Penso onde não sou; portanto, sou onde não me penso
(Jacques Lacan)
Por Hernani Pereira
Neste texto ['O estádio do espelho como formador da função do eu'], originalmente apresentado como comunicação
no XVI Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, na data de 17 de
julho de 1949, Lacan, nascido em 1901, falecido em 1981, oferece a sua visão
sobre o tema da formação do eu e de sua função. A sua função, do eu,
basicamente entendida, é “proteger” o sujeito, daí que Lacan se utilize da
metáfora do campo fortificado e da armadura para referir-se ao eu. Ponto
interessante é este em que aparece a fratura entre o eu e o sujeito, uma
particularidade da psicanálise desde Freud em que o sujeito não é entendido
como equivalente à consciência e, por isto, ao eu. Ao contrário, o eu (embora,
como diz Freud, tenha conexões profundas com o inconsciente, é mais facilmente
caracterizado pelo atributo da consciência) é entendido como apenas uma
"parte" do sujeito (cuja maior e mais expressiva "parte" é
inconsciente). Assim, como Lacan já aponta no início de seu texto, a sua
perspectiva se opõe a toda a filosofia do cogito. Como se sabe, a filosofia do cogito é, mutatis mutandis, a filosofia da
primazia da consciência, de sua centralidade, ou melhor, do egocentrismo. Outro
ponto de expressão de uma tal filosofia é o existencialismo, cujo solo fértil é
o pensamento francês dos anos 40 e 50 do século XX. Contra tal corrente, Lacan
proporá a fase (ou estádio, como amplamente citado) do espelho como formadora
da função do eu – título do presente texto. A fase do espelho demarca o
delineamento da função do eu através da identificação, isto é, da modificação
do sujeito através da incorporação de imagens; assim a fase própria funciona
como ponto de transição entre o corpo fragmentado e a “armadura”, quer dizer, o
eu rígido e estático, aquele que já tem uma imagem. Lacan chama esta função do
eu de alienante: trata-se de uma alienação do sujeito, de um afastamento após a
fundação do “campo fortificado”, da inauguração de uma vivência para esse
“pouco de realidade” conclamado e que, por sua vez, delineia o sujeito à
determinação social e ao relacionamento com o outro. Este eu antes de sua
determinação social, conforme nos diz Lacan, por ser ainda mais primitivo,
talvez devesse ser registrado, na categoria freudiana, como eu-ideal.
Fundamental e indispensável para a compreensão de um pensamento anticartesiano
e de uma psicanálise rigorosa, este é o ganho deste texto. Contudo, vale dizer
que talvez não seja possível entendê-lo sem uma iniciação à terminologia
lacaniana.
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Fonte: http://simeioseis-kai-scholia.blogspot.com.br/