeiro núcleo da legitimação do poder no Brasil.
O nosso liberalismo instrumental é
a "tropa de choque" intelectual desse esquema. Por conta disso é
fácil desmontá-lo. Basta mostrar a distância entre o dito e a realidade. A
defesa dos direitos e garantias individuais é a base do liberalismo, como
Marcus reconhece. Assim como o liberalismo, o direito passou por profunda
evolução. No começo era o direito "material" do passado, decidido por
circunstâncias políticas de ocasião. Nesse caso, não há "justiça" e
não há "direito" posto que o que decide o julgado é a
"força" maior ou menor dos contendores. Dois mil anos de aprendizado
histórico levaram ao "direito formal", no qual o procedimento, as
garantias legais e o contraditório devem evitar que a "força" e as
oscilações de ocasião predominem.
TIRO
Com Getúlio tivemos uma
"república do Galeão" com uma turma de militares mandando e
desmandando em tudo até provocar o tiro no coração do presidente eleito. A
legalidade e as garantias foram suspensas em nome do combate "sempre seletivo"
da corrupção. No caso, ficaria provado mais tarde que Getúlio não havia
enriquecido ilicitamente.
Hoje temos nova "república do
Galeão" que logrou suspender –com a pressão da mesma mídia de antes–
garantias básicas do direito moderno. Prende-se por meses a fio sem culpa
formada, e o habeas corpus –historicamente o fundamento da ordem jurídica
moderna– foi, na prática, suspenso. É aí que entra o "liberal
brasileiro". Como o liberal brasileiro é um "pragmático" que se
lixa para princípios, vale, inclusive, acabar com os princípios liberais se
eles são do inimigo.
Se defendi no meu livro "A
Tolice da Inteligência Brasileira" que somos todos feitos de tolos
por um punhado de endinheirados e seus aliados na política e na mídia, posto
que acreditamos no "complexo de vira-latas" que nos venderam – que
somos um povo de corruptos enquanto outros seriam honestos –, sou forçado a
reconhecer que nosso liberalismo não tem nenhum complexo. Ele "é"
vira-lata.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/02/1740875-o-partido-da-sociedade-para-poucos-jesse-souza-rebate-marcus-melo.shtml. Título original: 'O Partido da Sociedade para Poucos: Jessé Souza rebate Marcus Melo'.
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