domingo, 12 de fevereiro de 2017

Romance da saudade e 'Incelença para uma terra que o sol matou'

Já lá vão alguns anos da publicação de 'A Invenção do Nordeste e Outras Artes', obra primorosa de Durval Muniz de Albuquerque Jr. O livro está esgotado, e está a merecer, com urgência, uma nova edição. Trabalho inovador em relação à interpretação da formação do Nordeste, não é, contudo, um texto que descura do aporte epistemológico (algo tão em voga nos dias atuais) para "cair nas graças". Resultado da sua tese de doutoramento em História, combina uma escrita segura, consistente, oferecendo, ao mesmo tempo, uma leitura fluida. Talvez fenômenos como o Movimento Maguebeat (posterior ao estudo de Durval), surgido em Recife, anteponha questões à 'Invenção do Nordeste'. Mas, da minha parte, é convicção que, além de o tempo reservar um lugar na galeria dos clássicos para a 'Invenção', teses suas são centrais para a compreensão da formação da ideia de Nordeste, onde as diversas artes têm um lugar de destaque. Aí inclua-se o romance, objeto desta postagem. Por outro lado, penso que, para os dias atuais no país, as páginas da 'Invenção" evidenciam algo como que uma espécie de "metodologia" acionada na formação identitária de uma população, agregando-a/unificando-a, e que, à escala nacional, foi responsável pela formação da ideia de  povo brasileiro, que agora está em risco (ou talvez até mesmo já se dissolvendo - há quem comece a ver as coisas assim), por causa dos extremismos e da intolerância (e se calhar também em decorrência da acentuação da "racialização"). Enfim, a contribuição de 'A Invenção do Nordeste e Outras Artes' é inestimável. Segue aí abaixo um texto dando conta das suas teses em relação ao papel do romance na formação do Nordeste,  e que aparece em um texto mais amplo na Base Maxwell-PUC/RJ: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/. A postagem é finalizada com a 'Incelença para uma terra que o sol matou', do mestre Elomar Figueira. 


Resultado de imagem para a invenção do nordeste e outras

Pode-se afirmar que, para o “romance de trinta” [1930], a decadência da sociedade patriarcal - e sua conseqüente substituição pela sociedade urbano-industrial – foi o  seu tema principal, tendo em vista que seus autores eram, na maioria, descendentes das famílias tradicionais nordestinas que passavam por um processo de certa marginalização. Este processo os levou a tentativas de aproximação com o povo, utilizando temas e formas de expressão de origem popular como forma de difundir as condições sociais pelas quais estavam vivendo na época. De uma forma geral, os autores passaram a se identificar com o sofrimento do povo e muitos deles assumiram a pretensão de ser seus porta-vozes, numa postura comumente populista, que variava entre a denúncia das condições de vida das classes populares e o louvor da tradicional dominação paternalista.
Apesar de ser um tanto controverso defender a idéia de um estilo comum para os romancistas de trinta, esta aproximação com as fontes populares estabeleceu uma comunhão de características de certa forma “regional” entre eles. Este suposto “estilo regional” buscou uma escrita próxima da fala do cotidiano, que, além de ter sido uma forma de aproximação com o universo popular, serviu também como estratégia para se afastar da linguagem - considerada por esses autores - artificial, que vinha sendo desenvolvida pelos modernistas (do Sudeste). Para eles, essa busca era um esforço na tentativa de fazer a linguagem voltar a ser expressão do real, de descrever um mundo que fosse a imagem direta da realidade, onde tudo parecesse claro e que transmitisse um sentido de imediato. Uma tentativa de restabelecer um realismo - em detrimento das experimentações modernistas -, no qual se visava suprimir a distância entre coisa e significado, resgatando velhos sentidos que eram vistos como “naturais” e “essenciais”.
Esse resgate de antigos sentidos, dos velhos costumes da região, a postura de resistência frente às inovações – tanto na escrita como nas coisas da vida cotidiana -, revelam o caráter saudosista dessa produção romanesca. Sobre este assunto, Albuquerque Jr. (2009, p. 114) coloca:

"Embora produto do olhar moderno, estes romances são nostálgicos em relação a uma visão naturalista e realista do real, em que tudo parecia claro, fixo, estável, e todas as hierarquias e ordenações no seu lugar. O que mais temem na modernidade é o dilaceramento, o conflito em torno do próprio espaço tido, até então, como referente natural e eterno. Não é por outro motivo que este romance tem como um dos seus temas constantes a luta pela terra, pelo poder sobre o espaço. As usinas e seu impulso expansionista, sua fome de terras, invadindo os bangüês, maculando os espaços sagrados dos antepassados, são o símbolo maior desse processo em que a terra deixa de ser repositório fixo de tradições e relações seculares de poder para se
tornar uma “vil mercadoria.”

Entre os assuntos abordados pela produção romancesca de trinta, destacam-se alguns “temas regionais”, tais como: a decadência da sociedade açucareira; os conflitos entre o beatismo e o cangaço; o coronelismo e seu universo (autoridade, disputa por terras, jagunços, etc.); e a seca e sua iminente epopéia da retirada. Temas que já eram presentes na literatura popular, no discurso político das oligarquias, nas cantorias e desafios dos cantadores, mas que foram trabalhados pelos romancistas de uma forma que se tornaram espectros de uma essência regional.
A seca foi um tema importantíssimo, tendo em vista que foi o próprio fenômeno natural que deu origem à concepção de uma região destacada das demais outras do país. A partir dos romances, a imagem do Nordeste passou a ser pensada tomando a seca como principal paisagem. A retirada do nordestino, uma conseqüência dela, era um acontecimento que oferecia aos escritores uma verdadeira estrutura narrativa: saída de um local infernal até a chegada ao paraíso, que se materializava no litoral e, principalmente, nas terras mais ao sul. Para Albuquerque Jr. (2009, p. 114):

"O romance de trinta institui uma série de imagens em torno da seca que se tornaram clássicas e produziram uma visibilidade da região à qual a produção subseqüente não consegue fugir. Nordeste do fogo, da brasa, da cinza e do cinza, da galharia negra e morta, do céu transparente, da vegetação agressiva, espinhosa, onde só  o mandacaru, o juazeiro e o papagaio são verdes. Nordeste das cobras, da luz que cega, da poeira, da terra gretada, das ossadas de boi espalhadas pelo chão, dos urubus, da loucura, da prostituição, dos retirantes puxando jumentos, das mulheres com trouxas na cabeça trazendo pela mão meninos magros e barrigudos, nordeste da despedida dolorosa da terra, de seus animais de estimação, da antropofagia. Nordeste
da miséria, da fome, da sede, da fuga para a detestada zona da cana ou para o Sul."

Outro tema importante, principalmente no que se refere à criação de um “espaço da saudade”, foi o da decadência da sociedade patriarcal açucareira. A derrocada desta sociedade significou, para alguns autores, a perda do  “paraíso  infantil”. O Nordeste que foi traduzido por eles era aquele anterior às usinas, espaço onde todos trabalhavam e ninguém passava fome, onde negros e senhores  conviviam “harmonicamente”, local que tinha feito a grandeza do Brasil através do açúcar. Tal visão da região destacou de forma positiva uma sociedade altamente hierarquizada,  na qual as diferenças sociais eram encobertas pelos mecanismos paternalistas, de relações pessoais, mais determinadas pelo sentimento do que pela racionalidade. Os romances produzidos sob esta perspectiva tenderam a potencializar uma leitura  amena da escravidão, escondendo seus aspectos hediondos. Eles também destacaram a arbitrariedade do emergente mundo burguês e sua exploração do assalariamento, aspectos considerados negativos e que reforçavam a defesa da velha estrutura patriarcal e escravista.
Os temas estabelecidos pelo “romance de trinta” consolidaram características regionais para o Nordeste com uma força muito grande de impregnação imagética. O sentido de uma identidade nordestina fechada atribuída a este grupo de escritores veio fortalecer a própria estratégia política dos discursos sobre a região, de pensá-la (e sua produção cultural) como uma idéia coesa e possuidora de uma essência generalizável. No entanto, é importante ressaltar que, embora tenham muitas afinidades entre si, os autores possuem diferenças na forma de interpretar a região, sendo, portanto, necessário destacar diferenças no interior do próprio discurso tradicionalista para que ele não seja pensado como um discurso de simplicidade homogênea. Dentre os romancistas classificados neste grupo de escritores e que tomam o Nordeste como “região da saudade”, três nomes se destacam: José Lins do Rego, José Américo de Almeida e Rachel de Queiroz.
Se o “romance de [19]30” foi talvez a mais importante representação artística de um Nordeste como local da saudade, José Lins do Rego foi o escritor que encarnou mais fortemente esta interpretação. Nascido na propriedade de seu pai (Engenho Corredor), localizada no município de Pilar na Paraíba, ele passa a infância envolto pelo  universo da sociedade açucareira, ambiente que o inspirou na criação  dos personagens  dos  seus  romances  que  constituíram  o  chamado  “Ciclo  da cana-de-açúcar”.
Diferentemente do trabalho de Gilberto Freyre, de quem se tornou grande amigo e admirador a partir de 1923 quando terminou a Faculdade de Direito do Recife, as ficções de José Lins não são criadas a partir de uma pesquisa sociológica. São obras construídas baseadas nos relatos que ouvia nos engenhos de sua meninice, permeadas de recordações de seus primeiros anos de vida. Narrativas inspiradas pelas suas memórias de infância, nas quais a vida idílica do engenho se entrecruzava com as apreensões psicológicas que se deram desde a adolescência. Histórias que evidenciam seu sofrimento diante do desmantelamento da sociedade açucareira, seu território existencial que ruía com as transformações do país.
De uma forma geral, os livros do “Ciclo da cana-de-açúcar” descrevem um processo de destruição paralelo a um esforço de reconstrução deste território existencial. Na sua escrita, José Lins denota uma vontade de reconstruir o passado que viveu, para assim escapar do presente que vivia. Uma vontade de dar continuidade ao ambiente da gente no meio da qual foi criado, de seus antepassados. Como tem consciência da impossibilidade de tal desejo, o autor fez de sua prosa um veículo de vingança contra os que contribuíram para a dissolução das relações sociais tradicionais. Daí a presença de elementos da velha sociedade patriarcal (o engenho, o senhor) sempre vivos, opondo-se a uma nova realidade que emerge. Nova realidade que também é vingada aparecendo como responsável por infortúnios da vida como doenças, melancolia, loucuras, etc.
Este confronto entre velha ordem patriarcal (no seu caso, a açucareira) versus a moderna civilização burguesa marcou significantemente a obra do escritor. Seus personagens foram criados quase como lamentos da disseminação da segunda em detrimento da primeira. Em sua maioria, são homens incapazes (e incapacitados) de transpor as fronteiras de seu (velho) mundo, com dificuldades de comunicação, perante um (novo) sistema que parece estruturado para fazê-los sofrer. Homens para os quais a realidade presente parece não existir, que vivem no mundo das  recordações, enquanto assistem o seu mundo de fato diminuir, tornando-se sufocante. O embate é ainda evidenciado quando o autor deixa transparecer também nos seus personagens uma interpretação naturalista (congeneridade entre homem e meio) da vida, destacando neles a presença de uma certa “natureza humana”, com emoções primitivas, naturais, e mesmo traços de irracionalidade que a civilização não conseguia eliminar. Para José Lins, a superficialidade da civilização é que era incapaz de traduzir a verdade do homem, sendo as máscaras burguesas o verdadeiro empecilho para se descobrir a essência do indivíduo na sua relação com o meio.  Sobre este confronto, Albuquerque Jr. (2009, p. 134-135). ainda coloca:

"Na obra de José Lins, a cidade surge como o lugar do dezenraizamento; lugar a partir do qual projeta o espaço nostálgico do engenho; lugar em que a miséria era maior e as injustiças mais gritantes que no engenho; em que os códigos morais tradicionais ruíam. Lugar traiçoeiro onde a lei e a disciplina vigiavam e puniam aqueles homens acostumados com os códigos lábeis e informais da sociedade patriarcal. Faltava ao pobre, na cidade, alguém que velasse por ele, que o orientasse, que o controlasse de forma paternal. A cidade era o lugar do conflito, do acirramento das contradições entre patrões e empregados, protótipo das relações capitalistas que se implantavam. Lugar onde se formavam as novas gerações de senhores, cujos valores não mais se coadunavam com aqueles que fizeram a glória das casas-grandes. José Lins atribui a este  despreparo  das  novas  gerações  uma  boa  parcela  da  responsabilidade pela decadência da sociedade açucareira."

Igualmente paraibano – nascido no município de Areia - e também filho de senhor de engenho (de uma família de forte influência política), José Américo de Almeida foi outro importante escritor a imprimir uma visão nostálgica para o Nordeste. No entanto, apesar de ser um homem oriundo dos canaviais da zona da mata, elegeu o sertão como espaço-modelo da região.
Através d’A Bagaceira, romance que o projeta para todo o país, José Américo aborda o tema da retirada dos sertanejos para o brejo (zona da mata), onde iam para trabalhar na colheita da cana, expondo os conflitos que ocorriam entre eles e os brejeiros em decorrência de suas diferenças. No livro, o autor expôs sua verve naturalista pela ênfase que dá ao meio natural na construção de seus personagens. Partindo da falsa idéia da ausência de escravidão no sertão, ele mostra o sertanejo como uma classe racial superior, pois, além de “não ter sangue negro”, é o único tipo regional capaz de vencer o problema das secas (problema natural que impedia a afirmação da sociedade nordestina).
A Bagaceira é praticamente a obra que inaugura a tradição literária do romance social nordestino, a qual estabelece a denúncia da miséria como regional e espacial (muitas vezes escondendo as responsabilidades dos homens de poder). No entanto,   é uma obra um tanto ambígua em relação ao Nordeste que deseja estabelecer. Nela – e também em outros romances -, José Américo tenta conciliar padrões sociais tradicionais da região com a modernização técnica da sociedade burguesa. Cria uma região não apenas como espaço da memória, mas também tocada pela história, desde que fosse mantida a estrutura social como sempre existiu. Sobre isto, Albuquerque Jr (2009, p.139) comenta que:

"Para ele, a racionalidade burguesa devia ser adotada como forma de sobrevivência e manutenção das relações sociais e de poder. Conciliar o tradicional com o moderno era o único caminho para evitar uma ruptura mais radical com o passado. O Nordeste devia se modernizar sem perder o seu caráter, leia-se, sem ter modificadas as suas relações de dominação. Uma modernização vinda de cima, feita por uma vanguarda bovarista capaz de conciliar as vantagens da técnica, com os laços paternalistas  que evitassem a emergência do conflito social mais explicitado."

Rachel de Queiroz é outra importante escritora que imprimiu em suas narrativas uma perspectiva nostálgica para o Nordeste. Apesar de ter nascida em Fortaleza, Ceará, é oriunda de famílias tradicionais sertanejas (dos municípios de Quixadá e Beberibe). Foi, juntamente com Jorge Amado, dos primeiros romancistas a expor a questão social e a revolução como assuntos literários. Mas, diferente do escritor de Capitães de areia, ela associa esses temas a uma representação tradicionalista da sociedade, evocando-os em nome de um passado que se diluía.
A autora publicou, aos 20 anos, a sua obra de maior repercussão nacional, o romance O Quinze. Nele relata o drama de seus personagens, e dos sertanejos em geral, decorrente da seca de 1915. O fenômeno natural é visto na obra como uma fatalidade que desordena o cotidiano da sociedade sertaneja, causando a  desintegração das relações tradicionais de produção e de poder, e também desencadeando a dissolução dos códigos sociais e morais. Sendo assim,  na perspectiva de Queiroz, a seca funcionava como uma espécie de causa substituta para justificar todo o processo de decadência que já vinha se desenrolando nas velhas sociedades tradicionais nordestinas, independente do fenômeno.
Sua escrita revela um traço naturalista, pois parece procurar o homem “natural”, selvagem, isento de controles e restrições sociais. Como escritora e militante  política de esquerda, Rachel de Queiroz desejava uma mudança social que conduzisse o homem na sua “verdade”, livrando-o da ação nociva da civilização. Pode-se considerar que a sua utopia se inspirava na idéia de um ordenamento da natureza e que, por isso, a ordem social deveria estar mais de acordo com a “natureza humana”. Diante dessa característica, sua leitura da revolução se colocava mais próxima de uma reação romântica às artificialidades da sociedade moderna do que de uma transformação completa do seu mundo que, no fundo, lamentava estar se exaurindo. Para Albuquerque Jr. (2009, p142):

"Raquel trabalha com uma imagem idealizada do homem do sertão nordestino, o mito do sertanejo, ao mesmo tempo em que fala de ação e valentia, fala de reação ao urbano, às modificações tecnológicas, fazendo da denúncia das transformações sociais, trazidas pelo capitalismo e sua ética mercantil, o ponto de partida para a utopia de uma sociedade nova que, no entanto, resgatasse a pureza, os vínculos comunitários e paternalistas da sociedade tradicional. O seu socialismo se aproxima mais de uma visão paternalista de fundo cristão e exprime a revolta de uma filha de famílias tradicionais da região, que vê a vida dos seus degradada pelo avanço das relações mercantis e pelo predomínio das cidades. Seus personagens são subversivos à medida que contestam a ordem capitalista, mas a sua visão de sociedade futura mistura-se com uma enorme saudade de um sertão onde existia “liberdade”, “pureza”, “sinceridade”, “autenticidade”. Seus personagens se debatem mais contra o social do que pela mudança social. São seres sempre em busca desta verdade   irredutível  do   homem  contra   as   “mentiras”   e   o   “artifício”   do mundo
moderno."

Diante de seus posicionamentos e incursão política - e mesmo suas críticas a certos funcionamentos opressores da sociedade patriarcal – e também da sua idealização da sociedade sertaneja naturalmente generosa, Raquel de Queiroz se coloca numa posição ambígua. Apesar de contribuir na sedimentação do Nordeste como tradição, como espaço da saudade, através da valorização da natureza, do sertão e do sertanejo, a escritora revelou também a região como local de uma possível revolução social, como um território antiburguês e plausível potência de uma transformação social no país mediante as injustiças e misérias que nele ocorre.

  Referência

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 4ª ed. Recife: Fundação Joaquim Nambuco/Editora Massangana; São Paulo: Cortez, 2009.