sábado, 11 de fevereiro de 2017

Paradoxos da "cordialidade brasileira", a máscara e a nação de ouvintes


Como devemos entender hoje o "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda Jean-Baptiste Debret/Reprodução
Foto: Jean-Baptiste Debret/Reprodução


Por Luiz Costa Lima
(Professor Emérito da PUC-RJ)

Em 1936, na abertura da coleção Documentos Brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda intitulava o capítulo V de  Raízes do Brasil  de ‘O Homem Cordial’. Encontrara a expressão no escritor e amigo Ribeiro Couto. Ao longo do capítulo, explicava que a expressão nos caracterizava [os brasileiros] como “um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente do ninho familiar”, pois  “as relações que se criam na vida doméstica, sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós”.
As passagens citadas são imprescindíveis porque:  1) muitos dos comentadores do autor não hesitaram em considerá-lo prova que o depois celebrado historiador estaria enfatizando um dado altamente positivo de nossa formação;  2) na verdade, a cordialidade tinha o papel de ressaltar a rígida separação, em nossa sociedade, entre o público e o privado. O autor não deixava dúvidas sobre sua consequência negativa: “Armado desta máscara (a cordialidade) o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”.  Fundada nas relações familiares de que derivava, a cordialidade se estendia até a área do público, cuja lógica, que antes deveria ser o interesse público, era com isso sufocada;  3) a distinção se tornará mais efetiva a partir da 3ª edição do Raízes (1956), quando, ao texto sensivelmente modificado, corresponderá o esclarecimento decisivo sobre a questão da cordialidade.
Tal esclarecimento se tornara necessário desde que Cassiano Ricardo iniciara seu desentendimento, tomando-a [a cordialidade]  como sinônimo da nossa bondade (!). Contrapondo-se-lhe, Sérgio Buarque, ainda que reiterasse em nota seu débito a Ribeiro Couto, acrescentava passagem de O Conceito do Político, que Carl Schmitt publicara em 1933, lido no original. Aí, de maneira inquestionável,  era diferenciada a inimizade, pertencente à ordem do privado, assim como a hostilidade, propriedade da ordem do público. O texto revisto tirava qualquer possibilidade de dúvida: Sérgio Buarque acentuava que nossas raízes familiares comprometiam a formação consequente de uma ordem pública entre nós, pois seus agentes, no exercício de seus cargos, agem como se a população fosse parte do círculo de seus  apaniguados.
O esclarecimento acima se mostra particularmente pertinente.  Por quê? Seria um desperdício alegar que assim sucedia porque Sérgio Buarque é um intelectual a que poucos entre nós se igualam. Seu propósito é bem outro. Trata-se de mostrar que o termo, em vez de manter a estrita acepção inicial – a oposição entre o público e o privado, a hostilidade versus a manifestação de inimizade como derivadas da importância primordial da instituição familiar –, passa a ter outra configuração. Para melhor entendê-lo, recordemos que, nos termos do autor, a oposição entre público e privado significava que nossa política, sob uma capa de afabilidade, acobertava interesses privados.
Mas tal acepção ainda vigora depois do golpe de 1964? Embora a delação, a tortura, o desaparecimento dos adversários, já houvessem sido praticados durante o Estado Novo [1937-1945], ainda se poderia supor que a indiferença e a progressiva hostilidade da população pelo clima de terror indicavam alguma permanência da velha cordialidade.
Já o que se dá em consequência do resultado da última eleição presidencial não mais permite dúvidas. Em vez de o adversário político ser hostilizado, ele se torna objeto de ódio e rancor. A passionalidade chegou ao ponto de as manifestações contra o [então] governo eleito conterem manifestações em prol da volta da ditadura militar. Isso não significa que a cordialidade deixou de haver, senão, e apenas, que a definição dos interesses privados deixou de derivar de raízes familiares. O privado agora se identifica com instituições industriais, ainda que de origem familiar. Ponhamos aspas na nova “cordialidade”.
“Cordialidade” industrial, como assim? É aquela oriunda de instituições que, por sua capacidade de difusão pública, têm a possibilidade de forjar uma opinião pública. A mudança nada tem de excepcional. Pode-se mesmo dizer que seria bastante esperável. Tanto antes como agora temos sido uma população de “ouvintes”, ou seja, em que o hábito da leitura é reduzido, seja pelo número reduzido dos alfabetizados, seja pela falta de hábito de ler, pensar e estudar. Por isso,  os valores antes difundidos a partir da família se tornaram mais eficazmente transmitidos pela “oralidade” industrial.  Com exceção dos miseráveis, a mídia alcança todas as classes. De posse de meios de divulgação de massa, os poderosos interesses privados se tornam mais potentes. Para isso, têm apenas que saber recrutar colunistas  e entrevistadores dotados de uma oralidade agressiva, na aparência apenas técnica. Os panelaços se esgotaram nos protestos [contra o governo anterior]. Assim, continuamos um país grande apenas no tamanho.

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Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/