quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O segredo das palavras guardadas


Por Isabel Allende 

Tinha o nome de Belisa Crepusculario, não por fé de batismo ou escolha de sua mãe, mas porque ela própria o procurou até o encontrar e com ele se ataviou. Percorria o país, desde as regiões mais altas a frias até às costas quentes, instalando-se nas feiras e nos mercados, onde montava quatro paus com um toldo de linho, debaixo do qual se protegia do sol e da chuva para atender a clientela. Não precisava de apregoar a mercadoria, porque de tanto caminhar por aqui e por ali todos a conheciam. Havia os que a aguardavam de um ano para o outro e quando aparecia na aldeia com a trouxa debaixo do braço faziam fila em frente da sua barraca. Vendia a preços justos. Por cinco centavos entregava versos de memória, por sete melhorava a qualidade dos sonhos, por nove escrevia cartas de namorados, por doze inventava insultos para inimigos irreconciliáveis. Também vendia contos, mas não eram contos de fantasia, mas longas histórias verdadeiras que recitava de enfiada sem saltar nada. Assim levava as notícias de uma aldeia para outra. As pessoas pagavam-lhe por juntar uma ou duas linhas: nasceu um menino, morreu Fulano, casaram-se os nossos filhos, queimaram-se as colheitas. Em cada lugar juntava-se uma pequena multidão à sua volta para a ouvir quando começava a falar e assim se inteiravam das vidas dos outros, dos parentes que viviam longe, dos pormenores da guerra civil. A quem lhe comprasse cinquenta centavos, dava de presente uma palavra secreta para afugentar a melancolia. Não era a mesma para todos, certamente, porque isso teria sido um engano coletivo. Cada um recebia a sua com a certeza de que ninguém mais a empregava para esse fim no universo inteiro e para lá dele.
Belisa Crepusculario nascera numa família tão miserável que nem sequer possuía nomes para chamar aos filhos. Veio ao mundo e cresceu na região mais inóspita, onde alguns anos as chuvas se transformam em avalanches de água que arrastam tudo e noutros não cai nem uma gota do céu, o sol aumenta até ocupar o horizonte por inteiro e o mundo torna-se um deserto. Até completar 11 anos não teve outra ocupação nem virtude senão sobreviver à fome e à fadiga dos séculos. Durante uma seca interminável coube-lhe enterrar quatro irmãos mais pequenos e, quando compreendeu que chegava a sua vez, decidiu começar a andar pelas planícies em direção ao mar, a ver se, na viagem, conseguia enganar a morte. A terra estava escalvada, partida em gretas profundas, semeada de pedras, fósseis de árvores e de arbustos espinhosos, esqueletos de animais, embranquecidos pelo calor. De vez em quando deparava com famílias que, como ela, iam até ao Sul seguindo a miragem da água. Alguns tinham iniciado a caminhada levando os seus haveres ao ombro ou em carrinhos de mão, mas mal podiam mover os próprios ossos e ao fim de pouco caminhar acabavam por abandonar as suas coisas. Arrastavam-se penosamente, com a pele feita couro de lagarto e os olhos queimados pela reverberação da luz. Belisa saudava-os com um gesto ao passar, mas não parava, porque não podia gastar as suas forças em exercícios de compaixão. Muitos caíram pelo caminho, mas ela era tão teimosa que conseguiu atravessar o inferno e, por fim, chegar aos primeiros mananciais, finos fios de água, quase invisíveis, que alimentavam uma vegetação raquítica e que mais adiante se transformavam em riachos e pântanos.
Belisa Crepusculario salvou a vida e, além disso, descobriu a escrita por acaso. Ao chegar a uma aldeia nas proximidades da costa, o vento pôs-lhe aos pés a folha de um jornal. Pegou naquele papel amarelo e quebradiço, esteve longo tempo a observá-lo sem adivinhar o seu uso, até que a curiosidade pôde mais que a timidez. Aproximou-se de um homem que lavava um cavalo no mesmo charco turvo onde ela saciara a sede.
— Que é isto? — perguntou.
— A página desportiva de um jornal — respondeu o homem sem dar mostras de espanto pela sua ignorância.
A resposta deixou a moça atônita, mas não quis parecer atrevida, limitou-se a perguntar o significado das patinhas de mosca desenhadas sobre o papel.
— São palavras, menina. Aí diz-se que Fulgêncio Barba derrubou o negro Tiznao ao terceiro assalto.
Nesse dia Belisa Crepusculario soube que as palavras andam soltas, sem dono, e que qualquer um com um pouco de manha pode agarrá-las para as vender. Considerou a sua situação e concluiu que além de se prostituir ou empregar-se como criada nas cozinhas dos ricos, poucas eram as ocupações que podia desempenhar. Vender palavras pareceu-lhe uma alterenativa decente. A partir desse momento exerceu tal profissão e nunca se interessou por outra. A princípio oferecia a sua mercadoria sem suspeitar que as palavras podiam também escrever-se fora dos jornais. Quando soube isso calculou as infinitas perspectivas do negócio, com as suas poupanças pagou vinte pesos a um padre para lhe ensinar a ler e escrever e com os três que lhe s sobraram comprou um dicionário. Leu-o de A a Z e depois atirou-o ao mar porque não era sua intenção cansar os clientes com palavras enlatadas.
Vários anos depois, numa manhã de Agosto, estava Belisa Crepusculario no meio de uma praça, sentada debaixo do toldo a vender argumentos de justiça a um velho que solicitava a sua pensão há dezessete anos. Era dia de mercado e havia muito bulício à sua volta. Ouviram-se golpes e gritos, ela levantou os olhos da escrita e viu primeiro uma nuvem de pó e, em seguida, um grupo de cavalos que dela saiu. Tratava-se dos homens do Coronel, comandados pelo feitor, um gigante conhecido em toda a região pela rapidez da sua faca e pela lealdade para com o chefe. Ambos, o Coronel e o feitor, tinham passado a vida ocupados na guerra civil e os seus homens estavam irremediavelmente unidos ao malefício e à calamidade. Os guerreiros entraram na aldeia como um rebanho em fuga, envoltos em ruído, banhados de suor e deixando atrás de si os destroços de um furacão. As galinhas desapareceram a voar, os cães largaram a correr, as mulheres abalaram com os filhos e não ficou no local do mercado vivalma a não ser Belisa Crepusculario, que nunca tinha visto o feitor e que por isso mesmo estranhou que ele se lhe dirigisse.
— Procuro-te a ti — gritou, apontando-a com o chicote enrolado e, antes que acabasse de dizer isto, dois homens caíram em cima da mulher atropelando o toldo e partindo o tinteiro, amarraram-lhe os pés e as mãos e puseram-na atravessada como um fardo de marinheiro sobre a garupa do cavalo do feitor. Depois começaram a galopar em direção às colinas.
Horas mais tarde, quando Belisa Crepusculario estava quase a morrer com o coração transformado em areia pelas sacudidelas do cavalo, sentiu que paravam e que quatro mãos poderosas a punham em terra. Tentou pôr-se de pé e levantar a cabeça com dignidade, mas faltaram-lhe as forças e caiu com um suspiro, afundando-se num sono pesado.
Despertou várias horas depois com o murmúrio da noite no campo, mas não teve tempo de decifrar esses ruídos porque ao abrir os olhos viu na sua frente o olhar impaciente do feitor, ajoelhado a seu lado.
— Finalmente acordas, mulher — disse, estendendo-lhe o cantil para que bebesse um gole de aguardente com pólvora e acabasse de recuperar à vida.
Ela quis saber a causa de tantos maltratas e ele explicou-lhe que o Coronel necessitava dos seus serviços. Deixou-a molhar a cara e depois levou-a até a um dos extremos do acampamento, onde o homem mais temido do país repousava numa rede pendurada entre duas árvores. Ela não conseguiu ver-lhe o rosto, porque ele tinha em cima a sombra incerta da folhagem e a sombra indelével de muitos anos a viver como um bandido, mas imaginou que devia ter uma expressão viciosa uma vez que o seu gigantesco ajudante se dirigia a ele com tanta humildade. Surpreendeu-a  a voz dele, suave e bem modulada como a de um professor.
— És tu a que vende palavras? — perguntou.
— Ao teu serviço — balbuciou ela, procurando na penumbra para o ver melhor.
O Coronel pôs-se de pé e a luz da tocha que o feitor levava iluminou-lhe a cara. A mulher viu a sua pele escura e os seus ferozes olhos de puma e percebeu logo que estava em frente do homem mais solitário deste mundo.
— Quero ser presidente — disse ele.
Estava cansado de percorrer aquela terra maldita em guerras inúteis e derrotas que nenhum subterfúgio podia transformar em vitórias. Passara muitos anos a dormir à intempérie, picado por mosquitos, alimentando-se de iguanas e sopa de cobra, mas esses inconvenientes menores não eram razão suficiente para lhe mudar o destino. O que em verdade o enfadava era o terror nos olhos dos outros. Desejava entrar nas aldeias debaixo de arcos de triunfo, entre bandeiras de cores e flores, que o aplaudissem e lhe dessem de presente ovos frescos e pão acabado de sair do forno. Estava farto de ver como os homens fugiam à sua passagem, as mulheres abortavam de susto e tremiam as crianças, por isso decidira ser presidente. O feitor sugeriu-lhe que fossem à capital e entrassem a galope no palácio para se apoderarem do governo, como tomaram tantas outras coisas sem pedir autorização, mas ao Coronel não interessava tornar-se noutro tirano, desses já tinha havido bastantes por ali e, além disso, dessa maneira não conseguiria o afeto das pessoas. A sua ideia consistia em ser eleito por votação popular nos comícios de Dezembro.
— Para isso tenho de falar como um candidato. Podes vender-me as palavras para um discurso? — perguntou o Coronel a Belisa Crepusculario.
Ela já tinha aceitado muitas encomendas, mas nenhuma como essa, no entanto não pôde negar-se, receando que o feitor lhe enfiasse um tiro entre os olhos ou, pior ainda, que o Coronel desatasse a chorar. Por outro lado, teve vontade de o ajudar, porque sentiu uma palpitação quente na sua pele, um desejo poderoso de tocar naquele homem, de percorrê-lo com as mãos, de apertá-lo entre os seus braços.
Toda a noite e boa parte do dia seguinte esteve Belisa Crepusculario à procura no seu repertório das palavras apropriadas para um discurso presidencial, vigiada de perto pelo feitor, que não tirava os olhos das suas firmes pernas de caminhante e dos seus seios virginais. Retirou as palavras ásperas e secas, as demasiado floridas, as que estavam descoloridas pelo abuso, as que ofereciam promessas improváveis, as que careciam de verdade e as confusas,  para ficar apenas com aquelas capazes de tocar com certeza o pensamento dos homens e a intuição das mulheres. Fazendo uso dos conhecimentos comprados ao padre por vinte pesos, escreveu o discurso numa folha de papel e fez logo sinais ao feitor para desatar a corda com a qual a tinha amarrado pelas canelas a uma árvore. Levaram-na novamente ao Coronel e ao vê-lo tornou a sentir a mesma ansiedade palpitante do primeiro encontro. Deu-lhe o papel e esperou, enquanto ele a olhava segurando-o com a ponta dos dedos.
— Que porra diz isto aqui? — perguntou por fim.
— Não sabes ler?
— O que sei fazer é a guerra — respondeu ele.
Ela leu em voz alta o discurso. Leu-o três vezes, para que o seu cliente pudesse gravá-lo na memória. Quando terminou viu a emoção no rosto dos homens da tropa que se haviam juntado para a escutar e notou que os olhos amarelos do Coronel brilhavam de entusiasmo, certo de que com essas palavras a cadeira presidencial seria sua.
— Se, depois de ouvirem três vezes, os rapazes continuam de boca aberta, é porque esta droga serve, Coronel — aprovou o feitor.
— Quanto te devo pelo teu trabalho, mulher? — perguntou o chefe.
— Um peso, Coronel.
— Não é caro — disse ele, abrindo a bolsa que trazia pendurada do cinturão com os restos do último saque.
— Além disso, tens direito a uma prenda. Correspondem-te duas, palavras secretas — disse Belisa Crepusculario.
— Como é isso?
Ela começou a explicar-lhe que, por cada cinquenta centavos que um cliente pagava, oferecia-lhe uma palavra de uso exclusivo. O chefe encolheu os ombros, porque não tinha o menor interesse na oferta, mas não quis ser indelicado com quem o servira tão bem. Ela aproximou-se devagar do tamborete de cabedal onde ele estava sentado e inclinou-se para lhe dar a sua prenda. Então o homem sentiu o cheiro de animal montês que saía daquela mulher, o calor de incêndio irradiado pelas ancas, o roçar terrível dos seus cabelos, o perfume de hortelã-pimenta sussurrando-lhe ao ouvido as duas palavras secretas a que tinha direito.
— São tuas,  Coronel — disse, ao retirar-se. Podes usá-las como quiseres.
O feitor acompanhou Belisa até à beira do caminho, sem deixar de a olhar com olhos suplicantes de cão perdido, mas quando estendeu a mão para lhe tocar, ela deteve-o com um chorrilho de palavras inventadas que tiveram a virtude de lhe espantar o desejo, porque julgou tratar-se de alguma maldição irrevogável.
Nos meses de Setembro, Outubro e Novembro, o Coronel pronunciou o seu discurso tantas vezes, que se não fosse feito com palavras refulgentes e duradoras o uso tê-lo-ia transformado em cinza. Correu o país em todas as direções, entrando nas cidades com ar triunfante e detendo-se também nas aldeias mais esquecidas, lá onde só o rasto do lixo indicava a presença humana, para convencer os eleitores a votarem nele. Enquanto falava em cima de um estrado no centro da praça, o feitor e os seus homens distribuíam caramelos e pintavam o seu nome com tinta dourada nas paredes, mas ninguém prestava atenção a esses recursos de mercador, porque estavam deslumbrados pela claridade das suas propostas e pela lucidez poética dos seus argumentos, contagiados pelo seu desejo tremendo de corrigir os erros da história e alegres pela primeira vez na sua vida.
Ao terminar a arenga do candidato, a tropa dava tiros de pistola para o ar e acendia petardos e, quando por fim se retiravam, ficava atrás um rasto de esperança que permanecia muitos dias no ar, como a recordação magnífica de um cometa. Imediatamente o Coronel se tornou o político mais popular. Era um fenômeno nunca visto, aquele homem surgido da guerra civil, cheio de cicatrizes, falando como um catedrático, cujo prestígio se espalhava pelo território nacional comovendo o coração da pátria. A imprensa ocupava-se dele. Os jornalistas viajaram de longe para o entrevistar e repetir as suas frases, e assim cresceu o número dos seus seguidores e inimigos.
— Estamos a ir bem, Coronel! — disse o feitor ao completarem-se doze semanas de êxito.
Mas o candidato não o ouviu. Estava a repetir as suas duas palavras secretas, como fazia, cada vez com mais frequência.
Dizia-as quando abrandava a nostalgia, murmurava-as adormecido, levava-as consigo no cavalo, pensava-as antes de pronunciar o seu célebre discurso e surpreendia-se a saboreá-las nos momentos descuidados. E em todas as ocasiões em que essas duas palavras lhe vinham à mente evocava a presença de Belisa Crepusculario e excitavam-se-lhe os sentidos com a recordação do cheiro montês, o calor de incêndio, o roçar terrível e o perfume de hortelã-pimenta, até que começou a andar como um sonâmbulo e os seus homens compreenderam que se lhe tinha acabado a vida antes de alcançar a cadeira dos presidentes.
— Que se passa contigo, Coronel? — perguntava-lhe muitas vezes o feitor, até que por fim, um dia, o chefe não aguentou mais e confessou-lhe que a razão do seu ânimo eram as duas palavras que trazia cravadas no ventre.
— Diz-mas, para ver se perdem o seu poder — pediu-lhe o fiel ajudante.
— Não tas direi, são só minhas — replicou o Coronel.
Cansado de ver o chefe a definhar como um condenado à morte, o feitor pôs a espingarda ao ombro e partiu à procura de Belisa Crepusculario. Seguiu as suas pegadas por toda a vasta geografia até a encontrar numa aldeia do Sul, instalada debaixo do toldo do seu ofício, contando o rosário de notícias. Ficou à sua frente com as pernas abertas, empunhando a arma.
— Vem comigo — ordenou.
Ela estava à sua espera. Guardou o tinteiro, dobrou o pano da barraca, pôs o xaile pelos ombros e, em silêncio, trepou para a garupa do cavalo. Não trocaram nem um gesto em todo o caminho, porque o desejo que o feitor sentia por ela se tornara raiva e só o medo que a sua língua lhe inspirava o impedia de a desfazer à chicotada, nem estava disposto a dizer que o Coronel andava aparvalhado, e que aquilo que tantos anos de batalha não haviam logrado, conseguiu-o um encantamento sussurrado ao ouvido. Três dias depois, chegado ao acampamento, levou de imediato a sua prisioneira até ao candidato, diante de toda a tropa.
— Coronel, trouxe-te esta bruxa para que lhe devolvas as suas palavras e para ela te devolver a hombridade — disse, apontando o cano da espingarda à nuca da mulher. O Coronel e Belisa Crepusculario olharam-se longamente, medindo-se à distância. Os homens compreenderam então que o seu chefe já não podia desfazer-se do feitiço das suas palavras, porque todos puderam ver os olhos carnívoros do puma tornarem-se mansos quando ele avançou e lhe pegou na mão.