Já se se fez uma analogia entre certas músicas de Belchior e o ser de Heidegger, dizendo-se, que, em geral, a maioria das músicas são entes, mas que as canções de Belchior são seres: não só quebram a cadeia da servidão como também embatem com o intelecto das pessoas que captam o significado das suas melodias. É de se pensar. Assim digo tendo em conta o breve texto que aí abaixo vai, relativo à pintura nordestina e à 'invenção da região' nas artes plásticas. Lembro, a propósito, do artista cearense em 'Conheço o meu lugar': "O que é que pode fazer o homem comum/Neste presente instante senão sangrar?/Tentar inaugurar/A vida comovida/Inteiramente livre e triunfante? (...)/Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!".
Segue aí a música, depois o texto, nos passos da incursão de Durval Muniz na sua obra 'A Invenção do Nordeste e Outras Artes' (conforme o texto aparece, em outro mais amplo, na Base Maxwell-PUC/RJ: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/).
Nas
artes plásticas, o regionalismo tradicionalista nordestino foi expresso
principalmente através da materialização em formas visuais das imagens
produzidas na literatura - tanto pelas obras de ficção, como pela
sociologia/antropologia freyriana. A pintura nordestina feita na época congelou
imagens locais, instituindo-as como representações típicas da região com tal
força que, como pôde ser visto posteriormente, elas tiveram (e ainda têm)
influências nas produções cinematográficas
e televisivas realizadas no país a partir da segunda metade do século De uma forma geral, os quadros
carregam imagens sintéticas, simbólicas e arquetípicas, que remetem
constantemente a uma suposta essência regional. As paisagens do Nordeste são
temas recorrentes nas telas, nas quais são enfatizadas as presenças do sol, da
luz, da tropicalidade peculiar. E é através delas que Gilberto Freyre tenta
estabelecer certos critérios para a produção da pintura regionalista e
tradicionalista “de paisagens de tons ocres
ou de exuberância tropical que não se coadunaria nem com os cinzentos
acadêmicos, nem com as cores carnavalescamente brilhantes do “impressionismo”.
Para ele (Gilberto Freyre), até então a pintura tinha passado ao largo dessa
paisagem regional, com seus contrastes de verticalidades – as palmeiras, os
coqueiros, os mamoeiros – e de volúpias rasteiras – o cajueiro do mangue, a
jitirana. Uma paisagem animada de muitos verdes, vermelhos, roxos e amarelos.
Uma “paisagem que parece ter alguma coisa de histórico, de eclesiástico e
cívico”. Uma pintura que devia se voltar, principalmente, para as cenas de
engenhos, de negros trabalhando no meio daquela fábrica de aquedutos de pau ou
trazendo carros de boi cheios de cana madura. Figuras de senhores de engenho,
danças de negros, flagrantes de chamegos em que se prolongavam os gestos de se
semear e plantar cana” (Albuquerque Jr, 2009, p. 122).
Os
pressupostos da pintura regionalista, para Freyre, eram evocações nítidas da
civilização açucareira, a qual oferecia um rico material imagético capaz de
romper com a submissão colonial de reverenciar mitos gregos e romanos. Freyre
desejava uma pintura cúmplice do seu esforço de salvar formas e figuras humanas
e sociais que desapareciam em meio as
transformações pelas quais passavam o país. Entre os nomes que se destacaram
como representantes legítimos deste ideal de pintura estão, entre outros, os
dos pintores Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres.
O
primeiro retratou a sociedade açucareira de forma poética, lírica, através de
uma visão idílica das relações sociais, ignorando os conflitos entre os grupos
que a compunham. Pela harmonia das linhas, formas e cores, sua pintura propôs
uma suposta semelhança em relação ao próprio espaço social que retratou uma pintura feita por meio da colagem
expressionista de cenas regionais, fragmentos imagéticos do cotidiano da vida rural, aliadas a
imagens históricas que são como que coladas, justapostas, formando “paisagens”
onde o espaço surge como produto de um encontro não conflitivo entre
temporalidades... Uma imagética escravista e patriarcal, na qual o mundo é
desigual, mas sem conflito, em que há
trabalho escravo belo plasticamente, a exploração sexual do negro se torna
idílio de fim de tarde. Uma pintura
que cria a imagem de um espaço multirracial, multicolorido, e os contrastes se
harmonizam em cores líricas e sensuais... Uma paisagem fruto de sonhos, de sublimações, de seqüestros da
história, do passar
do tempo, das transformações sociais (Albuquerque Jr.,
2009).
O
segundo destacou, em seus trabalhos, a relação entre o homem e a natureza,
enfatizando os estragos que, segundo o próprio pintor, a civilização causava
nesta interação. Para Lula Cardoso Ayres, o homem que tinha dominado os
trópicos pelo amor e pela simbiose com a região, passou a se distanciar desses
espaços por causa do predomínio da
técnica e das relações artificiais estabelecidas pelo mundo moderno. Neste primeiro momento regionalista,
seus quadros tinham características expressionistas, retratavam paisagens e
tipos (homens, mulheres e crianças) na intimidade de seus cotidianos de
trabalho e das festas. Suas pinturas também abordaram o folclore da região, do
qual se apropriou de temas e do realismo mágico das manifestações populares. Em
seus quadros, é freqüente a humanização de animais e da natureza, sendo ainda
constante a presença dos “mal-assombrados”, que habitualmente aparecem nos
desenhos ao lado dos objetos retratados da casa-grande, como que estivessem
denunciando a morte da velha sociedade patriarcal.
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ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 4ª ed. Recife: Fundação Joaquim Nambuco/Editora Massangana; São Paulo: Cortez, 2009.