Temos visto de tudo um pouco no campo educativo ultimamente: opiniáticos que não têm uma grama de pesquisa empírica sequer sobre a educação dizendo como ela deve ser; o senso comum rasteiro que despreza os processos de avaliação (ou os realiza a toque de caixa, sem seriedade, na base do faz de conta); "estudos" que ignoram o significado do Estado como unidade de análise no âmbito das políticas educativas; a falta de rigor e de profundidade na relação de ensino e aprendizagem (outra vez: o faz de conta; no caso, que se ensina e que se aprende); a suspensão/substituição de aulas por atividades que em nada têm a ver com os conteúdos das disciplinas; formação de professores que, na verdade, não forma, não habilita novos docentes para o exercício da profissão. Tenho insistido nesses aspectos há tempos, nos debates em que tenho participado e no que tenho escrito - enfrentando inclusive incompreensões. Mas prefiro isso à "conversa mole" da "popularidade fácil", ou melhor dizendo, do populismo. Há que se entender pelos menos as VOIES D’ÉDUCATION ET DE SOCIALISATION. Pois bem, saiu mais um resultado do exame internacional PISA, coordenado pela OCDE, e a situação do Brasil é humilhante e vergonhosa. Caiu no ranking: ocupa a 59ª posição em leitura e a 66ª em Matemática. Por que essa realidade? A leitura da entrevista aí abaixo com Bernadete Gatti (uma referência na investigação sobre formação de professores e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas) auxilia na busca de uma resposta. Foi concedida à Revista Época, são reproduzidas as principais passagens.
ÉPOCA – O que falta na formação para
professor?
Bernardete Gatti – O problema da
formação de professores começa na faculdade. Os docentes [muitas vezes] não
ensinam para quem dará aula. Isso porque eles mesmos não aprenderam como fazer
isso. Para não dizer que a formação didática não existe, podemos dizer que ela
é precária. A maioria dos futuros professores não aprende como lecionar. Não
recebem na faculdade as ferramentas que possibilitarão que eles planejem da
melhor forma possível como ensinar ciências, matemática, física, química e
mesmo como alfabetizar. Muitos de nossos professores saem da faculdade sem
saber alfabetizar crianças. É um problema grave.
ÉPOCA
– Muito já se discutiu sobre como melhorar essa formação. Por que esses cursos
não mudam?
Bernardete – A gente
constata em entrevistas e em pesquisas com docentes das faculdades que eles não
têm a noção de que estão formando um profissional da Educação, que vai para a
sala de aula lidar com crianças e adolescentes. Dizer [para esses docentes] que
eles têm de formar professores para a sala de aula chega a escandalizá-los.
Muitos encaram essa questão como algo menor. Essa mentalidade vem de longe, lá
dos séculos XVI, XVII. E até hoje prevalece.
ÉPOCA
– Quais são os exemplos que podem nos inspirar?
Bernardete – Há iniciativas
bastante interessantes na Austrália, em alguns locais nos Estados Unidos, na
França, na Bélgica e na Itália. Essas iniciativas têm em comum o fato de
preservar a vivência em sala de aula do professor universitário. Aquele docente
que formará o professor trabalha em pesquisa, dá aula na universidade, mas não
perde o vínculo com o que ocorre na educação básica. Isso é importante porque,
à medida que as coisas mudam – e tudo muda sempre –, o conhecimento muda e as
relações educacionais também. As novas gerações trazem culturas diversificadas.
Quem formará os professores tem de frequentar a educação básica para
acompanhar esse movimento e manter-se em sintonia com as vivências escolares.
ÉPOCA
– Os cursos de pedagogia e de licenciatura proliferam nas instituições de
ensino superior. Os problemas mudam de acordo com o tipo de faculdade?
Bernardete – A maioria dos
professores hoje é formada por instituições de natureza privada (80% deles). Em muitas
delas, os cursos são encurtados e, de certa maneira, aligeirados. Esse
encurtamento não é permitido por lei. Ele ocorre porque as aulas podem ser
substituídas por seminários culturais e atividades programadas. O problema é
que esses eventos não são desenvolvidos a contento. O aluno que passa por esse
tipo de faculdade sai com precárias condições de entrar numa sala de aula. É
despreparado, especialmente, para trabalhar com alfabetização. Por isso, vemos
esses resultados de alfabetização problemáticos no país (13 milhões de pessoas não sabem ler e escrever. Uma em cada cinco
crianças de 8 anos não lê).
ÉPOCA – Um professor precisa passar por um
estágio obrigatório de 400 horas. Esse período é suficiente para dar a
experiência de sala de que os professores precisam?
Bernardete – A questão
principal é que essas 400 horas não são cumpridas como deveriam. A pesquisa de
campo mostra continuamente que esses estágios são feitos a toque de caixa. Não
há controle algum se as horas foram cumpridas, se o estudante estagiou mesmo ou
se simplesmente a declaração de que ele estagiou foi assinada por alguma
instituição que nunca o teve em sala de aula. As faculdades não providenciam
convênios com escolas ou redes para fazer um projeto de trabalho dos
estagiários junto aos professores da rede.
ÉPOCA – Em carreiras como Direito e medicina,
o aluno que conclui a faculdade tem de fazer um teste rigoroso que mostre que
ele aprendeu o que precisa. Isso poderia ser aplicado também aos candidatos a
professor?
Bernardete – Seria factível
tanto para a pedagogia quanto para as licenciaturas ter um exame nacional para
professores. Isso foi ensaiado na fase em que Fernando Haddad foi ministro da
Educação (2005 a 2012), tanto
que os pressupostos de um exame dessa natureza estão prontos lá no Inep [órgão do governo responsável pelas avaliações de Educação do país].
Mas não foi adiante porque há muita resistência e interferência política em
relação a isso. Não sei se essa seria uma solução. Mas um exame nacional como o
da OAB seria um indicador do nível de formação de nossos professores.
ÉPOCA – É possível sanar o déficit de
formação que os milhares de professores em serviço carregam?
Bernardete – Com esforço
muito grande. Os alunos saem da faculdade para a sala de aula com uma formação
tão precária que os esforços de especialização são punidos. O problema é que
temos uma distorção. Como as faculdades são muito ruins, o que deveria ser uma
especialização vira uma formação básica dada quando o professor já tem alunos
em sala. A formação continuada deveria ser um aprimoramento, uma forma de
enriquecer as aulas que ele já deveria saber conduzir. Isso não acontece.
Então, bancamos cursos para formar alfabetizadores, cursos para dar iniciação
em matemática, cursos para professores de ciências. Estados e municípios não
têm condições de programar e de controlar o que é feito nessas formações
continuadas, e os resultados educacionais continuam sendo bastante precários
apesar de todo o dinheiro investido – que não é pouco.
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Fonte: Entrevista concedida à Revista Época, 06/11/2016, realizada por Flávia Oshima.