terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Educação, formação profissional e professores

Extratos de uma lúcida entrevista com José Carlos Libâneo, uma das principais referências brasileiras na área da Pedagogia, concedida à Revista Pensar a Prática. 



Professor Libâneo, num momento em que se fala muito em crise de paradigmas científicos, morais, éticos e na própria crise da educação, que papel a escola deve desempenhar no mundo contemporâneo? 

Libâneo: Meu ponto de vista é o de que o mundo contemporâneo pede uma participação ainda maior da escola. Se valorizávamos a escola num momento em que tínhamos mais certezas em relação aos seus objetivos pedagógicos e políticos, especialmente na luta contra as desigualdades e a marginalização social, hoje ela aumenta de importância. O mundo de hoje passa por transformações profundas nas esferas da economia, da política, da cultura, da ciência. Do lado econômico conjugam-se os avanços científicos e tecnológicos na microeletrônica, bioenergia, informática e meios de comunicação, com a globalização da economia que é, na verdade, a mundialização do capitalismo. Essa associação entre ciência e técnica acabaram por propiciar mudanças drásticas nos processos de produção e transformações nas condições de vida e de trabalho em todos os setores da atividade humana.
Essas mudanças mexem diretamente com a escola. Mudanças na produção afetam a organização do trabalho e o perfil de trabalhador. Com as transformações técnicas (informatização, sistemas de comunicação, maior automação), modificam-se as profissões, reduz-se o trabalho manual, aumenta-se a necessidade de trabalhadores com mais conhecimento e melhor preparo técnico, de um trabalhador com mais cultura, mais polivalente, mais flexível. É evidente que tudo isso implica em valorizar a educação geral, propiciar novas habilidades cognitivas e competências sociais e pessoais. É esse tipo de escola que o capitalismo está precisando, uma escola com objetivos mais compatíveis com os interesses do mercado. No meu entender, os trabalhadores também precisam de novas bases para o ensino, inclusive levando em conta essas mudanças de que estou falando, mas de um ensino orientado por uma pedagogia da emancipação.
A vida contemporânea afeta as práticas de convivência humana, as pessoas estão mais isoladas e mais egoístas, há muito mais violência, as crianças estão mais impacientes e mais dispersivas na sala de aula. Outra coisa: hoje estamos cercados de informação via meios de comunicação, por causa dela compramos certas coisas e não outras, ligamos determinado programa de televisão, compramos certas marcas de tênis, de roupa, apoiamos o candidato que tem mensagens mais convincentes sejam elas verdadeiras ou não. Ela desperta nas pessoas necessidades e desejos que muitas vezes nem podem ser satisfeitos e isso pode gerar revolta, frustração.
Estou dizendo essas coisas para insistir nessa ideia de que a informação é uma força poderosa que nos domina e domina especialmente a grande maioria das pessoas que está afastada do conhecimento. Porque informação e conhecimento não são a mesma coisa. O conhecimento é o que possibilita a liberdade intelectual e política para as pessoas darem significado à informação, isto é, julgá-la criticamente e tomar decisões mais livres e mais acertadas.

Você, então, continua valorizando a escola, mesmo neste momento de crise da educação. Que prioridades precisam ser atendidas pela escola dentro de uma proposta de educação? 

Libâneo: Eu venho propondo quatro objetivos para a escola de hoje. Vou nomeá-los em seqüência, mas eles formam uma unidade, a realização de um depende da realização dos outros. O primeiro deles é o de preparar os alunos para o processo produtivo e para a vida numa sociedade tecno-científica-informacional. Significa preparar para o trabalho e também para as formas alternativas do trabalho. Para isso, é preciso investir na formação geral, isto é, no domínio de instrumentos básicos da cultura e da ciência e das competências tecnológicas e habilidades técnicas requeridas pelos novos processos sociais e cognitivos. Na prática, refiro-me a conteúdos (conhecimentos, conceitos, habilidades, valores, atitudes) que propiciem uma visão de conjunto das coisas, capacidade de tomar decisões, de fazer análises globalizantes de interpretar informações, de trabalhar em equipes interdisciplinares etc.
Em segundo lugar, proponho o objetivo de proporcionar meios de desenvolvimento de capacidades cognitivas e operativas, ou seja, ajudar os alunos nas competências do pensar autônomo, crítico e criativo. Este é o ponto central do ensino atual, que deve ser considerado em estreita relação com os conteúdos, pois é pela via dos conteúdos que os alunos desenvolvem a capacidade de aprender, de desenvolver os próprios meios de pensamento, de buscar informações.
O terceiro objetivo é a formação para a cidadania crítica e participativa. As escolas precisam criar espaços de participação dos alunos dentro e fora da sala de aula em que exercitem a cidadania crítica. É preciso retomar iniciativas de organização dos alunos dentro da escola, inclusive para uma ação fora da escola, na comunidade. Insisto na ideia de uma coisa organizada, orientada pela escola, em que os alunos possam praticar democracia, iniciativa, liderança, responsabilidade.
O quarto objetivo é a formação ética. É urgente que os diretores, coordenadores e professores entendam que a educação moral é uma necessidade premente da escola atual. Não estou pregando o moralismo, a doutrinação. Estou falando de uma prática de gestão, de um projeto pedagógico, de um planejamento curricular, que programe o ensino do pensar sobre valores. Minha proposta é a formulação intencional, coletiva, de estratégias dirigidas ao ensino das competências do pensar no âmbito da educação moral, da tomada de decisões. Penso que um bom começo seria retomar nas escolas uma prática muito comum: orientadores educacionais trabalham com grupos de dez/quinze alunos nas chamadas “sessões de orientação em grupo” onde se debatiam questões morais: relacionamento com os colegas, sexo e namoro, justiça, honestidade etc. É importante que eu diga que competências éticas, de valorar, decidir, agir, têm a ver radicalmente com a prática. Você aprende a ser justo não apenas ouvindo alguém dizer o que é justiça mas praticando justiça no cotidiano, em cada momento e lugar. Por isso, é fundamental o projeto pedagógico, porque ele expressa as intenções da direção e dos professores, quer dizer, os propósitos educativos da equipe em relação aos objetivos comuns, à organização da escola, à disciplina e também aos objetivos e práticas no campo ético: a solidariedade, o respeito às diferenças e à diversidade cultural, a justiça, a honestidade, a preservação ambiental, a paz, a busca da qualidade da vida.
São algumas pistas, muito simples, mas que, na minha opinião, são pontos mínimos de um programa assertivo. Em resumo, eu proponho investir na capacitação efetiva para empregos reais e na formação do sujeito político socialmente responsável. 


Você parece um tanto contrariado com os rumos do construtivismo. Qual é sua opinião a esse respeito? E a teoria da inteligência emocional tem futuro entre os educadores? 

Libâneo: Não sou contra o construtivismo, mas contra sua oficialização e sua banalização. O construtivismo é uma concepção psicológica de desenvolvimento e aprendizagem que acentua a construção do conhecimento pelo aluno, a relação ativa entre o aluno e o objeto de conhecimento, a importância da construção das estruturas cognitivas. É uma teoria importante e sem dúvida muito útil aos professores. O problema é achar que o construtivismo resolve todos os males pedagógicos da escola. A professora Marilia Miranda, da UFG, tem estudado os exageros e os riscos da adoção do construtivismo no Brasil. Uma de suas críticas principais é que uma versão atual do construtivismo transforma uma concepção psicológica de inteligência em princípio educativo, ou seja, estaria de volta o “psicologismo” em educação. 
A difusão dessa concepção é tão grande que alguns Estados oficializaram o construtivismo. Em muitos lugares fala-se aos professores para jogar fora tudo o que ele sabe e faz, porque agora chegou o construtivismo. Os professores passam a entender que o método agora é trabalhar com sucata, que não é o professor que ensina, é o aluno que constrói seu conhecimento, que agora não é mais necessário livro didático porque o que importa é o saber da vida da criança etc. Eu não acho isso certo. Sei que há muitos intelectuais sérios que têm influenciado os professores com seus livros e palestras, mas é preciso que prestem atenção no que os professores fazem, com o que dizem e com o mundo cultural da escola e do professor. Por exemplo, quando se diz que a criança aprende fazendo, que ela é que constrói seu conhecimento, o professor tem uma boa justificativa para livrar-se do peso de seu despreparo teórico e profissional. Agora não precisa mais preocupar-se com conteúdo, o professor não precisa mais ter autoridade na sala porque o que ele deve fazer é só orientar os alunos. Acho que não é assim que se faz uma escola e um ensino de qualidade.
Quanto à teoria da inteligência emocional, é uma teoria recente difundida largamente por um autor chamado Daniel Goleman. O título do livro diz assim: Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o que é ser inteligente. Ele diz que os nossos sentimentos precisam ser considerados em complementaridade com a nossa inteligência. Isso não é novidade, Piaget já havia assinalado que afetividade e inteligência são duas faces da atividade cognitiva, embora uma não se reduza a outra. O problema que eu vejo é o modismo e o reducionismo, de achar que agora não precisa muito conteúdo, nem muita disciplina, o que precisa é que as crianças sejam felizes, que expressem seus sentimentos, que só vale o que dá prazer. De repente os professores começam a dar explicações fáceis ao insucesso escolar, às dificuldades dos alunos com a aprendizagem, achando que isso está ligado aos sentimentos, às emoções deixando de lado o papel do ensino, dos conteúdos, da escola. Isso eu não acho certo.

Ao analisar os conteúdos, as metodologias e as diretrizes didáticas sugeridas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, que avaliação o senhor faz do ponto de vista da didática? 

Libâneo: Eu falava que a profissionalização do professor é uma questão prioritária. Há uma fragilidade muito grande do sistema de formação. Minha impressão é que em todo o país os professores vêm recebendo uma formação profissional muito precária nas disciplinas que irão lecionar e no “saber ensinar”. A cultura geral do professorado é frágil. É claro que tudo isso tem a ver diretamente com a descaracterização da profissão, inclusive pelas condições de trabalho, salário, jornada, carreira. Então, minha primeira preocupação nem é avaliar os conteúdos e as metodologias sugeridos pelos PCNs, mas saber se os professores estão preparados para entender os PCNs e trabalhar com os PCNs. Então, antes ou junto com a implantação dos PCNs, eu penso que seria necessário um plano nacional de requalificação profissional de professores, decisões convincentes sobre piso salarial de professores, plano de carreira, sistema nacional de formação inicial e continuada, formas de acompanhamento do processo de implementação, alocação de recursos para ações de formação e requalificação.
Agora, em relação à didática, acho essa disciplina indispensável na formação do docente. Para mim, o domínio da didática é crucial, didática e prática de ensino junto. Não adianta apenas o professor ter consciência política, participar dos sindicatos. O professor precisa dominar e atualizar-se nos conceitos, noções, procedimentos ligados à matéria (ou matérias, no caso do professor das séries iniciais) e precisa “saber fazer”, ter capacidade operatória que é saber definir objetivos de aprendizagem, saber selecionar atividades adequadas às características da classe, saber variar situações de aprendizagem, saber avaliar aprendizagens nas várias disciplinas, saber analisar resultados e determinar causas do fracasso, saber participar de uma reunião, ter manejo de classe, saber usar autoridade, saber escutar, saber diagnosticar dificuldades dos alunos. Acho que as faculdades e cursos de licenciatura não estão ensinando essas coisas. Atualmente poucos professores dos futuros professores têm experiência de magistério com crianças e jovens e se perdem na hora de trabalhar o “saber fazer” docente.
Então, me parece que o desafio dos cursos de formação de professores é este: colocar na sala de aula professores inteligentes e práticos, isto é, capazes de dominar a situação de trabalho com boas soluções, com esperteza, com boas estratégias. Ser inteligente é você usar o conhecimento de maneira útil pertinente, ter soluções, ter ideias, ter senso prático... Mas para isso, é preciso uma boa formação. Os professores precisam aprender a buscar informação, adquirir ferramentas conceituais para compreender a realidade, ampliar sua cultura geral, aprender a lidar competentemente com as práticas de ensinar. São questões da didática. Isso precisa estar presente na formação inicial, feita nos cursos de formação, e na formação continuada, feita nas próprias escolas ou partir dos problemas apontados nas escolas.
Também acho necessário que os cursos de formação e as escolas planejem estratégias de mudança na mentalidade dos professores em relação às formas de trabalho. As transformações na ciência, na noção de conhecimento e do processo do conhecimento estão afetando muito os métodos e procedimentos de ensino. Essa mudança de mentalidade precisa começar na própria organização pedagógica e curricular, nas formas de gestão da escola, na elaboração do projeto pedagógico. Os professores mudarão sua maneira de ensinar à medida que vivenciarem novas maneiras de aprender. Por isso acho importante a formação continuada, na própria escola. Esse é um trabalho conjunto da escola, em que o coordenador pedagógico tem um papel crucial. Todas as escolas precisam ter um coordenador pedagógico muito bem formado para poder ajudar os professores a pensar sua prática, a estudar, tendo como objeto de estudo tanto as ações que já realiza quanto a relação existente entre esse objeto de conhecimento (o ensino) e seus próprios processos de aprendizagem. 

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Fonte: Revista Pensar a Prática - https://www.revistas.ufg.br

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