quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O lugar da passagem da paisagem

Já se se fez uma analogia entre certas músicas de Belchior e o ser de Heidegger, dizendo-se, que, em geral, a maioria das músicas são entes, mas que as canções de Belchior são seres: não só quebram a cadeia da servidão como também embatem com o intelecto das pessoas que captam o significado das suas melodias. É de se pensar. Assim digo tendo em conta o breve texto que aí abaixo vai, relativo à pintura nordestina e à 'invenção da região' nas artes plásticas. Lembro, a propósito, do artista cearense em 'Conheço o meu lugar': "O que é que pode fazer o homem comum/Neste presente instante senão sangrar?/Tentar inaugurar/A vida comovida/Inteiramente livre e triunfante? (...)/Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!". 
Segue aí a música, depois o texto, nos passos da incursão de Durval Muniz na sua obra 'A Invenção do Nordeste e Outras Artes' (conforme o texto aparece, em outro mais amplo, na Base Maxwell-PUC/RJ: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/). 


Nas artes plásticas, o regionalismo tradicionalista nordestino foi expresso principalmente através da materialização em formas visuais das imagens produzidas na literatura - tanto pelas obras de ficção, como pela sociologia/antropologia freyriana. A pintura nordestina feita na época congelou imagens locais, instituindo-as como representações típicas da região com tal força que, como pôde ser visto posteriormente, elas tiveram (e ainda têm) influências nas produções  cinematográficas e televisivas realizadas no país a partir da segunda metade do século De uma forma geral, os quadros carregam imagens sintéticas, simbólicas e arquetípicas, que remetem constantemente a uma suposta essência regional. As paisagens do Nordeste são temas recorrentes nas telas, nas quais são enfatizadas as presenças do sol, da luz, da tropicalidade peculiar. E é através delas que Gilberto Freyre tenta estabelecer certos critérios para a produção da pintura regionalista e tradicionalista “de paisagens de tons ocres ou de exuberância tropical que não se coadunaria nem com os cinzentos acadêmicos, nem com as cores carnavalescamente brilhantes do “impressionismo”. Para ele (Gilberto Freyre), até então a pintura tinha passado ao largo dessa paisagem regional, com seus contrastes de verticalidades – as palmeiras, os coqueiros, os mamoeiros – e de volúpias rasteiras – o cajueiro do mangue, a jitirana. Uma paisagem animada de muitos verdes, vermelhos, roxos e amarelos. Uma “paisagem que parece ter alguma coisa de histórico, de eclesiástico e cívico”. Uma pintura que devia se voltar, principalmente, para as cenas de engenhos, de negros trabalhando no meio daquela fábrica de aquedutos de pau ou trazendo carros de boi cheios de cana madura. Figuras de senhores de engenho, danças de negros, flagrantes de chamegos em que se prolongavam os gestos de se semear e plantar cana” (Albuquerque Jr, 2009, p. 122).
Os pressupostos da pintura regionalista, para Freyre, eram evocações nítidas da civilização açucareira, a qual oferecia um rico material imagético capaz de romper com a submissão colonial de reverenciar mitos gregos e romanos. Freyre desejava uma pintura cúmplice do seu esforço de salvar formas e figuras humanas e sociais  que desapareciam em meio as transformações pelas quais passavam o país. Entre os nomes que se destacaram como representantes legítimos deste ideal de pintura estão, entre outros, os dos pintores Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres.
O primeiro retratou a sociedade açucareira de forma poética, lírica, através de uma visão idílica das relações sociais, ignorando os conflitos entre os grupos que a compunham. Pela harmonia das linhas, formas e cores, sua pintura propôs uma suposta semelhança em relação ao próprio espaço social que retratou uma pintura feita por meio da colagem expressionista de cenas regionais, fragmentos imagéticos do cotidiano da vida rural, aliadas a imagens históricas que são como que coladas, justapostas, formando “paisagens” onde o espaço surge como produto de um encontro não conflitivo entre temporalidades... Uma imagética escravista e patriarcal, na qual o mundo é desigual, mas sem conflito, em que há trabalho escravo belo plasticamente, a exploração sexual do negro se torna idílio de fim de tarde. Uma pintura que cria a imagem de um espaço multirracial, multicolorido, e os contrastes se harmonizam em cores líricas e sensuais... Uma paisagem fruto de sonhos, de sublimações,  de  seqüestros  da  história,  do  passar  do  tempo,  das transformações sociais (Albuquerque Jr., 2009).
O segundo destacou, em seus trabalhos, a relação entre o homem e a natureza, enfatizando os estragos que, segundo o próprio pintor, a civilização causava nesta interação. Para Lula Cardoso Ayres, o homem que tinha dominado os trópicos pelo amor e pela simbiose com a região, passou a se distanciar desses espaços por causa  do predomínio da técnica e das relações artificiais estabelecidas pelo mundo  moderno. Neste primeiro momento regionalista, seus quadros tinham características expressionistas, retratavam paisagens e tipos (homens, mulheres e crianças) na intimidade de seus cotidianos de trabalho e das festas. Suas pinturas também abordaram o folclore da região, do qual se apropriou de temas e do realismo mágico das manifestações populares. Em seus quadros, é freqüente a humanização de animais e da natureza, sendo ainda constante a presença dos “mal-assombrados”, que habitualmente aparecem nos desenhos ao lado dos objetos retratados da casa-grande, como que estivessem denunciando a morte da velha sociedade patriarcal.


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ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 4ª ed. Recife: Fundação Joaquim Nambuco/Editora Massangana; São Paulo: Cortez, 2009.