Por Ana Macarini
Basta
fechar os olhos e evocar uma lembrança afetiva. Uma manhã morna num parque
cercado de eucaliptos úmidos, cujas folhas agulhadas ainda retêm gotículas da chuva
da noite. O toque da água fria do mar na pele aquecida pelo sol; os pés pisando
o chão de areia granulada, a onda quebrando contra o corpo, o mergulho. A
sensação de calor e deleite de estar envolvido pelos braços de alguém a quem
amamos; o calor do encontro entre os corpos, o perfume reconhecido, o ritmo dos
batimentos dentro do peito. Somos seres sensoriais, uma mistura de cheiros,
sons, imagens e texturas. E uma pergunta nos inquieta: tudo o que vemos,
ouvimos e sentimos existe de verdade? Ou é a nossa interpretação do mundo que
cria a realidade?
Segundo
Lacan, o real, o simbólico e o imaginário, estão de tal forma entrelaçados em
nossa estrutura psíquica que se um deles deixa de exercer força sobre os outros
dois, há um nó que se desmancha, os elos ficam soltos e caem apartados,
deixando-nos desestruturados, porém libertos. O real é o que já existia antes
de nós o interpretarmos; ele não depende de ninguém para se manifestar. O campo
do real é o campo da “coisa”; daquilo que é nomeável e escapa à simbolização.
Isto é, pode ser descrito por palavras. “Aconteça o que acontecer, amanhece”. O
real existe por si mesmo, escapa ao nosso desejo e ao nosso poder. Queira ou
não, o sol se põe e nasce. O instinto de sobrevivência pertence ao real. Diante
do perigo iminente reagimos, ficamos em alerta, prontos para enfrentar ou
fugir. O real, do ponto de vista da Psicanálise, é um conceito que produz uma
significação diferente do que denominamos realidade. Real não é a mesma coisa
que realidade. A realidade precisa dos três campos ou dimensões para existir. O
real não precisa dos outros campos, pois ele basta a si mesmo.
O imaginário é o real subvertido à nossa ordem, ambição ou
desejo. Por volta dos seis meses de idade, a criança consegue olhar sua imagem
num espelho e reconhecer-se como aquele que a contempla do outro lado. Essa
visão infantil de si mesmo é o nosso imaginário desenhando à nossa frente uma
reprodução de nós mesmos. Uma ideia perturbadora é a de considerar que a imagem
que vemos no espelho pode ser absolutamente diversa da imagem que o outro vê
quando olha para nós. Nunca saberemos como somos fisicamente, de fato, aos
olhos do outro. A coisa fica ainda mais complicada quando descobrimos que cada
um também nos vê de acordo com a sua simbologia ou perspectiva. Louco, né?
Ainda bem que é! Afinal, aquelas sardas que nos incomodam tanto podem ser o
nosso ponto de atração para o outro. A boca que achamos grande demais para o
nosso rosto pode ser vista como atraente, voluptuosa, sensual… Vai saber! Por
isso é tão comum implicarmos com a nossa imagem estampada numa foto. Quando
você se olha no espelho, e você faz isso com frequência, aquele ser ali do
outro lado já é meio familiar para você. Você já se acostumou com suas
imperfeições e assimetrias. Só que, no espelho, você vê a sua imagem invertida;
e, na foto, você vê o que os outros veem. Sim, está ficando cada vez mais
difícil! Mas, não se desespere… É assim para todo mundo.
Não menos desconcertante é a percepção da sua
voz! A voz é real certo? Mais ou menos. Quem nunca ficou impressionado ao ouvir
sua própria voz numa gravação? Aquela sensação de “Credo! Não acredito que
minha voz é assim!”. Então, acontece que é! A voz que ouvimos quando falamos,
não é a mesma voz que aquele (coitado ou abençoado!), que conversa conosco,
ouve! O som pode chegar aos nossos ouvidos de duas maneiras diferentes:
conduzido pelo ar ou pelos ossos. Na condução pelos ossos, a transmissão do som
vai das nossas cordas vocais para a cóclea, estrutura em forma de caracol,
localizada nas profundezas de nosso ouvido e responsável pela captação do som.
A frequência desses sons enviados por nossas cordas vocais é diminuída ao longo
do caminho e é por isso que nossa voz, quando gravada, nos parece mais aguda,
porque a ouvimos com a frequência de sons normais, pois são enviados pelo ar. E
é por isso que, de acordo com o professor de psicologia da Universidade de
Glasgow, pesquisador de percepções vocais, Pascal Belin, “nós nunca ouvimos
nossas vozes como as outras pessoas ouvem, por isso nossa surpresa ao ouvir uma
gravação”. A otorrinolaringologista Chris Chang, de Virgínia, EUA, endossa a
teoria do professor Belin e explica que quando ouvimos nossa voz gravada o
processo de recepção do som não tem mais a ver com a cóclea, mas com o ar. A
voz que ouvimos gravada é a voz que todas as outras pessoas ouvem. Portanto, se
você se diverte muito cantando no chuveiro é melhor não gravar a cantoria e
conservar a diversão.
Ainda na esfera do imaginário, nascem nossas demandas e, como consequência,
nossas frustrações. O anseio por carinho, afeto, reconhecimento e aceitação são
demandas essenciais que constituem a nossa natureza humana. Quando nossas
demandas são contempladas, somos felizes. A privação da demanda nos faz sentir
tristeza, dor e abandono. Esse caldo de satisfações e frustrações vai
constituindo a nossa maneira de ler, interpretar e interagir com o mundo e com
as pessoas nele inseridas. É por meio do simbólico que construímos nossas
relações. O simbólico é o campo da linguagem, das palavras, dos sons, conceitos
e ruídos que vão se transformando em símbolos à medida que os interpretamos. O
ser humano socializado aprende a adiar o desejo ou impedir a sua realização. O
processo de socialização baseia-se na castração do desejo para a realização da
convivência. No terreno do simbólico os desejos humanos incluem a realização
como pessoa e como profissional; além do desejo de descobrir, inventar, criar,
tomar iniciativa, participar, amar, compartilhar. A realização dos desejos
exige trabalho, persistência, perseverança, esperança, motivação; é um
processo, não acontece por magia ou milagre. Sua realização dependerá da
atuação em equipe das nossas potencialidades reais, mais a ousadia do
imaginário, a criatividade do simbólico e a plasticidade da perspectiva.
Cada
um de nós hierarquiza as três dimensões (real, imaginário e simbólico) de forma
diversa. Aquele que apresenta predominância do campo real será mais bem
sucedido em atividades que envolvam curar, construir, reparar. Essas pessoas
têm um mecanismo de funcionamento mais técnico, racional e objetivo. Se,
entretanto, a pessoa tiver predomínio de registros do campo imaginário, sua atuação
será extremamente eficiente em atividades voltadas para harmonização e
equilíbrio, quer seja do indivíduo ou do ambiente. Essas pessoas são mais
afetuosas e disponíveis emocionalmente. Se por outro lado, o campo do simbólico
predominar na estrutura psíquica do indivíduo, ele se voltará para atender a
sociedade no sentido de promover crescimento, realizações e terá ampliada a
capacidade para criar.
O real, o imaginário, o simbólico. Faces de nós mesmos que se
alternam a depender do quanto estamos aptos para atender e entender nossas
próprias demandas em conexão com as demandas do outro. Voltando a Lacan, temos
um nó formado por três elos que se apoiam e se conectam para que sejamos
capazes de mixar nossos registros e fazer uma interface, na constituição de uma
teia complexa de relação com o mundo. Somos algo semelhante àqueles globinhos
recobertos por retalhinhos de espelho. A cada sombra ou luz projetada,
exibiremos uma nova versão de nós mesmos que pode nos parecer estranha, mas
profundamente familiar ao outro e vice-versa. O fato é que nunca saberemos o
que somos na realidade aos olhos de quem convive conosco. A saída é olhar com
generosa atenção para o tipo de reação que provocamos. Talvez aí esteja a
chave. Não para resolver esse dilema. Mas para nos tornarmos menos distorcidos
e sedimentados. Afinal, generosidade é dar mais do que se espera de nós; é ir
além da expectativa do outro; é nos comprometermos por transformar esse nó em
laço. Afinal, independentemente da perspectiva, os laços são muito mais
interessantes e transformadores do que os nós.
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Fonte: http://www.contioutra.com/
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