O supérfluo que aprisiona e o abandono do vazio: intermitências das sociabilidades alternativas
Happy Noam Chamosky Day -
Capitain Fatastic,éum filme que se apresenta como um bom ponto de partida para uma
reflexão sobre a sociabilidade humana nestes tempos que estamos a viver e as
"intermitências", digamos assim, das alternativas que buscam outras
dimensões para o devir humano. Já foi dito que, "se as pessoas soubessem o que
realmente desejam, talvez desejassem menos". E seriam mais felizes. Mas a questão, parece, é que, muitas vezes, as pessoas, de per si, não sabem bem o que desejam. Há boas
razões para que se assistaHappy
Noam Chamosky Day (EUA, 2016. Direção: Matt Ross. Com: Viggo Mortensen, George McKay, Nicholas Hamilton, Annalise Basso, Samantha Isler, Shree Cooks, Charlie Shotwell).Segue aí
abaixo uma recensão do filme, acompanhada de dois realces das suas cenas.
Por Cynara Menezes
A certa altura do filme Capitão
Fantástico, em cartaz nos cinemas, o pré-adolescente Rellian
pergunta irritado ao pai, Ben (Viggo Mortensen):
– Que tipo de gente
maluca celebra o aniversário de Noam Chomsky como se isso fosse um tipo de data
oficial? Por que não celebramos o Natal como todo o resto do mundo?
Ben responde:
– Você preferia
celebrar um elfo mágico fictício em vez de um humanitário vivo que fez tanto
para promover os direitos humanos e o entendimento?
O menino se cala. Rellian
é o “rebelde” da família, só que ao contrário: Ben e a mulher, Leslie, criam os
seis filhos de maneira alternativa, no meio de uma floresta. As roupas são costuradas
por eles, que também aprendem desde cedo a caçar, plantar e encontrar o próprio
alimento, fugindo, portanto, da chamada “sociedade de consumo”. Rellian está de
saco cheio de viver assim e a internação da mãe só faz aprofundar o conflito
entre o garoto e o pai.
O que a maioria das
crianças e dos adolescentes quer é justamente o oposto, ser “iguais a todo
mundo”, base fundamental para a sociedade de consumo funcionar. Sem o desejo de
ser igual, não existiriam grifes, por exemplo, capazes de seduzir jovens a
pagar fortunas por uma blusa ou uma bolsa “da moda” que todo mundo tem. Mas os
Cash decidiram que não queriam desse jeito para os filhos. Queriam que
sentissem orgulho de ser “diferentes”, por isso cada um tem um nome único,
inventado pelos pais. O caçula, Nai, inclusive, é uma criança sem gênero.
O conflito do filme é que,
ao mesmo tempo que de fato aquelas crianças sentem orgulho de si mesmas, o
contato com a “civilização” demonstra que também possuem inseguranças.
Sentem-se ao mesmo tempo superiores e inferiores àquela sociedade que seu pai e
sua mãe esnobaram. Contrastam maturidade e inocência: seu pai lhes acostumou a
falar sobre tudo, sem reservas, mas se esqueceu de alertá-los para coisas
prosaicas como paquerar uma garota.
Capitão Fantástico é uma
fábula sobre como é duro desafiar o sistema reinante, mesmo que você abra mão
dele por completo. Todos estamos programados a viver sob as regras do sistema
e, se você foge delas, arrisca-se a sofrer e a ser punido, a ser visto como freak, uma
aberração. A revolta de Rellian contra o Noam Chomsky Day ilustra isso –e se
inspira numa celebração feita pelo diretor Matt Ross com os próprios filhos.
Viver de forma anticapitalista num mundo capitalista é tão complicado quanto,
para um ateu, se esquivar do Natal todos os anos.
Mas à ternura e à angústia
despertadas pelo filme é adicionado ainda outro sentimento: frustração. A
sensação de que hoje em dia criamos nossos filhos de uma maneira banal,
automática. Submetidas a uma disciplina rígida de exercícios físicos e
leituras, as crianças de Ben são incrivelmente agradáveis, encantadoras e
interessantes, principalmente em contraste com os primos criados na cidade à
base de muita televisão e videogames. Difícil não sentir uma invejinha dos
resultados que ele conseguiu com seus meninos…
A “sociedade de Noam Chomsky” emulada pela família Cash a partir
das concepções do linguista, filósofo e ativista norte-americano está longe de
ser perfeita, mas está impregnada de um humanismo que causa nostalgia. Será que
um dia não fomos assim, capazes de sentar à mesa de jantar com nossos filhos e
falar de literatura e ciência, em vez de permitir que passem a maioria de suas
horas de folga absortos em si mesmos, mexendo num tablet? É constrangedor e
incômodo se dar conta de como a vidinha confortável e previsível do mundo
capitalista é, no fundo, uma vidinha de merda.
Temos todos os tipos de
aparelhos eletrônicos que previa a ficção científica dos anos 1960 e nunca
fomos tão pobres de espírito. As crianças do século 21 sabem mexer em qualquer
bugiganga eletrônica, mas não teriam a menor ideia de como sobreviver no meio
da mata se algum dia se perdessem em uma. Para sorte (ou azar) delas,
dificilmente alguma criança toparia atualmente passar uma semana na natureza
sem wi-fi.
A sociedade de consumo e a
tecnologia trouxeram um efeito colateral bizarro, de nos tornar seres humanos
vazios. Quantas horas de leitura o Facebook roubou de você hoje? Capitão Fantástico impacta
por escancarar isso, por chacoalhar as certezas de todos, mesmo a dos que
afirmam estar fazendo a sua parte, lutando por um mundo mais justo, com as
nádegas confortavelmente instaladas sobre uma cadeira acolchoada e diante da
tela de um computador.
É um paradoxo, porque em
tese as facilidades das novas tecnologias deveriam servir para a gente se
independizar da vida urbana e do caos das grandes cidades. Deveriam servir para
a gente ter mais tempo para curtir a família, os amigos. E é todo o contrário o
que está acontecendo: os gadgets estão roubando o tempo ocioso que temos porque
nos viciamos neles. Como a heroína fez com a morfina, criamos uma dependência
dos instrumentos que supostamente nos salvariam. E ela é transmissível às novas
gerações.
Capitão Fantástico é uma
fábula sobre como é duro desafiar o sistema reinante, mesmo que você abra mão
dele por completo. Todos estamos programados a viver sob as regras do sistema
e, se você foge delas, arrisca-se a sofrer e a ser punido, a ser visto como freak, uma aberração.
A revolta de Rellian contra o Noam Chomsky Day ilustra isso –e se inspira numa
celebração feita pelo diretor Matt Ross com os próprios filhos. Viver de forma
anticapitalista num mundo capitalista é tão complicado quanto, para um ateu, se
esquivar do Natal todos os anos.
Mas à ternura e à angústia
despertadas pelo filme é adicionado ainda outro sentimento: frustração. A
sensação de que hoje em dia criamos nossos filhos de uma maneira banal,
automática. Submetidas a uma disciplina rígida de exercícios físicos e
leituras, as crianças de Ben são incrivelmente agradáveis, encantadoras e
interessantes, principalmente em contraste com os primos criados na cidade à
base de muita televisão e videogames. Difícil não sentir uma invejinha dos
resultados que ele conseguiu com seus meninos…
A “sociedade de Noam Chomsky” emulada pela família Cash a partir
das concepções do linguista, filósofo e ativista norte-americano está longe de
ser perfeita, mas está impregnada de um humanismo que causa nostalgia. Será que
um dia não fomos assim, capazes de sentar à mesa de jantar com nossos filhos e
falar de literatura e ciência, em vez de permitir que passem a maioria de suas
horas de folga absortos em si mesmos, mexendo num tablet? É constrangedor e
incômodo se dar conta de como a vidinha confortável e previsível do mundo
capitalista é, no fundo, uma vidinha de merda.
Temos todos os tipos de
aparelhos eletrônicos que previa a ficção científica dos anos 1960 e nunca
fomos tão pobres de espírito. As crianças do século 21 sabem mexer em qualquer
bugiganga eletrônica, mas não teriam a menor ideia de como sobreviver no meio
da mata se algum dia se perdessem em uma. Para sorte (ou azar) delas,
dificilmente alguma criança toparia atualmente passar uma semana na natureza
sem wi-fi.
A sociedade de consumo e a
tecnologia trouxeram um efeito colateral bizarro, de nos tornar seres humanos
vazios. Quantas horas de leitura o Facebook roubou de você hoje? Capitão Fantástico impacta
por escancarar isso, por chacoalhar as certezas de todos, mesmo a dos que
afirmam estar fazendo a sua parte, lutando por um mundo mais justo, com as
nádegas confortavelmente instaladas sobre uma cadeira acolchoada e diante da
tela de um computador.
É um paradoxo, porque em
tese as facilidades das novas tecnologias deveriam servir para a gente se
independizar da vida urbana e do caos das grandes cidades. Deveriam servir para
a gente ter mais tempo para curtir a família, os amigos. E é todo o contrário o
que está acontecendo: os gadgets estão roubando o tempo ocioso que temos porque
nos viciamos neles. Como a heroína fez com a morfina, criamos uma dependência
dos instrumentos que supostamente nos salvariam. E ela é transmissível às novas
gerações.
Por outro lado, senti também que talvez exista um
lugar no meio do caminho entre abdicar de tudo ou se embriagar na sociedade de
consumo, chafurdar nela. Difícil é se dedicar a encontrar este caminho do meio,
na correria em que vivemos. Há que se ter uma disciplina férrea, é isso que Ben
ensina. Eu fiquei a fim de começar imitando o Noam Chosky Day.