terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

"Donos da verdade" e mundo virtual: a justiça não nasceu com as redes sociais

Já são muitos os estudos mostrando o grau de irracionalidade e histeria presentes em determinados comportamentos em redes sociais, onde, por exemplo, acusações (de fontes nem sempre identificadas) transformam-se em julgamentos sumários destruindo reputações. Vivemos tempos de justiceiros e moralistas de redes sociais. Eles estão sempre prontos a apontar o dedo. E quando os próprios processos judiciais passam a ter a sua dinâmica alimentada por vazamentos ilegais para a grande mídia, condenando antes do julgamento, aí a coisa torna-se explosiva. O absurdo caso descrito aí abaixo pelo jornalista Gilvandro Filho, envolvendo uma mãe e seu filho, é um exemplo paradigmático desses tempos que estamos a viver. Ele deveria servir, pelo menos, para que cada um refletisse sobre o seu comportamento na dita 'sociedade em rede'. 

Foto: facebook

Por Gilvandro Filho
A jornalista pernambucana Kiki Marinho passou por uma experiência dramática em um dos shopping centers mais modernos do Nordeste. O filhinho dela, Renato, de 7 anos, tem, como ela diz, associado à paralisia cerebral, um comprometimento comportamental chamado TOD – Transtorno Opositor Desafiador. Isto exige cuidados redobrados e, pelo grau de reação do garoto quando está em crise, às vezes tais cuidados são confundidos com outra coisa. Daí o risco sempre presente da má interpretação. Vez por outra as pessoas se sentem donas da verdade e julgam a mãe para “defender” o filho.
É quando entra em cena a irresponsabilidade dos que vivem atrás dos “Prêmios Esso de Rede Social”, dos que pensam que a justiça do mundo começou com o Facebook. Mais propriamente, a partir do momento em que elas próprios se cadastraram, compraram um smartphone bombado e saíram por aí distribuindo veredictos . Um homem – homem? – apareceu, fechou o problema, julgou a jornalista e decidiu aplicar a pena da hora: jogar tudo nas redes sociais.
A coragem e a lucidez com que a mãe Kiki reagiu ao “juiz” são as mesmas com que ela conta seu drama. Este drama, por sua vez, reflete um problema urbano atual e, infelizmente, cada vez mais corriqueiro. Algo que pode acontecer com todos nós. De repente, qualquer um pode ser julgado, condenado e, se não houver tempo e crença na defesa, executado à luz de um código perverso e ilegítimo.
Vale a pena ler todo o texto de Kiki, publicado em sua página do Facebook. Mas seguem três trechos bastante significativos. Além de servir de alerta a possíveis vítimas, serve também para, com alguma dose de humildade, vestirmos a carapuça e pensarmos melhor na hora de sair julgando as pessoas por aí. Que não sejamos também – o que é pior – algozes. Pela pressa e pela soberba.
1) “Estou tentando acalmar meu filho, por favor, não se meta, ele está no meio de uma crise histérica”, falava. Mas vieram duas seguranças e elas me pediram para acompanhá-las. Quando sai do banheiro havia uma pequena multidão. Nos cercaram, a mim e ao meu filho. Me agrediram verbalmente, botaram dedos na minha cara, me acusando de estar espancando o menino. ‘Ele está cheio de hematomas’, um homem disse puxando o braço de Renato e tirando fotos minhas e dele. ‘Tire as mãos do meu filho, pare de fotografar ele, caso contrário eu processo você”, falei. Então o homem começou a me ofender, dizendo que eu não era mãe, dizendo a Renato que ele ficasse ‘tranquilo’ porque eu seria presa, e Renato começou a chorar novamente, perguntando “minha mãe vai ser presa?”.
2) “(…) o homem – o mesmo das fotos – estava revoltado. Afirmava que ia postar fotos nas redes sociais me acusando de espancar o meu filho. Na hora o alertei que o uso indevido de imagem, bem como calúnia e difamação na internet, são crimes. E informei: “também vou fazer fotos suas, assim quando você postar as minhas terei como mandar a polícia atrás de você”. Foi aí que ele me ameaçou, disse que iria me bater. Peguei meu celular e comecei a fotografá-lo e quando viu que eu estava tirando fotos dele, desferiu um golpe.”

3) “Durante as duas horas que fiquei chorando no SAC, me sentindo humilhada e impotente, lembrava da mulher que foi apedrejada até a morte no sul do País porque o ‘tribunal de rua’ achou que ela era uma suposta sequestradora de crianças. As pessoas hoje se acham detentoras da moral, da justiça e da comunicação – com seus celulares em punho e contas em redes sociais, julgando e condenando quem quer que passe pela frente.”
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Fonte: http://www.gilvandrofilho.com.br/

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