sábado, 3 de dezembro de 2016

Saudades de coisas indizíveis: cantem a primavera, eu canto o inverno

Por Yvonne Maggie 
(Antropóloga, Universidade Federal do Rio de Janeiro) 

Minha amiga e grande antropóloga Mirian Goldenberg há anos pesquisa a velhice com obstinação arrebatadora. Por meio de entrevistas e também do convívio com pessoas acima de 60 anos, Mirian nos leva ao mundo da velhice onde os entrevistados e as entrevistadas afirmam ser mais felizes e livres do que quando eram mais novos.
Costuma dizer que muitos estudiosos, antropólogos, médicos, psicanalistas falam sobre os problemas e as dores do envelhecimento, mas ela escolheu falar sobre o lado bom dessa derradeira etapa da vida. 
Tenho enorme gratidão por Mirian e cada vez que ouço uma de suas palestras ou leio um de seus livros fico maravilhada com o seu jeito seguro de realçar a vida, a alegria e a esperança. 
Enquanto ela canta a vida, eu, prefiro dizer os versos de Alphonsus de Guimaraens,  no livro Pulvis:  

Cantem outros a clara cor virente 
Do bosque em flor e a luz do dia eterno... 
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno. 

Não me baseio em pesquisa. Falo de mim e da humanidade que está em mim.
Desde que uma doença grave, um câncer quase mortal, me atacou e tive de me submeter aos mais torturantes tratamentos, sinto medo, tristeza e vergonha. O corpo não tem pequenas imperfeições, tem marcas que não se podem apagar e dores que não saem mesmo pelejando para que elas não se instalem definitivamente.
É uma luta diária. O banho, o andar, a ginástica, os dentes, os médicos e os exames fazem com que a sensação de finitude esteja sempre presente.
Ah, que saudades de acordar, pular da cama e sair em meia hora depois de beber um café preto e beliscar uma ponta de pão francês. Que saudades da praia, da manhã ao por do sol, sem medo de mergulhar nas ondas e sem prestar atenção aos perigos. Que  saudades das braçadas rápidas na piscina em manhãs ensolaradas e dos namoros quando o sol se punha na praia de São Conrado. E dos momentos felizes  na Praia Grande em Arraial do Cabo com o mar  gelado e os pescadores no alto do morro do  Atalaia observando a chegada dos cardumes.  O morro ladeia o canal de águas profundas e verdes por onde dizem que Américo Vespúcio passou em sua viagem à América do Sul entre maio de 1501 e o verão de 1502. Saudades de tantas outras coisas indizíveis.
A velhice chega sem a gente perceber. Chega em degraus e é implacável. Nem todos de uma geração chegam ao mesmo tempo, e alguns vão ficando pelo caminho.
Digo tudo isso  com um pouco de humilhação e ainda me contradigo. Afinal, a vida foi muito generosa comigo porque, até os 65 anos, não tive limites sérios no meu corpo.  Se hoje o meu corpo é o limite, na juventude, havia outros limites: a insegurança, o medo, a imaturidade. E, porque não há caminho de volta,  a única outra opção é não estar aqui para ver mais um dia de sol. 
Cito, para finalizar, o genial Nelson Rodrigues que, como minha amiga Mirian, admirava a velhice.  Aos 65 anos, saindo de quinze dias de coma em um hospital, quando Otto Lara Resende pediu a ele que desse um conselho aos jovens, Nelson Rodrigues declarou enfaticamente: “O que eu teria a dizer aos jovens de ambos os sexos é: envelheçam [amadureçam] depressa, com toda a urgência, envelheçam!”


--------------------------------------
Fonte: http://g1.globo.com/pop-arte/blog/yvonne-maggie/post/sobre-o-envelhecimento-saudades-das-coisas-indiziveis.html. Título original: 'Sobre o envelhecimento: saudades de coisas indizíveis'.