Extratos de uma lúcida entrevista com José Carlos Libâneo, uma das principais referências brasileiras na área da Pedagogia, concedida à Revista Pensar a Prática.
Professor
Libâneo, num momento em que se fala muito em crise de paradigmas científicos,
morais, éticos e na própria crise da educação, que papel a escola deve
desempenhar no mundo contemporâneo?
Libâneo: Meu ponto de vista é o de que o mundo
contemporâneo pede uma participação ainda maior da escola. Se valorizávamos a
escola num momento em que tínhamos mais certezas em relação aos seus objetivos
pedagógicos e políticos, especialmente na luta contra as desigualdades e a
marginalização social, hoje ela aumenta de importância. O mundo de hoje passa
por transformações profundas nas esferas da economia, da política, da cultura,
da ciência. Do lado econômico conjugam-se os avanços científicos e tecnológicos
na microeletrônica, bioenergia, informática e meios de comunicação, com a
globalização da economia que é, na verdade, a mundialização do capitalismo.
Essa associação entre ciência e técnica acabaram por propiciar mudanças
drásticas nos processos de produção e transformações nas condições de vida e de
trabalho em todos os setores da atividade humana.
Essas mudanças mexem diretamente com a escola.
Mudanças na produção afetam a organização do trabalho e o perfil de
trabalhador. Com as transformações técnicas (informatização, sistemas de
comunicação, maior automação), modificam-se as profissões, reduz-se o trabalho
manual, aumenta-se a necessidade de trabalhadores com mais conhecimento e
melhor preparo técnico, de um trabalhador com mais cultura, mais polivalente,
mais flexível. É evidente que tudo isso implica em valorizar a educação geral,
propiciar novas habilidades cognitivas e competências sociais e pessoais. É
esse tipo de escola que o capitalismo está precisando, uma escola com objetivos
mais compatíveis com os interesses do mercado. No meu entender, os
trabalhadores também precisam de novas bases para o ensino, inclusive levando
em conta essas mudanças de que estou falando, mas de um ensino orientado por
uma pedagogia da emancipação.
A vida contemporânea afeta as práticas de
convivência humana, as pessoas estão mais isoladas e mais egoístas, há muito
mais violência, as crianças estão mais impacientes e mais dispersivas na sala
de aula. Outra coisa: hoje estamos cercados de informação via meios de
comunicação, por causa dela compramos certas coisas e não outras, ligamos determinado
programa de televisão, compramos certas marcas de tênis, de roupa, apoiamos o
candidato que tem mensagens mais convincentes sejam elas verdadeiras ou não.
Ela desperta nas pessoas necessidades e desejos que muitas vezes nem podem ser
satisfeitos e isso pode gerar revolta, frustração.
Estou dizendo essas coisas para insistir nessa ideia
de que a informação é uma força poderosa que nos domina e domina especialmente
a grande maioria das pessoas que está afastada do conhecimento. Porque
informação e conhecimento não são a mesma coisa. O conhecimento é o que
possibilita a liberdade intelectual e política para as pessoas darem
significado à informação, isto é, julgá-la criticamente e tomar decisões mais
livres e mais acertadas.
Você, então,
continua valorizando a escola, mesmo neste momento de crise da educação. Que
prioridades precisam ser atendidas pela escola dentro de uma proposta de
educação?
Libâneo: Eu venho propondo quatro objetivos para a
escola de hoje. Vou nomeá-los em seqüência, mas eles formam uma unidade, a
realização de um depende da realização dos outros. O primeiro deles é o de
preparar os alunos para o processo produtivo e para a vida numa sociedade
tecno-científica-informacional. Significa preparar para o trabalho e também
para as formas alternativas do trabalho. Para isso, é preciso investir na
formação geral, isto é, no domínio de instrumentos básicos da cultura e da
ciência e das competências tecnológicas e habilidades técnicas requeridas pelos
novos processos sociais e cognitivos. Na prática, refiro-me a conteúdos
(conhecimentos, conceitos, habilidades, valores, atitudes) que propiciem uma
visão de conjunto das coisas, capacidade de tomar decisões, de fazer análises
globalizantes de interpretar informações, de trabalhar em equipes
interdisciplinares etc.
Em segundo lugar, proponho o objetivo de
proporcionar meios de desenvolvimento de capacidades cognitivas e operativas,
ou seja, ajudar os alunos nas competências do pensar autônomo, crítico e
criativo. Este é o ponto central do ensino atual, que deve ser considerado em
estreita relação com os conteúdos, pois é pela via dos conteúdos que os alunos
desenvolvem a capacidade de aprender, de desenvolver os próprios meios de
pensamento, de buscar informações.
O terceiro objetivo é a formação para a cidadania
crítica e participativa. As escolas precisam criar espaços de participação dos
alunos dentro e fora da sala de aula em que exercitem a cidadania crítica. É
preciso retomar iniciativas de organização dos alunos dentro da escola,
inclusive para uma ação fora da escola, na comunidade. Insisto na ideia de uma
coisa organizada, orientada pela escola, em que os alunos possam praticar
democracia, iniciativa, liderança, responsabilidade.
O quarto objetivo é a formação ética. É urgente que
os diretores, coordenadores e professores entendam que a educação moral é uma
necessidade premente da escola atual. Não estou pregando o moralismo, a
doutrinação. Estou falando de uma prática de gestão, de um projeto pedagógico,
de um planejamento curricular, que programe o ensino do pensar sobre valores.
Minha proposta é a formulação intencional, coletiva, de estratégias dirigidas
ao ensino das competências do pensar no âmbito da educação moral, da tomada de
decisões. Penso que um bom começo seria retomar nas escolas uma prática muito comum:
orientadores educacionais trabalham com grupos de dez/quinze alunos nas
chamadas “sessões de orientação em grupo” onde se debatiam questões morais:
relacionamento com os colegas, sexo e namoro, justiça, honestidade etc. É
importante que eu diga que competências éticas, de valorar, decidir, agir, têm
a ver radicalmente com a prática. Você aprende a ser justo não apenas ouvindo
alguém dizer o que é justiça mas praticando justiça no cotidiano, em cada
momento e lugar. Por isso, é fundamental o projeto pedagógico, porque ele
expressa as intenções da direção e dos professores, quer dizer, os propósitos
educativos da equipe em relação aos objetivos comuns, à organização da escola,
à disciplina e também aos objetivos e práticas no campo ético: a solidariedade,
o respeito às diferenças e à diversidade cultural, a justiça, a honestidade, a
preservação ambiental, a paz, a busca da qualidade da vida.
São algumas pistas, muito simples, mas que, na
minha opinião, são pontos mínimos de um programa assertivo. Em resumo, eu
proponho investir na capacitação efetiva para empregos reais e na formação do
sujeito político socialmente responsável.
Você parece um
tanto contrariado com os rumos do construtivismo. Qual é sua opinião a esse
respeito? E a teoria da inteligência emocional tem futuro entre os
educadores?
Libâneo: Não sou contra o construtivismo, mas
contra sua oficialização e sua banalização. O construtivismo é uma concepção
psicológica de desenvolvimento e aprendizagem que acentua a construção do
conhecimento pelo aluno, a relação ativa entre o aluno e o objeto de
conhecimento, a importância da construção das estruturas cognitivas. É uma
teoria importante e sem dúvida muito útil aos professores. O problema é achar
que o construtivismo resolve todos os males pedagógicos da escola. A professora
Marilia Miranda, da UFG, tem estudado os exageros e os riscos da adoção do
construtivismo no Brasil. Uma de suas críticas principais é que uma versão
atual do construtivismo transforma uma concepção psicológica de inteligência em
princípio educativo, ou seja, estaria de volta o “psicologismo” em
educação.
A difusão dessa concepção é tão grande que alguns
Estados oficializaram o construtivismo. Em muitos lugares fala-se aos
professores para jogar fora tudo o que ele sabe e faz, porque agora chegou o
construtivismo. Os professores passam a entender que o método agora é trabalhar
com sucata, que não é o professor que ensina, é o aluno que constrói seu
conhecimento, que agora não é mais necessário livro didático porque o que
importa é o saber da vida da criança etc. Eu não acho isso certo. Sei que há
muitos intelectuais sérios que têm influenciado os professores com seus livros
e palestras, mas é preciso que prestem atenção no que os professores fazem, com
o que dizem e com o mundo cultural da escola e do professor. Por exemplo,
quando se diz que a criança aprende fazendo, que ela é que constrói seu
conhecimento, o professor tem uma boa justificativa para livrar-se do peso de
seu despreparo teórico e profissional. Agora não precisa mais preocupar-se com
conteúdo, o professor não precisa mais ter autoridade na sala porque o que ele
deve fazer é só orientar os alunos. Acho que não é assim que se faz uma escola
e um ensino de qualidade.
Quanto à teoria da inteligência emocional, é uma
teoria recente difundida largamente por um autor chamado Daniel Goleman. O
título do livro diz assim: Inteligência emocional: a teoria revolucionária que
define o que é ser inteligente. Ele diz que os nossos sentimentos precisam ser
considerados em complementaridade com a nossa inteligência. Isso não é
novidade, Piaget já havia assinalado que afetividade e inteligência são duas
faces da atividade cognitiva, embora uma não se reduza a outra. O problema que
eu vejo é o modismo e o reducionismo, de achar que agora não precisa muito
conteúdo, nem muita disciplina, o que precisa é que as crianças sejam felizes,
que expressem seus sentimentos, que só vale o que dá prazer. De repente os
professores começam a dar explicações fáceis ao insucesso escolar, às
dificuldades dos alunos com a aprendizagem, achando que isso está ligado aos
sentimentos, às emoções deixando de lado o papel do ensino, dos conteúdos, da
escola. Isso eu não acho certo.
Ao analisar os
conteúdos, as metodologias e as diretrizes didáticas sugeridas pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais, que avaliação o senhor faz do ponto de vista da
didática?
Libâneo: Eu falava que a profissionalização do
professor é uma questão prioritária. Há uma fragilidade muito grande do sistema
de formação. Minha impressão é que em todo o país os professores vêm recebendo
uma formação profissional muito precária nas disciplinas que irão lecionar e no
“saber ensinar”. A cultura geral do professorado é frágil. É claro que tudo
isso tem a ver diretamente com a descaracterização da profissão, inclusive
pelas condições de trabalho, salário, jornada, carreira. Então, minha primeira
preocupação nem é avaliar os conteúdos e as metodologias sugeridos pelos PCNs,
mas saber se os professores estão preparados para entender os PCNs e trabalhar
com os PCNs. Então, antes ou junto com a implantação dos PCNs, eu penso que
seria necessário um plano nacional de requalificação profissional de professores,
decisões convincentes sobre piso salarial de professores, plano de carreira,
sistema nacional de formação inicial e continuada, formas de acompanhamento do
processo de implementação, alocação de recursos para ações de formação e
requalificação.
Agora, em relação à didática, acho essa disciplina
indispensável na formação do docente. Para mim, o domínio da didática é
crucial, didática e prática de ensino junto. Não adianta apenas o professor ter
consciência política, participar dos sindicatos. O professor precisa dominar e
atualizar-se nos conceitos, noções, procedimentos ligados à matéria (ou
matérias, no caso do professor das séries iniciais) e precisa “saber fazer”,
ter capacidade operatória que é saber definir objetivos de aprendizagem, saber
selecionar atividades adequadas às características da classe, saber variar
situações de aprendizagem, saber avaliar aprendizagens nas várias disciplinas,
saber analisar resultados e determinar causas do fracasso, saber participar de
uma reunião, ter manejo de classe, saber usar autoridade, saber escutar, saber
diagnosticar dificuldades dos alunos. Acho que as faculdades e cursos de
licenciatura não estão ensinando essas coisas. Atualmente poucos professores
dos futuros professores têm experiência de magistério com crianças e jovens e
se perdem na hora de trabalhar o “saber fazer” docente.
Então, me parece que o desafio dos cursos de
formação de professores é este: colocar na sala de aula professores
inteligentes e práticos, isto é, capazes de dominar a situação de trabalho com
boas soluções, com esperteza, com boas estratégias. Ser inteligente é você usar
o conhecimento de maneira útil pertinente, ter soluções, ter ideias, ter senso
prático... Mas para isso, é preciso uma boa formação. Os professores precisam
aprender a buscar informação, adquirir ferramentas conceituais para compreender
a realidade, ampliar sua cultura geral, aprender a lidar competentemente com as
práticas de ensinar. São questões da didática. Isso precisa estar presente na
formação inicial, feita nos cursos de formação, e na formação continuada, feita
nas próprias escolas ou partir dos problemas apontados nas escolas.
Também acho necessário que os cursos de formação e
as escolas planejem estratégias de mudança na mentalidade dos professores em
relação às formas de trabalho. As transformações na ciência, na noção de
conhecimento e do processo do conhecimento estão afetando muito os métodos e
procedimentos de ensino. Essa mudança de mentalidade precisa começar na própria
organização pedagógica e curricular, nas formas de gestão da escola, na
elaboração do projeto pedagógico. Os professores mudarão sua maneira de ensinar
à medida que vivenciarem novas maneiras de aprender. Por isso acho importante a
formação continuada, na própria escola. Esse é um trabalho conjunto da escola,
em que o coordenador pedagógico tem um papel crucial. Todas as escolas precisam
ter um coordenador pedagógico muito bem formado para poder ajudar os
professores a pensar sua prática, a estudar, tendo como objeto de estudo tanto
as ações que já realiza quanto a relação existente entre esse objeto de
conhecimento (o ensino) e seus próprios processos de aprendizagem.
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Fonte: Revista Pensar a Prática - https://www.revistas.ufg.br
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