domingo, 11 de dezembro de 2016

Ser e pertencer

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Por Marcelo Gleiser
(Professor de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA)

No dia 23 de março de 1997, em San Diego, na Califórnia, 39 membros da seita Heaven's Gate (portão do céu) se suicidaram voluntariamente, bebendo uma mistura de vodca com fenobarbital. Os corpos foram encontrados em suas camas na casa em que se reuniam, todos vestidos identicamente com blusa preta e calças de ginástica, um pano violeta cobrindo seus rostos. Cada um trazia exatamente US$5,75 no bolso e uma fita no braço que dizia "time de partida Portão do Céu".
O momento do suicídio coletivo foi decidido pelo líder da seita, um personagem misterioso conhecido por Do. Sua referência foi o cometa Hale-Bopp, quando atingiu o ponto mais próximo da Terra em sua órbita ao redor do Sol. Os membros da seita acreditavam na existência de uma civilização extraterrestre muito superior à nossa, tanto tecnologicamente quanto espiritualmente.
Ao avistar um ponto de luz que podia ser visto através da cauda translúcida do cometa, Do e seus seguidores concluíram que era a espaçonave dos extraterrestres, que viera recolhê-los na Terra para transportá-los a um plano de existência puramente espiritual, livre dos limites corpóreos. Astrônomos que estudavam o cometa identificaram o "misterioso" ponto de luz como sendo uma estrela conhecida como SAO 141894. Infelizmente, Do e seus discípulos estavam já mortos.
No decorrer da história, não faltam exemplos de seitas apocalípticas cujos membros optam pela morte. Algumas delas são pacíficas, como no caso da Portão do Céu, enquanto outras são extremamente agressivas, especialmente aos outros, àqueles que não pertencem ao seu grupo.
Pertencer é o conceito chave aqui, tendo origem no nosso passado tribal, quando grupos de caçadores-coletores lutavam para sobreviver em condições austeras, provocadas tanto por desafios ambientais quanto por disputas intertribais. Pertencer a uma tribo garantia proteção contra agressores externos, animais ou humanos, ajudando a sobrevivência do grupo.
A afiliação tribal fornecia, também, um senso imediato de identidade, gerando uma ideologia de exclusividade: "Pertenço a um grupo, a uma comunidade, cujos integrantes têm os mesmos valores que eu. Juntos, somos mais fortes; eu sou mais forte. Aqueles que não fazem parte do meu grupo, que não compartilham dos mesmos valores, são uma ameaça. São nossos inimigos. Se não os destruirmos, seremos destruídos por eles. Portanto, devemos a todo custo tentar convertê-los aos nossos valores. Se essa estratégia de conversão falhar, só nos resta destruí-los".

LÓGICA BINÁRIA
Existem diversas modalidades de tribalismo. Apenas as tribos mais extremas adotam essa lógica binária de considerar os que não pertencem como sendo inimigos, e apenas as mais violentas dentre elas optam por destruir seus oponentes. A maior parte das tribos se beneficia de outras, interagindo e colaborando entre si para atingir seus objetivos, sejam eles positivos ou negativos. Por exemplo, em alianças militares para combater um inimigo comum ou em trocas culturais ou econômicas.
Em seu livro mais recente, "Tribe" (Twelve), o jornalista americano Sebastian Junger defende a importância desses valores, que considera essenciais para cimentar relações sociais, citando a destribalização da vida moderna como sendo a causa principal da crise política e social em que vivemos.
Junger usa o exemplo de soldados, integrantes da tribo "exército" ou mesmo apenas de seu pelotão de combate, cuja vida depende da interação positiva com os outros, da sua proteção e aliança mútua: eu salvo sua vida e você, a minha. Ao retornarem para casa, tentando retomar a rotina, esses indivíduos sentem-se perdidos, isolados, longe da tribo que lhes foi tão essencial num período dramático de suas vidas. Sob esse prisma, Junger conclui que o tribalismo teve e tem um papel essencial na sociedade, funcionando como uma espécie de amálgama.
Por outro lado, levado ao extremo, o tribalismo é uma força divisora, preconceituosa, combativa e, como cansamos de ver nas notícias diárias, extremamente perigosa e destruidora.
O antropólogo Scott Atran, diretor do Instituto Jean Nicod em Paris, e professor da Universidade de Michigan em Ann Arbor, vem estudando há anos os movimentos islâmicos radicais. Em particular, Atran tenta entender o que leva inúmeros jovens de natureza pacífica e não-religiosa a deixar seus países, famílias e amigos para se filiar a organizações violentas como o Estado Islâmico.
Os argumentos de Atran são semelhantes aos que apontamos acima, justificando a atração que o radicalismo tribal exerce em tanta gente: são jovens que se sentem perdidos num mundo cada vez mais impessoal, destituídos de uma missão que os motive. Juntam-se ao Estado Islâmico e a outros movimentos extremos em busca de uma identidade, de uma tribo que lhes dê um senso de comunidade e de propósito dividido com outros em situação semelhante. O extremismo oferece uma solução a um intenso desespero pessoal.
"A ascensão do Estado Islâmico como movimento revolucionário tem, hoje, uma dimensão histórica. Muitos de seus membros agem movidos por uma fé apocalíptica, acreditando que para salvar o mundo devem antes destruí-lo", disse Atran ao jornalista Bruce Bower, da revista "Science News". Não existe espaço para o compromisso com o outro, tamanha a incompatibilidade de valores. O preço alto, muitas vezes a vida, como soldado ou suicida, é visto como parte de uma missão que transpõe esta existência, dada a crença numa outra, atemporal, num paraíso prometido aos mártires.
Na sua maioria, o comportamento tribal mais extremo é capitalizado por ameaças aos valores que o grupo considera como sendo sagrados –verdadeiros ou percebidos como tal pela liderança. Sagrado, aqui, não significa necessariamente um valor de cunho religioso.
Segundo Atran, "valores seculares sagrados", aqueles que não são religiosos mas que fazem parte da identificação mais essencial do grupo, também têm um papel essencial. Por exemplo, noções políticas ou éticas como direitos humanos, que mobilizam a ação de grupos muitas vezes seculares, ou ideologias que tentam salvar a humanidade por meio de movimentos políticos.
Fundamentalmente, toda tribo se organiza em torno de um sistema ou código de valores. A partir dele, emergem duas funções primárias para seus membros: a proteção desses valores e sua difusão para os integrantes de outras tribos.
Podemos identificar aqui o que chamo de paradoxo tribal, visto que nós, seres humanos, temos uma necessidade inerente de pertencer a um ou mais grupos. Somos animais sociais, e fazer parte de um grupo com o qual nos identificamos é essencial para uma vida emocional sadia. O eremita não é bem visto. Para os que estão de fora, escolher o isolamento social é uma forma de agressão, de rejeição.
Passamos a vida buscando por tribos diferentes, com as quais nos identificamos melhor, desde o grupinho de amigos na escola ou no parquinho, ou na torcida de times, com caras pintadas e vestindo orgulhosamente as camisas do clube, ou dentro da proliferação de igrejas, seguindo esse ou aquele pastor. Muitas vezes, a adesão e dedicação às tribos acaba por provocar comportamentos extremos, que incitam a violência.
No Brasil, vemos isso no futebol, por exemplo, quando o torcedor do outro clube é visto no mínimo com suspeita, e muitas vezes com desprezo. Como fulano pode ter um sistema de valores aceitável se escolhe torcer por outro time?
Ou a polarização extrema nas eleições recentes, seja no Brasil para prefeito ou nos EUA para a presidência. Tribos diferentes, com sistemas de valores diferentes, disputando o poder, o território abstrato da política.
O tribalismo é inseparável da dinâmica social. Seria ingênuo imaginar que podemos escapar dele. Precisamos dessa adesão; adoramos nossas tribos; criticamos, ou mesmo odiamos, outras. No entanto, o que leva ao comportamento tribal extremo é algo diverso. Esse tipo de comportamento destrutivo vem de um senso radicalizado de pertencimento, de uma adesão cega a um objetivo central que impede a percepção do outro.
O comportamento extremo olha apenas para si mesmo. Intolerante, não tem espaço para crescer, para olhar e aprender com o que existe fora. Pelo contrário, o que existe fora é imediatamente taxado como sendo uma ameaça à sobrevivência do grupo, não muito diferente das tribos de caçadores-coletores que disputavam territórios 20 ou 30 mil anos atrás.
A necessidade de pertencimento se sobrepõe a qualquer possibilidade de abertura, a qualquer outro sistema de valores. No tribalismo extremo, a devoção à causa está até mesmo acima do direito à vida, o sacrifício do indivíduo, como nas formigas, visto como bem comum. Os líderes se alimentam da devoção de seus discípulos, enquanto os discípulos se alimentam da devoção de seu líder e da causa que ele ou ela representa.
Após milênios de civilização agrária, continuamos moralmente nas cavernas, muitos de nós cegos pelo tribalismo radical. O budismo, uma tribo decididamente não-radical, prega o desapego como caminho para a paz pessoal, insistindo que a fonte de nossas ansiedades é o nosso apego extremo a valores, a bens, a pessoas. Essa é uma lição decididamente difícil de ser digerida, atabalhoados que somos numa vida corrida, cheia de compromissos e relações. Por outro lado, se redirecionarmos esse convite ao desapego a uma abertura ao outro, a outros valores, não apenas como tolerância, mas como uma curiosidade de se aprender com outras visões de mundo, criamos a oportunidade de ao menos iniciar o processo de cura.
Podemos nos comprometer a objetivos sem radicalizá-los, podemos nos afiliar a grupos sem demonizar outros. Podemos seguir sistemas de valores sem a exclusão daqueles que preferem seguir outros. Corinthians ou Flamengo,  jogamos todos no mesmo campo.

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Fonte: Folha de São Paulo, Caderno Ilustríssima, versão para assinantes, edição do dia 11/12/2016. Título original: 'O mundo de hoje e a lógica tribal do pertencimento'.