sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Do sentimento à palavra: a vontade de dizer, o dito e a língua que nos habita



Por L. Jean Lauand
(Conferência proferida na Universitat Autònoma de Barcelona,
Dept. de Ciències de l'Antiguitat i de l'Etat Mitjana)


     "Obrigado", "Parabéns", "Perdoe-me", "Meu caro", "Felicidades", "Meus pêsames" e diversas outras formas de linguagem do relacionamento quotidiano - nas diversas línguas - encerram em si profundas informações para o estudo filosófico do homem. Para além do eventual formalismo vazio em que o uso diário tende a arremessá-las, essas expressões - à primeira vista, tão inofensivas - incidem, originariamente, sobre importantes dimensões da realidade humana.
     A partir da discussão metodológico-temática sobre a linguagem e a antropologia filosófica (guiados pelo clássico S. Tomás de Aquino), essas fórmulas de convivência mostram-se autênticas mensagens cifradas, por vezes infinitamente surpreendentes e sábias... Como diz Isidoro de Sevilha, sem a etimologia não se conhece a realidade e com ela mais rapidamente atinamos com a força expressiva das palavras (1).
     Na verdade, as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que nós - tão familiar e quase automático é o uso que delas fazemos - possamos imaginar. Daí a atenção do filósofo para os modos de dizer, os contextos, as sutilezas da linguagem comum, em sua própria língua ou em outras.
     Quando a filosofia se volta para a linguagem comum, não está praticando um procedimento periférico, mas atingindo algo de muito essencial, pertencente ao próprio núcleo da reflexão filosófica.
     Tal apropriação, dizíamos, não é fácil nem imediata. Nossa tendência é antes a de embotamento e esquecimento do profundo sentido originário que acabou por se consubstanciar nesta ou naquela formulação. Pois, sempre vige aquela verdade fundamental, ressaltada tanto pela antropologia ocidental quanto pela oriental: o homem é, essencialmente, um ser que esquece!(2) E, assim, a linguagem, a língua viva do povo, acaba por ser em muitos casos a depositária das grandes experiências esquecidas. E se quisermos resgatar o sentido do humano que elas encerram, devemos voltar-nos, criticamente, para esse depósito... Não é de estranhar, pois, que num clássico como Tomás de Aquino encontremos uma filosofia altamente comprometida com a linguagem. Nesse sentido, é oportuno recordar alguns de seus princípios metodológicos.
1) Nossas palavras, freqüentemente, só alcançam fragmentariamente - Tomás usa o advérbio divisim - a realidade, que é complexa, que supera, de muito, a capacidade intelectual humana. Aliás, é de Tomás a aguda observação de que "filósofo algum jamais chegou a esgotar sequer a essência de uma mosca". Ao contrário do Ser Transcendente, que expressa tudo num único Verbo, "nós temos de expressar fragmentariamente os conhecimentos em muitas e imperfeitas palavras"(3).
2) Outro fenômeno interessante, também ele ligado à limitação de nosso conhecimento/linguagem, é o que poderíamos denominar: efeito girassol, assim explicado por Tomás: "Já que os princípios essenciais das coisas são por nós ignorados, freqüentemente, para significar o essencial (que não atingimos) nossas definições incidem sobre um aspecto acidental"(4). Assim, por exemplo, todo o ser da planta que chamamos girassol é designado por um fenômeno-gancho, acidental e periférico, no caso o do heliotropismo.
3) Daí, também, que não escape ao Aquinate o fato de que, freqüentemente, é diferente o gancho, o aspecto, o caminho pelo qual cada língua acessa uma determinada realidade: o mesmo objeto que me protege contra a água (guarda-chuva) produz uma sombrinha (umbrella). Daí, diz Tomás, que "línguas diferentes expressem a mesma realidade de modo diverso"(5).
 "Muito obrigado" - os três níveis da gratidão
     Dizíamos que a limitação do conhecimento humano reflete-se na linguagem: não podemos expressar o que as coisas são, na medida em que não sabemos completamente o que elas são. Além do mais, muitas vezes, uma palavra acentua originariamente só um dentre os muitos aspectos que a realidade designada oferece. E pode ocorrer que, com o passar do tempo, essa realidade mude, evolua substancialmente a ponto de perder a conexão com o étimo da palavra, que permanece a mesma. Isto não nos choca, pois, no uso quotidiano, as palavras vão perdendo transparência: falamos em salada de frutas porque envolve mistura e nem notamos que salada deriva de sal. Do mesmo modo, o barbeiro, hoje em dia, quase já não faz barbas, mas cortes de cabelo; como também o tintureiro já não tinge, mas só lava; o garrafeiro compra jornais velhos e muito poucas garrafas; o chauffeur não aquece, mas dirige o carro; e nem nos lembraríamos de associar funileiro a funil.
     Se essas incompatibilidades não nos causam estranheza é porque a linguagem tornou-se opaca para nós: dizemos colar, colarinho, coleira, torcicolo e tiracolo e não reparamos em que derivam de colo, pescoço (daí que seja incompreensível, à primeira vista, a expressão "sentar no colo").
     Essas considerações são importantes preliminares ao estudo da gratidão e das formulações que ela recebe nas diversas línguas. Tomás ensina que a gratidão é uma realidade humana complexa (e daí também o fato de que sua expressão verbal seja, em cada língua, fragmentária: este ou aquele aspecto-gancho é o acentuado): "A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em louvar e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de acordo com suas possibilidades e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar" (II-II, 107, 2, c).
     Este ensinamento, aparentemente tão simples, pode ser reencontrado nos diferentes modos de que as diversas línguas se valem para agradecer: cada uma acentuando um aspecto da multifacética realidade da gratidão. Algumas línguas expressam a gratidão, tomando-a no primeiro nível: expressando mais nitidamente o reconhecimento do agraciado. Aliás reconhecimento (como reconnaissance em francês) é mesmo um sinônimo de gratidão. Neste sentido, é interessantíssimo verificar a etimologia: na sabedoria da língua inglesa to thank (agradecer) e to think (pensar) são, em sua origem, e não por acaso, a mesma palavra. Ao definir a etimologia de thank o Oxford English Dictionnary é claro: "The primary sense was therefore thought"(6). E, do mesmo modo, em alemão, zu danken (agradecer) é originariamente zu denken (pensar). Tudo isto, afinal, é muito compreensível, pois, como todo mundo sabe, só está verdadeiramente agradecido quem pensa no favor que recebeu como tal. Só é agradecido quem pensa, pondera, considera a liberalidade do benfeitor. Quando isto não acontece, surge a justíssima queixa: "Que falta de consideração!"(7). Daí que S. Tomás - fazendo notar que o máximo negativo é a negação do grau ínfimo positivo (a última à direita de quem sobe é a primeira à esquerda de quem desce...) - afirme que a falta de reconhecimento, o ignorar é a suprema ingratidão(8): "o doente que não se dá conta da doença não quer se curar"(9).
     A expressão árabe de agradecimento shukranshukran jazylan situa-se diretamente naquele segundo nível: o de louvor do benfeitor e do benefício recebido. Já a formulação latina de gratidão, gratias ago, que se projetou no italiano, no castelhano (grazie, gracias) e no francês (merci, mercê)(10) é relativamente complexa. Tomás diz (I-II, 110, 1) que seu núcleo, graçacomporta três dimensões: 1) obter graça, cair na graça, no favor, no amor de alguém que, portanto, nos faz um benefício; 2) graça indica também dom, algo não devido, gratuitamente dado, sem mérito por parte do beneficiado; 3) a retribuição, "fazer graças", por parte do beneficiado. No tratado De Malo (9,1), acrescenta-se um quarto significado de gratias agere: o de louvor; quem considera que o bem recebido procede de outro, deve louvar.
     No amplo quadro que expusemos - o das expressões de gratidão em inglês, alemão, francês, castelhano, italiano, latim e árabe - ressalta o caráter profundíssimo de nossa forma: "obrigado"(11). A formulação portuguesa, tão encantadora e singular, é a única a situarse, claramente, naquele mais profundo nível de gratidão de que fala Tomás, o terceiro (que, naturalmente, engloba os dois anteriores): o do vínculo (ob-ligatus), da obrigação, do dever de retribuir. Podemos, agora, analisar a riqueza de sugestões que se encerra também na forma japonesa de agradecimento(12)Arigatô remete aos seguintes significados primitivos: "a existência é difícil", "é difícil viver", "raridade", "excelência (excelência da raridade)". Os dois últimos sentidos acima são compreensíveis: num mundo em que a tendência geral é a de cada um pensar em si, e, quando muito, regularem-se as relações humanas pela estrita e fria justiça, a excelência e a raridade salientam-se como característica do favor. Mas, "dificuldade de existir" e "dificuldade de viver", à primeira vista, nada teriam que ver com o agradecimento. No entanto, S. Tomás ensina (II-II, 106, 6) que a gratidão deve - ao menos na intenção - superar o favor recebido. E que há dívidas por natureza insaldáveis: de um homem em relação a outro, seu benfeitor, e sobretudo em relação ao Ser Transcendente: "Como poderei retribuir-lhe - diz o Sl. 115 - por tudo o que Ele me tem dado?". Nessas situações de dívida impagável - tão frequentes para a sensibilidade de quem é justo - o homem agradecido sente-se embaraçado e faz tudo o que está a seu alcance (quid-quid potest), tendendo a transbordar-se num excessum que se sabe sempre insuficiente(13) (cfr. III, 85, 3 ad 2). Arigatô aponta assim para o terceiro grau de gratidão, significando a consciência de quão difícil se torna a existência (a partir do momento em que se recebeu tal favor, imerecido e, portanto, se ficou no dever de retribuir, sempre impossível de cumprir...).

Sinônimos?

     Tomás é muito estrito no uso da palavra "sinônimo": para ele, são sinônimas somente palavras de significados absolutamente equivalentes, isto é, que não só indicam a mesma realidade (res), mas também o mesmo aspecto, a mesma ratio. Diz, por exemplo: "Embora essas palavras signifiquem a mesma realidade, não são sinônimas porque não a enfocam sob o mesmo aspecto"(14).

     Assim, para Tomás, duas (ou mais) palavras são sinônimas se (e somente se...) em quaisquer contextos puderem ser comutadas sem real alteração de sentido: o exemplo que dá, no Comentário às Sentenças, é tunicavestis e indumentum. O que quer que se afirme (ou negue) de tunica, será afirmado (ou negado...) também de vestis(15). É como trocar "meia-dúzia" por "seis"... Nós, hoje, com me-nos precisão, admitimos como sinônimas justamente palavras que - embora com diferentes títulos ou ênfases - apontam para a mesma realidade. Assim, de "sinônimo", diz o Aurélio: "palavra que tem quase (sic) a mesma significação que outra". Já o Larousse, explicita melhor: "mots qui se présentent dans la langue avec des sens très proches et qui se différencient entre eux par une nuance (trait particulier)". Já o Oxford distingue e registra dois sentidos, o estrito e o lato: "Synonym - 1. Strictly, a word having the same sense as another (in the same language); but more usually (grifo nosso), either or any of two or more words (in the same language) having the same general sense, but possessing each of them meanings which are not shared by the other or others, or having different shades of meaning (grifo nosso) or implications appropriate to different contexts: e.g. serpent, snake; ship, vessel etc.".
     Para Tomás, pelo contrário, como dizíamos, duas palavras podem referir-se à mesma e única realidade e, no entanto, não serem sinônimas: porque diferentes são suas rationes. É o caso, por exemplo, dos diversos nomes pelos quais designamos a Deus ou seus atributos (Criador, Onipotente, a Bondade, a Justiça etc.): todos incidem sobre a mesma realidade, mas não são sinônimos(16). Seja como for, do ponto de vista metodológico, são de especial interesse para o filósofo, dois pontos: 1) a busca de contextos da linguagem comum em que uma palavra não pode - sem alteração de sentido - ser substituída por nenhum "sinônimo": este é um fecundo procedimento para atinar com a realidade antropológica significada pelo vocábulo e 2) O segundo ponto a destacar é o fato de que cada "sinônimo" tem sua ratio, aponta para um determinado aspecto diferente da mesma e única realidade: tal como quando falamos em "casa", "lar", "domicílio" ou "residência". Em si, a realidade a que se referem estas palavras é a mesma e única edificação - na Rua Tal, número tal -, mas ninguém diz "domicílio, doce domicílio", nem a Prefeitura cobra impostos sobre meu lar, etc.(17). Essa multiplicidade de formas de linguagem para a mesma res tem importância na análise que Tomás faz do amor.

"Meu caro"

     A riqueza (e a precisão) de vocabulário vivo para determinado assunto em uma língua denota o interesse vital dos falantes por aquele tema. Nesse sentido, note-se, por exemplo, o incrível detalhamento a que chegou o léxico futebolístico no Brasil, em que a resolução da linguagem chega a distinguir: bicicleta, meia-bicicleta, puxeta e voleio! Do mesmo modo, S. Tomás apresenta distinções entre diversos "sinônimos" de amor em latim, interessantes do ponto de vista da antropologia filosófica. Assim, ao afirmar (em I Sent. d.10, q.1, a. 5, ex) que o Espírito Santo é amor ou caritas ou dilectio do Pai e do Filho, precisa que amor indica a simples inclinação de afeto para o amado, enquanto dilectio ("como a própria etimologia indica") pressupõe escolha e é, portanto, racional. Já caritas, objeto de particular estudo neste tópico, enfatiza a veemência do amor (dilectio) enquanto se tem o amado por inestimável preço ("inquantum dilectum sub inaestimabili pretio habetur"), no mesmo sentido em que dizemos que as coisas (o custo de vida, as compras) estão caras ("secundum quod res multi pretii carae dicuntur").

     Há aqui um fato surpreendente e muito sugestivo. Não é por acaso que, também em outras línguas, se use a mesma e única palavra para dizer: "meu caro amigo" e "o feijão está caro" ("my dear friend", "beans are too dear"; "mon cher ami" e "haricots sont trop cher"). Para o realismo medieval, não há nenhum choque em que a palavra "caridade", escolhida para designar o amor de Deus (e o amor ao próximo por Deus) seja a palavra, pré-cristã, ligada a dinheiro, preço: caridade, o amor pelo amado, insiste Tomás, indica aquilo (uma coisa, um objeto) que consideramos de inestimável preço, como caríssimo: "Caritas dicitur, eo quod sub inaestimabili pretio, quasi carissimam rem, ponat amatum caritas" (In III Sent. d.27, q.2, a.1, ag7). Assim, quando dizemos "meu caro amigo" ou "caríssimo Fulano", estamos valendo-nos de metáforas de preço (daí, também, a-preço, prezado, menos-prezo, des-prezo etc.), de estima, de estimativa.
     Nesta mesmíssima linha, situa-se a fórmula de cortesia árabe, ante um amigo que diz que vai pedir algo: "Anta gally wa talibuka rakhiz" ("você é caro e seu pedido é barato"). E quando nos lembramos que Cristo compara o Reino dos Céus a um tesouro que um homem encontra num campo ou a um mercador que procura pedras preciosas e que a obtenção desse bem requer a venda de todo o resto, não nos surpreenderá que "caridade" seja a palavra para designar o bem apreciado.
     Voltemo-nos agora para uma outra situação de nossa vida quotidiana, a de felicitação, procurando resgatar o sentido originário dos votos de congratulação. Seguindo o procedimento medieval, estaremos atentos à etimologia.

"Parabéns"

     Quando transcendemos o âmbito protocolar das formalidades e da praxe, os votos de felicitação: "Parabéns!" (e seus irmãos: o espanhol  Enhorabuena!, o inglês Congratulations!, o italiano Auguri!), vemos que eles trazem em si diferentes e complementares indicações sobre o mistério do ser e o do coração humano. O que significam exatamente essas formulações? O que realmente queremos dizer, quando dizemos "parabéns" ou "congratulations" etc.? Todas essas expressões trazem em si um profundo significado, por assim dizer, "invisível a olho nu".

     Comecemos pela fórmula castelhana: Enhorabuena!, literalmente "em boa hora". Enhorabuena indica que um determinado caminho (os anos de estudo que desembocaram numa formatura, o árduo trabalho de montar uma empresa que se inaugura etc.) chega, nesta hora, em que se dão as felicitações, a seu termo: esta é que é a hora boa, enhorabuena! Precisamente o fato de ser a hora da conclusão é que a torna uma boa hora. A sabedoria dos antigos fala da "hora de cada um", de horas boas e más. Mas a hora boa, a hora melhor é a da conclusão, a da consumação, a do bom termo do caminho, a hora do fim, que é melhor do que a do começo: "Melior est finis quam principium" (Ecl. 7,8), diz a própria Sabedoria divina.
     Já a formulação inglesa, também presente no alemão e em outras línguas, congratulations, expressa a alegria compartilhada pelo bem do outro, com quem nos congratulamos, isto é, nos co-alegramos. Essa comunhão na alegria é sugerida também pela forma depoente dos verbos latinos gratulor e congratulor. A forma depoente está a indicar que a ação descrita no verbo não é ativa nem passiva: mas uma ação que, exercida pelo sujeito, repercute nele mesmo. Ou seja, no caso, que a alegria que externamos ao felicitar tal pessoa é também, a título próprio, muito nossa.
     O árabe mabruk lembra o caráter de bênção daquele dom pelo qual felicitamos alguém.
     Com a encantadora forma nossa, "Parabéns!", estamos expressando precisamente isto: que o bem conquistado, que a meta atingida seja usada "para bens". Pois, qualquer bem obtido (o dom da vida, dinheiro ou a conquista de um diploma) pode, como todo mundo sabe, ser empregado para o bem ou para o mal.
     O italiano, auguri, auguri tanti!, anuncia (ou enseja) que este bem celebrado é só prenúncio, prefiguração, augúrio de outros ainda maiores que estão por vir.

"Meus pêsames"

     "Carregava uma tristeza...", diz o antigo samba de Paulinho da Viola: a tristeza é - evidentemente - um peso, os famosos pesares...! E para carregar o peso da dor, da tristeza, nada melhor - ensina Santo Tomás - do que a ajuda dos amigos: "porque a tristeza é como um fardo pesado que se torna mais leve para carregar, quando compartilhado por muitos: daí que a presença dos amigos seja tão apreciada nos momentos de dor"(18).

     Compreende-se, assim, imediatamente, que a expressão de condolências ("doer-se com") seja pêsames, literalmente: pesa-me ("eu te ajudo a carregar o peso desta tua tristeza").

“Perdoe-me"

     "Perdonare" é uma forma tardia que não se encontra em Tomás. A palavra correspondente e usual, por ele empregada, é par-cere. No entanto, encontramos em S. Tomás as razões filosóficas que justificam a grandiosa etimologia das formas modernas: "perdoar", "perdão", "perdonar", "pardon", "pardonner" etc.

     O prefixo per acumula os sentidos de "por" ("através de") e de plenitude, grau máximo: como em perlavar (lavar completamente) perfulgente (brilhantíssimo), per-feito, per-manganato etc. E, assim, o perdão aparece como o superlativo da doação. O mesmo se dá com as formas inglesa e alemã: for-givevor-geben.
     Como o Aquinate pensa o tema do perdão e como o relaciona com o máximo da doação? Há aí influências bíblicas e litúrgicas. Na liturgia, Tomás impressiona-se com a oração, por ele freqüentemente citada(19), da missa do X domingo depois de Pentecostes (e, ainda hoje, preservada no XXVI domingo do tempo comum), que diz: "Deus qui omnipotentiam tuam parcendo maxime manifestas" ("Deus, que manifestais vossa onipotência, principalmente perdoando..."). E afirma que o perdão de Deus é poder superior ao de criar os céus e a terra (II-II, 113, 9, sc).
     Por outro lado, ele lê na tradução latina da epístola aos efésios: "sede benignos e 'doai-vos' uns aos outros, tal como Deus, em Cristo, vos 'doou'" (Ef 4,32)(20). E em II Cor 2:10 "A quem vós 'doeis' eu também 'dôo' e o que eu 'doei' etc."(21). Tomás não tem dúvidas: o doar, por excelência, não é doar dinheiro ou tempo ou qualquer outra coisa, mas sim perdoar(22).
     E conclui, com sua habitual sobriedade, com sugestivos id est: "Donate, id est parcite" (Super II ad Cor. cp 12, lc 4) e "Donantes, id est parcentes" (Super ad coloss. cp 3 lc 3) .


1. "Nisi enim nomen scieris, cognitio rerum perit" (Et. I, 7,1) e "Nam dum videris unde ortum est nomen, citius vim eis intellegis" (Et. I, 29,2).
2. Veja-se, a propósito, o capítulo "Educação e Memória" in Lauand, Medievália, São Paulo, Hottopos, 1996.
3. "Quia enim nos non possumus omnes nostras conceptiones uno verbo ex-primere, ideo oportet quod plura verba imperfecta formemus, per quae divisim exprimamus omnia, quae in scientia nostra sunt (Super Ev. Io. Cp 1, lc1).
4. "Et quia essentialia principia sunt nobis ignota, frequenter ponimus in defini-tionibus aliquid accidentale, ad significandum aliquid essentiale" (In ISent. ds25 q 1, a 1, r 8).
5. "Diversae linguae habent diversum modum loquendi" (I, 39, 3 ad 2).
6. Cito pela edição em hipertexto-Cd-ROM: OED 2nd. ed. on CD-ROM, 1994.
7. Já Sêneca - citado por S. Tomás, II-II, 106, 3 ad 4 - fala de que não pode haver gratidão, senão pelo que ultrapassa o estritamente devido, "ultra debitum". Ministerium tuum est ("Você não fez mais que sua obrigação") e outras do mesmo teor são, como se vê, fórmulas já bastante antigas.
8. "Est gravissimum inter species ingratitudinis, cum scilicet homo beneficium non recognoscit" (In II Sent. d.22 q.2 a.2 r.1).
9. "Quia dum morbum non cognoscit, medicinam non quaerit", ibidem.
10. Merci é derivado de merces (salário), que tomou no latim popular o sentido de preço, do qual derivou o de "favor" e o de "graça".
11. Infelizmente, nestes últimos anos, no Brasil, "obrigado" vem sendo substituído pelo insosso "valeu!".
12. Devo à Profa. Chie Hirose as observações sobre a expressão Arigatô na língua japonesa.
13. Dessa insuficiência de quem sabe não dispor de moeda forte, nasce o recurso a Deus, consignado na expressão "Deus lhe pague", que, naturalmente, deixa subentendido que um pobre homem, como eu, não pode fazê-lo...
14. "Quamvis nomina dicta eandem rem significent, non tamen sunt synonyma: quia non significant rationem eandem" (CG I, 35, 1).
15. "Sicut patet etiam in synonimis; tunica enim et vestis eamdem rem significant, tamen nomina sunt diversa; et similiter indumentum. Unde affirmationes et negationes quae pertinent ad rem, non possunt verificari, ut dicatur: tunica est alba, indumentum non est album" (In I Sent. d. 34, q.1, a.1, r.2)
16."Ostenditur etiam ex dictis quod, quamvis nomina de Deo dicta eandem rem significent, non tamen sunt synonyma: quia non significant rationem eandem" CG I, 35, 1. Ou "Cum non secundum eandem rationem attribuantur, constat ea non esse synonyma, quamvis rem omnino unam significent: non enim est eadem nominis significatio, cum nomen per prius conceptionem intellectus quam rem intellectam significet" CG I, 35, 2.
17. Ainda que, naturalmente, há casos em que é legítima a substituição de uma dessas palavras por outra, ou indiferente o uso desta ou daquela: afinal são "sinônimas"!
18. "Quod tristitia est sicut onus grave quod quanto plures transsumunt fit levius ad portandum et sic presentia amici delectabilis" (Tabula libri Ethicorum, cpt).
19. Por exemplo em II-II, 113 9, sc e In IV Sent. d.46, q.2, a.1, cag1.
20. "Estote autem invicem benigni misericordes donantes invicem sicut et Deus in Christo donavit nobis".
21. "Cui autem aliquid donatis et ego nam et ego quod donavi si quid donavi propter vos in persona Christi".
22."Doar aqui é usado no sentido de perdoar" Super II ad Cor. cp 12, lc 4.

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Fonte: http://www.hottopos.com/notand1/antropologia_e_formas_quotidiana.htm. Conferência proferida sob o título 'Antropologia e Formas quotidianas - a Filosofia de S. Tomás de Aquino Subjacente à nossa Linguagem do Dia-a-Dia'.