Já lá vão alguns anos da publicação de 'A Invenção do Nordeste e Outras Artes', obra primorosa de Durval Muniz de Albuquerque Jr. O livro está esgotado, e está a merecer, com urgência, uma nova edição. Trabalho inovador em relação à interpretação da formação do Nordeste, não é, contudo, um texto que descura do aporte epistemológico (algo tão em voga nos dias atuais) para "cair nas graças". Resultado da sua tese de doutoramento em História, combina uma escrita segura, consistente, oferecendo, ao mesmo tempo, uma leitura fluida. Talvez fenômenos como o Movimento Maguebeat (posterior ao estudo de Durval), surgido em Recife, anteponha questões à 'Invenção do Nordeste'. Mas, da minha parte, é convicção que, além de o tempo reservar um lugar na galeria dos clássicos para a 'Invenção', teses suas são centrais para a compreensão da formação da ideia de Nordeste, onde as diversas artes têm um lugar de destaque. Aí inclua-se o romance, objeto desta postagem. Por outro lado, penso que, para os dias atuais no país, as páginas da 'Invenção" evidenciam algo como que uma espécie de "metodologia" acionada na formação identitária de uma população, agregando-a/unificando-a, e que, à escala nacional, foi responsável pela formação da ideia de povo brasileiro, que agora está em risco (ou talvez até mesmo já se dissolvendo - há quem comece a ver as coisas assim), por causa dos extremismos e da intolerância (e se calhar também em decorrência da acentuação da "racialização"). Enfim, a contribuição de 'A Invenção do Nordeste e Outras Artes' é inestimável. Segue aí abaixo um texto dando conta das suas teses em relação ao papel do romance na formação do Nordeste, e que aparece em um texto mais amplo na Base Maxwell-PUC/RJ: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/. A postagem é finalizada com a 'Incelença para uma terra que o sol matou', do mestre Elomar Figueira.
Pode-se afirmar
que, para o “romance de trinta” [1930], a decadência da sociedade patriarcal -
e sua conseqüente substituição pela sociedade urbano-industrial – foi o seu tema principal, tendo em vista que seus
autores eram, na maioria, descendentes das famílias tradicionais nordestinas
que passavam por um processo de certa marginalização. Este processo os levou a
tentativas de aproximação com o povo, utilizando temas e formas de expressão de
origem popular como forma de difundir as condições sociais pelas quais estavam
vivendo na época. De uma forma geral, os autores passaram a se identificar com
o sofrimento do povo e muitos deles assumiram a pretensão de ser seus porta-vozes,
numa postura comumente populista, que variava entre a denúncia das condições de
vida das classes populares e o louvor da tradicional dominação paternalista.
Apesar de ser um
tanto controverso defender a idéia de um estilo comum para os romancistas de
trinta, esta aproximação com as fontes populares estabeleceu uma comunhão de
características de certa forma “regional” entre eles. Este suposto “estilo
regional” buscou uma escrita próxima da fala do cotidiano, que, além de ter
sido uma forma de aproximação com o universo popular, serviu também como
estratégia para se afastar da linguagem - considerada por esses autores -
artificial, que vinha sendo desenvolvida pelos modernistas (do Sudeste). Para
eles, essa busca era um esforço na tentativa de fazer a linguagem voltar a ser
expressão do real, de descrever um mundo que fosse a imagem direta da
realidade, onde tudo parecesse claro e que transmitisse um sentido de imediato.
Uma tentativa de restabelecer um realismo - em detrimento das experimentações
modernistas -, no qual se visava suprimir a distância entre coisa e
significado, resgatando velhos sentidos que eram vistos como “naturais” e
“essenciais”.
Esse resgate de
antigos sentidos, dos velhos costumes da região, a postura de resistência
frente às inovações – tanto na escrita como nas coisas da vida cotidiana -,
revelam o caráter saudosista dessa produção romanesca. Sobre este assunto,
Albuquerque Jr. (2009, p. 114) coloca:
"Embora produto do olhar moderno, estes romances são nostálgicos em relação a uma visão naturalista e realista do real, em que tudo parecia claro, fixo, estável, e todas as hierarquias e ordenações no seu lugar. O que mais temem na modernidade é o dilaceramento, o conflito em torno do próprio espaço tido, até então, como referente natural e eterno. Não é por outro motivo que este romance tem como um dos seus temas constantes a luta pela terra, pelo poder sobre o espaço. As usinas e seu impulso expansionista, sua fome de terras, invadindo os bangüês, maculando os espaços sagrados dos antepassados, são o símbolo maior desse processo em que a terra deixa de ser repositório fixo de tradições e relações seculares de poder para se
tornar uma “vil mercadoria.”
Entre os
assuntos abordados pela produção romancesca de trinta, destacam-se alguns
“temas regionais”, tais como: a decadência da sociedade açucareira; os
conflitos entre o beatismo e o cangaço; o coronelismo e seu universo
(autoridade, disputa por terras, jagunços, etc.); e a seca e sua iminente
epopéia da retirada. Temas que já eram presentes na literatura popular, no
discurso político das oligarquias, nas cantorias e desafios dos cantadores, mas
que foram trabalhados pelos romancistas de uma forma que se tornaram espectros
de uma essência regional.
A seca foi um
tema importantíssimo, tendo em vista que foi o próprio fenômeno natural que deu
origem à concepção de uma região destacada das demais outras do país. A partir
dos romances, a imagem do Nordeste passou a ser pensada tomando a seca como
principal paisagem. A retirada do nordestino, uma conseqüência dela, era um
acontecimento que oferecia aos escritores uma verdadeira estrutura narrativa:
saída de um local infernal até a chegada ao paraíso, que se materializava no
litoral e, principalmente, nas terras mais ao sul. Para Albuquerque Jr. (2009,
p. 114):
"O romance de trinta institui uma
série de imagens em torno da seca que se tornaram clássicas e produziram uma
visibilidade da região à qual a produção subseqüente não consegue fugir.
Nordeste do fogo, da brasa, da cinza e do cinza, da galharia negra e morta, do
céu transparente, da vegetação agressiva, espinhosa, onde só o mandacaru,
o juazeiro e o papagaio são verdes. Nordeste das cobras, da luz que cega, da
poeira, da terra gretada, das ossadas de boi espalhadas pelo chão, dos
urubus, da loucura, da prostituição, dos retirantes puxando jumentos, das
mulheres com trouxas na cabeça
trazendo pela mão meninos magros e barrigudos, nordeste da despedida dolorosa da terra, de seus animais de estimação, da
antropofagia. Nordeste
da miséria, da fome, da sede, da
fuga para a detestada zona da cana ou para o Sul."
Outro tema importante,
principalmente no que se refere à criação de um “espaço da saudade”, foi o da
decadência da sociedade patriarcal açucareira. A derrocada desta sociedade
significou, para alguns autores, a perda do
“paraíso infantil”. O Nordeste
que foi traduzido por eles era aquele anterior às usinas, espaço onde todos
trabalhavam e ninguém passava fome, onde negros e senhores conviviam
“harmonicamente”, local que tinha feito a grandeza do Brasil através do açúcar.
Tal visão da região destacou de forma positiva uma sociedade altamente
hierarquizada, na qual as diferenças
sociais eram encobertas pelos mecanismos paternalistas, de relações pessoais,
mais determinadas pelo sentimento do que pela racionalidade. Os romances
produzidos sob esta perspectiva tenderam a potencializar uma leitura amena da escravidão, escondendo seus aspectos
hediondos. Eles também destacaram a arbitrariedade do emergente mundo burguês e
sua exploração do assalariamento, aspectos considerados negativos e que
reforçavam a defesa da velha estrutura patriarcal e escravista.
Os temas
estabelecidos pelo “romance de trinta” consolidaram características regionais
para o Nordeste com uma força muito grande de impregnação imagética. O sentido
de uma identidade nordestina fechada atribuída a este grupo de escritores veio
fortalecer a própria estratégia política dos discursos sobre a região, de
pensá-la (e sua produção cultural) como uma idéia coesa e possuidora de uma
essência generalizável. No entanto, é importante ressaltar que, embora tenham
muitas afinidades entre si, os autores possuem diferenças na forma de
interpretar a região, sendo, portanto, necessário destacar diferenças no
interior do próprio discurso tradicionalista para que ele não seja pensado como
um discurso de simplicidade homogênea. Dentre os romancistas classificados
neste grupo de escritores e que tomam o Nordeste como “região da saudade”, três
nomes se destacam: José Lins do Rego, José Américo de Almeida e Rachel de
Queiroz.
Se o “romance de
[19]30” foi talvez a mais importante representação artística de um Nordeste
como local da saudade, José Lins do Rego foi o escritor que encarnou mais
fortemente esta interpretação. Nascido na propriedade de seu pai (Engenho
Corredor), localizada no município de Pilar na Paraíba, ele passa a infância
envolto pelo universo da sociedade
açucareira, ambiente que o inspirou na criação
dos personagens dos seus
romances que constituíram
o chamado “Ciclo
da cana-de-açúcar”.
Diferentemente
do trabalho de Gilberto Freyre, de quem se tornou grande amigo e admirador a
partir de 1923 quando terminou a Faculdade de Direito do Recife, as ficções de
José Lins não são criadas a partir de uma pesquisa sociológica. São obras
construídas baseadas nos relatos que ouvia nos engenhos de sua meninice,
permeadas de recordações de seus primeiros anos de vida. Narrativas inspiradas
pelas suas memórias de infância, nas quais a vida idílica do engenho se
entrecruzava com as apreensões psicológicas que se deram desde a adolescência.
Histórias que evidenciam seu sofrimento diante do desmantelamento da sociedade
açucareira, seu território existencial que ruía com as transformações do país.
De uma forma
geral, os livros do “Ciclo da cana-de-açúcar” descrevem um processo de
destruição paralelo a um esforço de reconstrução deste território existencial.
Na sua escrita, José Lins denota uma vontade de reconstruir o passado que
viveu, para assim escapar do presente que vivia. Uma vontade de dar
continuidade ao ambiente da gente no meio da qual foi criado, de seus
antepassados. Como tem consciência da impossibilidade de tal desejo, o autor
fez de sua prosa um veículo de vingança contra os que contribuíram para a
dissolução das relações sociais tradicionais. Daí a presença de elementos da
velha sociedade patriarcal (o engenho, o senhor) sempre vivos, opondo-se a uma
nova realidade que emerge. Nova realidade que também é vingada aparecendo como
responsável por infortúnios da vida como doenças, melancolia, loucuras, etc.
Este confronto
entre velha ordem patriarcal (no seu caso,
a açucareira) versus a moderna
civilização burguesa marcou significantemente a obra do escritor. Seus
personagens foram criados quase como lamentos da disseminação da segunda em
detrimento da primeira. Em sua maioria, são homens incapazes (e incapacitados)
de transpor as fronteiras de seu (velho) mundo, com dificuldades de
comunicação, perante um (novo) sistema que parece estruturado para fazê-los
sofrer. Homens para os quais a realidade presente parece não existir, que vivem
no mundo das recordações, enquanto
assistem o seu mundo de fato diminuir, tornando-se sufocante. O embate é ainda
evidenciado quando o autor deixa transparecer também nos seus personagens uma
interpretação naturalista (congeneridade entre homem e meio) da vida, destacando neles a presença
de uma certa “natureza humana”,
com emoções primitivas,
naturais, e mesmo traços de irracionalidade que a civilização não conseguia
eliminar. Para José Lins, a superficialidade da civilização é que era incapaz
de traduzir a verdade do homem, sendo as máscaras burguesas o verdadeiro
empecilho para se descobrir a essência do indivíduo na sua relação com o
meio. Sobre este confronto, Albuquerque
Jr. (2009, p. 134-135). ainda coloca:
"Na obra de José Lins, a cidade
surge como o lugar do dezenraizamento; lugar a partir do qual projeta o espaço
nostálgico do engenho; lugar em que a miséria era maior e as injustiças mais gritantes que no
engenho; em que os códigos morais
tradicionais ruíam. Lugar traiçoeiro onde a lei e a disciplina vigiavam e
puniam aqueles homens acostumados com os
códigos lábeis e informais da sociedade patriarcal. Faltava ao pobre, na
cidade, alguém que velasse por ele, que o orientasse, que o controlasse de
forma paternal. A cidade era o lugar do conflito, do acirramento das contradições
entre patrões e empregados, protótipo das relações capitalistas que se
implantavam. Lugar onde se formavam as novas gerações de senhores, cujos
valores não mais se coadunavam com aqueles que fizeram a glória das
casas-grandes. José Lins atribui a este
despreparo das novas
gerações uma boa
parcela da responsabilidade pela decadência da sociedade
açucareira."
Igualmente
paraibano – nascido no município de Areia - e também filho de senhor de engenho
(de uma família de forte influência política), José Américo de Almeida foi
outro importante escritor a imprimir uma visão nostálgica para o Nordeste. No
entanto, apesar de ser um homem oriundo dos canaviais da zona da mata, elegeu o
sertão como espaço-modelo da região.
Através d’A Bagaceira, romance que o projeta para
todo o país, José Américo aborda o tema da retirada dos sertanejos para o brejo
(zona da mata), onde iam para trabalhar na colheita da cana, expondo os
conflitos que ocorriam entre eles e os brejeiros em decorrência de suas
diferenças. No livro, o autor expôs sua verve naturalista pela ênfase que dá ao
meio natural na construção de seus personagens. Partindo da falsa idéia da
ausência de escravidão no sertão, ele mostra o sertanejo como uma classe racial
superior, pois, além de “não ter sangue negro”, é o único tipo regional capaz
de vencer o problema das secas (problema natural que impedia a afirmação da
sociedade nordestina).
A Bagaceira é praticamente a obra que inaugura a tradição literária do romance
social nordestino, a qual estabelece a denúncia da miséria como regional e
espacial (muitas vezes escondendo as responsabilidades dos homens de poder). No
entanto, é uma obra um tanto ambígua em
relação ao Nordeste que deseja estabelecer. Nela – e também em outros romances
-, José Américo tenta conciliar padrões sociais tradicionais da região com a
modernização técnica da sociedade burguesa. Cria uma região não apenas como
espaço da memória, mas também tocada pela história, desde que fosse mantida a
estrutura social como sempre existiu. Sobre isto, Albuquerque Jr (2009, p.139)
comenta que:
"Para ele, a racionalidade burguesa
devia ser adotada como forma de sobrevivência e manutenção das relações sociais
e de poder. Conciliar o tradicional com o moderno era o único caminho para
evitar uma ruptura mais radical com o passado. O Nordeste devia se modernizar
sem perder o seu caráter, leia-se, sem ter modificadas as suas relações de
dominação. Uma modernização vinda de cima, feita por uma vanguarda bovarista
capaz de conciliar as vantagens da técnica, com os laços paternalistas que evitassem a emergência do conflito
social mais explicitado."
Rachel de Queiroz
é outra importante escritora que imprimiu em suas narrativas uma perspectiva
nostálgica para o Nordeste. Apesar de ter nascida em Fortaleza, Ceará, é
oriunda de famílias tradicionais sertanejas (dos municípios de Quixadá e
Beberibe). Foi, juntamente com Jorge Amado, dos primeiros romancistas a expor a
questão social e a revolução como assuntos literários. Mas, diferente do
escritor de Capitães de areia, ela
associa esses temas a uma representação tradicionalista da sociedade,
evocando-os em nome de um passado que se diluía.
A autora
publicou, aos 20 anos, a sua obra de maior repercussão nacional, o romance O Quinze. Nele relata o drama de seus
personagens, e dos sertanejos em geral, decorrente da seca de 1915. O fenômeno
natural é visto na obra como uma fatalidade que desordena o cotidiano da
sociedade sertaneja, causando a
desintegração das relações tradicionais de produção e de poder, e também
desencadeando a dissolução dos códigos sociais e morais. Sendo assim, na perspectiva de Queiroz, a seca funcionava
como uma espécie de causa substituta para justificar todo o processo de
decadência que já vinha se desenrolando nas velhas sociedades tradicionais
nordestinas, independente do fenômeno.
Sua escrita
revela um traço naturalista, pois parece procurar o homem “natural”, selvagem,
isento de controles e restrições sociais. Como escritora e militante política de esquerda, Rachel de Queiroz
desejava uma mudança social que conduzisse o homem na sua “verdade”, livrando-o
da ação nociva da civilização. Pode-se considerar que a sua utopia se inspirava
na idéia de um ordenamento da natureza e que, por isso, a ordem social deveria
estar mais de acordo com a “natureza humana”. Diante dessa característica, sua
leitura da revolução se colocava mais próxima de uma reação romântica às
artificialidades da sociedade moderna do que de uma transformação completa do
seu mundo que, no fundo, lamentava estar se exaurindo. Para Albuquerque Jr.
(2009, p142):
"Raquel trabalha com uma imagem idealizada do homem do sertão
nordestino, o mito do sertanejo, ao mesmo tempo em que fala de ação e valentia, fala de reação ao urbano, às modificações tecnológicas, fazendo da
denúncia das transformações sociais, trazidas pelo capitalismo e sua ética
mercantil, o ponto de partida para a utopia de uma sociedade nova que, no
entanto, resgatasse a pureza, os vínculos comunitários e paternalistas da
sociedade tradicional. O seu socialismo
se aproxima mais de uma visão paternalista de fundo cristão e exprime a revolta
de uma filha de famílias tradicionais da região, que vê a vida dos seus
degradada pelo avanço das relações mercantis e pelo predomínio das cidades.
Seus personagens são subversivos à
medida que contestam a ordem capitalista, mas a sua visão de sociedade futura
mistura-se com uma enorme saudade de um sertão onde existia “liberdade”,
“pureza”, “sinceridade”, “autenticidade”. Seus personagens se debatem mais
contra o social do que pela mudança social. São seres sempre em busca desta
verdade irredutível do
homem contra as
“mentiras” e o “artifício” do mundo
moderno."
Diante de seus
posicionamentos e incursão política - e mesmo suas críticas a certos
funcionamentos opressores da sociedade patriarcal – e também da sua idealização
da sociedade sertaneja naturalmente generosa, Raquel de Queiroz se coloca numa
posição ambígua. Apesar de contribuir na sedimentação do Nordeste como
tradição, como espaço da saudade, através da valorização da natureza, do sertão
e do sertanejo, a escritora revelou também a região como local de uma possível
revolução social, como um território antiburguês e plausível potência de uma
transformação social no país mediante as injustiças e misérias que nele ocorre.
Referência
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes.
4ª ed. Recife: Fundação Joaquim Nambuco/Editora Massangana; São Paulo: Cortez,
2009.