Para quem, de algum tempo, conhece os textos mais propriamente políticos do inglês China Miéville, é um pouco "desconcertante", digamos, como se tem revelado a sua deambulação literária, se bem que vertida para o português em traduções nem sempre "a contento". Miéville é oriundo do trotskismo britânico (foi filiado ao SWP e atualmente pertence à Left Unity). Não há como deixar de perceber, em determinadas passagens, a presença de esquemas lineares ação/consequência que só surgem complexos pelo abuso barroco da multiplicação, cruzamento e fracionamento. Por estas e outras, já se escreveu, no suplemento cultural de Carta Capital, que a sua literatura é marcada por 'fantásticas esquisitices'. Contudo, penso que a questão é outra, mais profunda, e situada em âmbitos de "maior incidência". A movimentação dialética parece derrotada pelo prisma da monotonia impotente, como em 'Estação Perdido'. E há a armadilha lógica do 'plano moral'. Vai aí abaixo uma apreciação sobre o autor a partir de 'A Cidade & a Cidade'.
Por Marcos Beccari (UFPR)
Em sua crítica à obra de Tolkien, o escritor Michael Moorcock reduz o
universo tolkieniano a uma “confirmação perniciosa dos valores de uma classe
média moralmente falida”, e se justifica dizendo que prefere ser um escritor
ruim com grandes ideias do que o contrário. Trata-se de um discurso muito
similar ao de Saramago em seu “O ano da morte de Ricardo Reis”, onde a postura
filosófica do heterônimo de Fernando Pessoa é reduzida a uma covardia política.
Com isso quero esclarecer logo de início que minha crítica ao livro de China
Miéville passa longe deste tipo de argumento, notadamente moralista.
Mas é justamente este aspecto moralista que pretendo
apontar em A cidade & a cidade:
não sua moral em si, mas a interdição pela qual esta moral é apresentada. Logo,
não se trata de uma discussão sobre o posicionamento do autor (sobre isso,
conferir meu ensaio sobre autoria), tampouco sobre o meu
posicionamento, que obviamente não deixa de influenciar minha leitura – a
saber, penso que antes de dividir o mundo em luta de classes, numa lógica
antagônica de exploradores e explorados, diante da qual o engajamento se torna
obrigatório para escapar à alienação, convém refletir se nossa realização
existencial depende mais de uma postura crítica ou de um jogo puramente estético (conforme
defendo aqui, aqui e aqui).
A crítica que pretendo tecer a seguir incide sobre o
pensamento intolerante que, na obra em questão, aparece sob a forma de
esclarecimento. Mais precisamente: o aspecto enganoso de um saber do qual “não
se pode voltar atrás” e que decreta, sob um aparente realismo, julgamentos tão
idealistas quanto aqueles contra os quais insurge. Claro que discutir sobre
juízo implica inevitavelmente outro juízo, o que pode facilmente anular a
discussão por meio da fórmula “cada um tem a sua opinião”. Mas a necessidade de
recorrer a este fato, que é tão legítimo quanto já implícito, só confere outra
roupagem ao moralismo que aqui critico. Se o anuncio, pois, é para explicitar a
insidiosa manobra deste tipo de moralismo: denunciar a “intolerância humana”
por meio de um princípio de tolerância que, ao estabelecer os limites do
tolerável, não assimila sua própria contradição.
I. Resumo da história (com spoilers)
Duas cidades que ocupam o mesmo espaço geográfico, em
territórios sobrepostos, estão separadas e monitoradas por um poder secreto
chamado Brecha. A sinopse da quarta capa já resume as regras: “em ambas as
cidades, ignorar a separação, mesmo sem querer, é considerado um delito
imperdoável, mais grave do que cometer um assassinato”. Tendo línguas
diferentes, assim como sistemas econômicos, políticos e ideológicos opostos e
uma história de rivalidades e hostilidades, os cidadãos das duas cidades se
esforçam diariamente para ignorar a existência dos estrangeiros com os quais
convivem. A fronteira só pode ser cruzada pela Cópula, construção que serve de
conexão única entre as cidades, sendo necessário apresentar passaporte à
imigração e, ao retornar para o mesmo território, inverter seus hábitos para
não mais ser visto e ouvido por seus próprios concidadãos.
Narrada em primeira pessoa, a história se inicia com a
investigação do assassinato de uma jovem. O protagonista-narrador e encarregado
da investigação é Tyador Borlú, inspetor do Esquadrão de Crimes Hediondos de
Beszel (uma das duas cidades). Inicialmente ele supõe que a jovem assassinada
tenha sido apenas uma prostituta, de modo que seu assassinato tenha a ver com
uma transição ilegal entre as duas cidades. Aos poucos, porém, ele descobre que
a moça era uma arqueóloga estadunidense que trabalhava numa escavação em Ul
Qoma (a outra cidade) e pretendia desvendar a origem da separação entre as
cidades. Este é o pretexto para Borlú, este típico personagem kafkiano (que é
sempre frustrado pelos meios burocráticos que o impedem de encontrar sua tão
enigmática verdade), começar a explorar a complexidade da Brecha e a desconfiar
da existência de uma terceira cidade.
Situadas no Leste Europeu e herdando um nebuloso passado
autoritário, Beszel e Ul Qoma são cidades pós-soviéticas que significam,
respectivamente, “fala” em húngaro e “chão” em hebraico. A escolha dos nomes
sugere um mecanismo de exclusão-inclusiva – a “fala” simultaneamente depende e
anula seu “chão”, ou seja, qualquer palavra só faz sentido no lugar onde ela é
dita e, porém, permanece estranha a este mesmo lugar –, mecanismo este que
caracteriza o poder da Brecha, cuja lei só pode ser aplicada na medida em que
conserva um aspecto não aplicável. No decorrer de sua investigação, Borlú
testemunha outras mortes misteriosas que despertam a atenção da Brecha, que o
acusa de violação. Inserido agora numa situação “além da lei”, Borlú
inicialmente é interrogado, depois passa a “pertencer” e a colaborar com a
Brecha, por meio da mesma investigação que iniciara.
Resumo do fim (alerta de spoiler): ao descobrir que as evidências da terceira
cidade foram plantadas, Borlú compreende que aquela arqueáloga foi assassinada
justamente por descobrir a fraude em que estava envolvida. Aos poucos, contudo,
este caso vai perdendo relevância na medida em que Borlú começa a assimilar o
verdadeiro funcionamento da Brecha. Com ele, compreendemos nada mais que o
óbvio: não é a Brecha que mantém as cidades separadas, mas as próprias pessoas
dessas cidades. Trata-se de uma entidade que não existe senão na medida em que
ela justifica a separação, e também como espécie de abrigo para quem descobre a
verdade. Dito de outro modo: se você comete brecha, ou seja, se se esquece de
“desver” a outra cidade, você não pode voltar atrás. Mediante o dilema de
apoiar a Brecha ou apenas ficar vagando (sem ser visto) entre as cidades, Borlú
escolhe apenas não interferir em nada, sem deixar claro para onde é que ele
foi: “Somos todos filósofos aqui onde estou, e debatemos entre muitas coisas a
questão de onde é que vivemos”.
II. A moral da exceção redentora
Numa atmosfera paranoica e conspiratória, o autor associa
um sistema autoritário ao paradoxo de Schrödinger para no fim desfazer tudo com
uma lição de alienação. Uma desgastada comparação, mas que considero justa, com
a caverna platônica logo seria considerada ingênua sob o argumento de que a
separação entre as cidades não é metafísica, apenas simbólico-cultural. Sendo
assim, é preciso demonstrar como o aspecto metafísico pode estar desde o início
imbricado num discurso realista. Comecemos com a lição de moral: a separação
entre Beszel e Ul Qoma evoca dicotomias sociais baseadas em alienação, ou seja,
cegueira e autoengano condicionados pela educação e pelo medo de sanções como a
exclusão social. O conceito de Brecha, por sua vez, remete ao esclarecimento
daqueles que compreendem o caráter ilusório e arbitrário dessas separações e
podem ver além delas, mas as consideram indispensáveis para manter a alienação
da qual se afastaram e à qual não podem retornar, por não conseguirem
“desaprender” o que descobriram.
Esta noção de “esclarecimento” já se mostra
suficientemente contraditória para ser levada em conta: achar que se consegue
“ver além” das separações implica criar outra separação, aquela entre os que
conseguem ver e os que não conseguem, entre esclarecidos e alienados. Sobre
este engodo metafísico, já dissertei brevemente em outra ocasião. Interessante é saltarmos direto para o aspecto
central da estratégia pedagógica e moralista da narrativa em questão: o
controle instituído não tanto pelas convenções, mas antes pela necessidade de
haver uma exceção. As leis e convenções evidentemente pressupõem um estado de
normalidade para serem aplicadas, já que sua aplicação só incide nos casos que
contrariam esta normalidade. A exceção, contudo, reside numa zona de
indiferença, num limiar entre o normal e o não-normal. Este é precisamente o
espaço da Brecha separando as duas cidades.
Neste cenário, como vimos, não é a exceção (Brecha) que
se subtrai à regra (separação), mas é a regra que inventa uma exceção para
constituir-se como regra, sempre em relação à exceção. O vigor da separação
entre cidades, portanto, consiste nessa capacidade de manter-se em relação a
uma brecha, uma exceção sem a qual esta separação não existiria. Donde podemos
concluir que, neste caso, a norma se aplica “desaplicando-se”. A exceção
(Brecha) é a forma extrema de incluir algo por meio de sua exclusão. Enquanto
recurso narrativo, tal esquema pode até parecer bem sofisticado. Só que não são
poucos os filósofos que consideram a exceção não como algo externo à ordem
jurídica, mas justamente como estrutura pela qual as normas se legitimam. Em
Agamben, por exemplo, a exceção refere-se tanto à vida excluída da comunidade
quanto à insígnia do soberano – polos estes que, em A cidade & a cidade, apenas encontram-se
centralizados em um único espaço (ou ainda, não-espaço).
Não é por acaso que, ao final da história, Borlú descreve
sua nova condição como “vida nua extra-cidade”. Para Agamben, a noção de “vida
nua” significa uma vida em estado de exceção, ou seja, que por direito está
desprovida de todo direito. Esta vida só pode ser vivida, segundo Agamben, pelo homo sacer (homem
sagrado), aquele que o povo julgou por algum delito incondenável. Por não ser
condenável, não é lícito sacrificá-lo nem prendê-lo; no entanto, se alguém o
mata, não será condenado por homicídio. O homo sacer se define então por ser
não-sacrificável, porém exposto à morte. O aspecto sagrado, com efeito, diz
respeito à sua dupla localidade jurídica: no direito divino, que o impede de
ser sacrificado, e no direito dos homens, que permite que o matem sem haver
homicídio. O exemplo mais claro de homo sacer é a figura do messias, como Jesus ou
Maomé. Mas Agamben prefere eleger como figura emblemática o messias de Kafka:
um camponês que, situado diante de uma porta aberta custodiada por um guardião,
não é capaz de atravessá-la.
[…]
a história kafkiana expõe a forma pura da lei, quando ela se afirma com mais
força, no ponto em que não prescreve nada, quer dizer, como bando. O camponês
está consignado à potência da lei, porque esta não exige nada dele, só lhe
impõe a própria abertura. Segundo o esquema da exceção soberana, a lei se
aplica desaplicando-se, o tem em seu bando abandonando-o fora de si. A porta
aberta, que está destinada só a ele, o inclui excluindo-o e o exclui
incluindo-o. – Giorgio Agamben, Homo sacer: el poder soberano y la nuda vida I (Valência: Pre-Textos, 1998, p. 57-58,
trad. minha).
Uma interpretação recorrente
consiste em ver nesta cena kafkiana uma lei vigente que apenas não possui
significado (uma pura forma de lei que nos obriga algo sem prescrever nenhum
conteúdo determinado). Mas Agamben vai adiante, em direção à leitura de Benjamin,
associando tal esquema ao messianismo: enquanto uma lei sem significado tende a
coincidir com a vida (que não prescreve conteúdo algum), no estado de exceção
messiânico é a vida que se transforma inteiramente em lei. A vontade messiânica
do camponês de Kafka, neste registro, é a mesma de Borlú: desvendar o absurdo e
descobrir que lei é esta que rege sem significado. A lamentação por não
consegui-lo, contudo, mesmo que disfarçada de escolha própria (como no caso de
Borlú), expressa sua irreparável condição de abandono messiânico: iluminado por
saber que tudo é uma farsa, sem, contudo, poder fazer nada a respeito.
Por isso sua vida transforma-se inteiramente em lei, como
uma divindade ambulante que transita acima do bem e do mal, mas ainda ameaçado
pela morte – ou pela exceção da exceção, por uma brecha ainda não descoberta,
enfim, pela conspiração que o incluiu e excluiu de sua vida banal. O que
podemos concluir, portanto, é que, enquanto Agamben desenvolve, com tal
digressão, uma abordagem escatológica para compreender Estados totalitários,
Miéville se detém a retratar, sob um filtro kafkiano, a absolutização da
alienação em sua anedota das cidades – ou seja, basicamente o que Platão fez em
sua anedota da caverna, cujo personagem é igualmente incluído e excluído de seu
próprio meio. Até aqui, contudo, alguém ainda poderia argumentar que o autor de A cidade & a cidade nada mais faz do que resgatar, ainda
que por uma via desgastada, o debate político na esfera da fantasia. Sendo
assim, é preciso definir com mais clareza o moralismo que atribuo à sua
empreitada.
III. Moralismo formal ou estruturalismo transcendental
A estrutura formal que sustenta a história em questão, a
meu ver, é a mesma da psicanálise: de um lado, princípio de realidade como
força de decepção e, de outro, princípio de ilusão como força paranoica
simbólico-inconsciente. O que importa é esta oposição entre o real e o
não-real, distinção necessária para uma suposta aptidão em apreender o real em
seu fundo, o real verdadeiro, o real que somente se mostra enquanto tal por
meio da decepção mediante o não-real desvendado. Só que além de psicanalítico,
o esquema formal de A cidade & a cidade é também estruturalista, pois atribui
ao “reino simbólico” uma terceira ordem: não somente o real e o imaginário, mas
suas relações, sobretudo as perturbações dessas relações, devem ser pensados
como o limite de um processo no qual eles se constituem a partir do simbólico.
Na história de Miéville, Brecha é o elemento simbólico
que se define de maneira dupla, ao mesmo tempo real e irreal, ou ainda como
mediação “mais profunda” entre dois reinos. Não se trata de essencialismo ou
nominalismo porque o simbólico refere-se a elementos formais que, em si mesmos,
não têm nem forma, nem significação, nem representação, nem conteúdo, nem
realidade, nem inteligibilidade por detrás das aparências. Entretanto, ele
pretende se referir a um “subsolo” de onde brotam as ideias, as representações,
os significados etc. A narrativa de Borlú, em primeira pessoa, é cuidadosamente
articulada para demonstrar o funcionamento do simbólico: vemos uma necessidade
de ir lentamente, de dizer e de redizer não como as coisas são, mas antes o que
elas não são.
Do mesmo modo, nem as duas cidades nem a Brecha podem ser
definidas, senão negativamente, por realidades pré-existentes: não se trata de
locais numa extensão real, nem de lugares em extensões imaginárias, mas de
locais e lugares num registro meramente topológico. O resultado deste exercício
não consiste em níveis ontológicos, mas em posições relacionais – posições que
as pessoas ocupam, dando forma a identidades e papéis preestabelecidos. Com
efeito, todos os personagens e acontecimentos de A cidade & a cidade desempenham seus papéis segundo uma
ordem transcendental, uma vez que os lugares prevalecem sobre aquilo que os
preenche. O critério relacional, deste modo, garante que os lugares a serem
ocupados não tenham designação extrínseca nem significação intrínseca – o
significado é apenas efeito da combinação de posições na estrutura.
Se a posição é primeira em relação àquilo que a ocupa,
não bastará certamente colocar a mentira no lugar da verdade para se mudar a
estrutura. Eis o conceito de alienação aqui sustentado: os preconceitos não
existem independentemente das relações nas quais entram e pelas quais se
determinam reciprocamente. O problema de todo este esquema não é que os
significados sejam sempre determinados por relações simbólicas, o problema reside
na exceção que sustenta esta regra: a suposição de uma totalidade determinante
e invisível, ou melhor, visível apenas aos iniciados da Brecha. É justamente o
efeito total de um mecanismo cego, incapaz de diferenciar-se no espaço e no
tempo, que contradiz estre próprio mecanismo – em contraposição, menciono a
sutileza de Philip K. Dick que, em seu famoso conto Minority Report, nos mostra como um sistema jurídico é
somente “perfeito” se não assimilar, na forma de unidade e coerência interna,
seus próprios princípios de constituição.
De fato, não é simples pensar na ordem simbólica. Porque
para explicar o aspecto relativo de todas as questões, ela deve aparecer como
categoria plenamente objetiva e externa a seus próprios termos – ao menos sob o
viés estruturalista, que oculta o aspecto auto-diferencial (acaso) das
dinâmicas simbólicas. O esquema estruturalista de Miéville resolve a questão
simbólica à maneira lacaniana, isto é, supondo uma “Coisa” que tem por
propriedade não estar onde é procurada e, no entanto, ser encontrada onde não
está. Trata-se de uma entidade similar ao absurdo kafkiano: um vazio ou abismo
por detrás das aparências, como uma propriedade (que não deixa de ser
metafísica, mesmo que mais abstrata e conceitual) fundamental, sem a qual as
relações simbólicas não funcionariam.
A lógica é a seguinte: assim como os jogos de tabuleiro
têm necessidade da “casa vazia”, sem a qual nada avançaria, deve haver um
buraco que é o próprio cerne de nossa subjetividade. Neste raciocínio, nossos
preconceitos seriam artifícios que colocamos “no lugar” da Coisa, usando-os
para ignorar a Coisa, escondê-la, porque não a suportamos. De maneira ampla,
trata-se de dizer que a mídia, o Estado, a igreja, a família e as próprias
pessoas sempre lançaram mão de transferir a culpa individual para um inimigo
externo, imaginário, abstrato. O que devemos questionar aqui é: mas não seria a
própria Coisa uma entidade abstrata inventada por Lacan? O que equivale
perguntar: não seria a noção de Brecha apenas outro nome para essa transferência
do “mal em nós”? Ora, essa ideia de transferência do mal em nós só faz sentido
se, antes, pressupormos que há o Mal – o inconsciente, o demônio, Deus etc. O
que implica dividir a vida em um lado bom, reconhecido, e um lado mau, negado.
Portanto, a própria possibilidade transferir o mal
depende de uma negação (do lado mau) e não de uma suposta estrutura vazia que
nos define. Justificar a negação por meio da Coisa é, a meu ver, apenas
reforçar a negação inicial. Não é de se espantar que, em seu Seminário VII,
Lacan fala de uma “tendência nativa do homem à maldade, à agressão, à
destruição”, definindo a partir disso a promessa redentora da psicanálise:
somente por meio do autoconhecimento o homem pode se salvar de sua natureza
cruel. Sendo assim, não me parece forçado comparar a famosa sentença de Lacan
segundo a qual “ao afastarmos a Coisa, afastamo-nos de nós mesmos” com a máxima
de Agostinho: “todas as tentações da carne mantêm-nos afastados desta parte de
nós para além da carne”.
Deixando a metafísica de lado, o aspecto moralista
lacaniano reside em sua proposta ética: amar à Coisa como a nós mesmos.
Significa “abrir os olhos” para o abismo (pressuposto) que resiste à
simbolização, para o horror que é reconhecer-se como vazio. Em A cidade & a cidade, vemos algo muito próximo:
buscar a estrutura que determina todas as outras (Coisa) e desvendar as
ideologias que nos alienam (autoconhecimento). Em todo caso, autoconhecimento
entendido como um caminho sem volta, uma passagem para a “vida-nua” que se
julga mais real do que a vida banal. Aqui o moralismo é formal porque a própria
possibilidade de um nível “mais real” pressupõe uma negação do nível banal,
alienado – ou seja, uma estrutura construída para uma exceção messiânica, para
uma brecha redentora.
IV. Moralismo narrativo ou a
tolerância intolerante
O imperativo lacaniano de “amar à Coisa como a nós
mesmos” remete de imediato o mandamento cristão “amai ao próximo como a ti
mesmo”. No raciocínio lacaniano, porém, nossa tendência natural seria a de odiar
o próximo, pois vemos nele a Coisa, o lado obscuro, horrível, que preferimos
não enxergar em nós mesmos. Para amar o próximo, portanto, seria necessário
antes amar a Coisa em nós – o que, na prática, representa uma forma de
intolerância, ainda que dialética: tolerar no outro o que não tolero em mim
mesmo. Exclui-se assim o outro, na medida em que sua singularidade não é
admitida a não ser na medida em que não passa de uma projeção da minha. O
caminho do autoconhecimento é então condição para esta in-tolerância, do mesmo
modo que, para Marcuse, em sua bizarra Crítica da tolerância pura,
o conhecimento é o que mantém a tolerância nos limites do tolerável.
Com efeito, entre afirmar a tolerância e praticá-la pode
haver uma contradição de princípio. O ato de tolerar supõe, em primeiro lugar,
o reconhecimento de referenciais, de valores, para em seguida (e somente aqui
há tolerância) excluir tudo o que contradiga os princípios iniciais que
tornaram possível esta tolerância. Trocando em miúdos, uma prática não
contraditória de tolerância implica não haver limites do tolerável. Donde
podemos deduzir que lutar contra uma ideologia, por exemplo, é desde o início
uma prática intolerante. Ou ainda: que excluir a intolerância, decretar a intolerância
como algo intolerável, é já ser intolerante. Este é o raciocínio de Clément
Rosset, em sua Lógica do Pior, ao
propor uma “ética do acolhimento” – acolhimento que nada tem a ver com o amor
cristão, e sim com o reconhecimento de que o outro acolhido é inassimilável.
Trata-se de um prisma nietzschiano pautado, acima de tudo, na impossibilidade
de se reconhecer valores permanentes tais como a Coisa lacaniana.
Bem diferente é a moral conjugada em A cidade & a cidade, onde a tolerância somente
torna-se possível como síntese dialética de um sistema de intolerâncias. Vimos
que o esquema formal de A cidade & a cidade estabelece, sob um viés lacaniano, o
horror e o engodo como imperativos categóricos. Simultaneamente intolerante e
contraditório, tal cenário se apoia em um princípio de tolerância que exclui de
seu próprio campo do tolerável aquilo que não se está disposto a tolerar. Em
outros termos, o esquema ético assim elaborado pauta-se em valores (horror e
engodo) que, tão logo naturalizados, excluirão tudo o que contradiga o que
assim se admitiu. Uma vez na Brecha, você não pode voltar atrás, pois não
consegue mais “desver”.
O que o protagonista Borlú, após desvendar o assassinato,
passa a se questionar é como um tal “desver” é possível, o que resulta
numa confrontação, neuroticamente repetida, entre o caráter ilícito desta
pergunta e o fato de sua persistência. Eis a matéria de uma indignação
indefinidamente renovável (fonte permanente, sob uma leitura nietzschiana, de
todas as formas de intolerância): a ideia de haver uma explicação, logo uma
meta, um caminho para se alcançar um “mais real” em relação ao que existe (ou
em relação a si mesmo, ou ao próprio olhar que contempla tal possibilidade).
Tão logo reconhecida a possibilidade deste “mais real”, está preparada a
proibição incidindo sobre tudo aquilo que se estimará ser obstáculo a essa
direção. Com a isso sua vida é aos poucos transformada em lei: só valerá a pena
continuar a viver desde que (eis a lei) se transcenda a um nível mais real.
É a partir de um imperativo como este que Bataille, por
exemplo, defendeu que a afirmação da vida só pode se dar no limite da dissolução
de si. Esta condição de “dissolução de si” somente existe em relação a uma
vontade de completude, a partir da qual a razão “abre os olhos” paranoicamente
para o nada, o vazio, o abismo, como que esperando chegar, por um instante que
seja, o tão sonhado Real (então negado desde o princípio). É por isso que, sob
o olhar estoico de Bataille (assim como no cristianismo paulino e na doutrina
lacaniana), é preciso haver dissolução de si, um estado de isolamento integral
que, na trama de Miéville, impede Borlú de rever seus familiares e amigos após
seu “despertar” para a Brecha. Quanto a isso, estou mais inclinado a pensar
como Michel Onfray, para quem qualquer busca de transcender a ordem simbólica
implica uma renúncia voluntária da vida – e assim o filósofo caracteriza o
ascetismo estoico: fazer da dor e do sofrimento vias de acesso ao conhecimento
e à redenção pessoal. Resultado: obstinação de buscar o inexistente, logo a
encontrar a frustração, mesmo que obtendo certa sensação de heroísmo pela
renúncia de si.
Não por acaso há um tom de exclusividade na última fala
de Borlú: “Somos todos filósofos aqui onde estou […] sou um liberal […] vivo no
interstício”. Se nada mais resta a ser descoberto, não há onde viver além do
interstício, ou seja, entre questões que, por uma questão de tolerância, não
devem ser desvendadas para todos. É assim que os filósofos-reis da República
pretendem conceder aos cidadãos todas as liberdades, exceto aquela de atentar
contra a liberdade; e é do mesmo modo que os revolucionários de 1968 puderam
retorquir que “é proibido proibir”. Nas duas fórmulas, vemos a mesma ética de
exclusividade e intolerância: daquilo que se admite em nome da tolerância,
exclui-se em nome desta mesma tolerância. Contradição esta que já se encontra
na Carta sobre tolerância de Locke, que, no século XVII,
reclamava uma tolerância universal em matéria política e religiosa, com
exceção, claro, das opiniões contrárias aos interesses do Estado e às verdades
da religião.
Em A cidade & a cidade,
este princípio de tolerância representa decerto uma natureza obscura, um vazio
constituinte contra o qual é criminoso atentar; ao mesmo tempo, contudo,
trata-se de uma espécie de exceção providencial, milagre pelo qual Deus (ou a
Coisa) fez os homens à sua imagem. Daí resulta o iluminar da Brecha que não
concede o título de “iluminado” senão àquele que reconhece seu mistério (no
caso, seu absurdo, vazio, abismo), operação simbólica pela qual o homem
alienado transcende ao nível de homo sacer (no caso, esclarecimento soberano). Em
todo caso, todos os cidadãos, estejam ou não dispostos a aceitá-lo, participam
deste sistema sem-significado que é mantido em segredo pelos iluminados.
Por este caminho, aquilo que um dia foi chamado de Deus,
depois de Natureza, de Liberdade, de Direitos Universais e, mais tarde, com
Hegel, de “espírito absoluto”, continua a respirar em pleno vigor por meio de
uma miríade de opções metafísicas, especialmente naquelas que se proclamam
anti-idealistas. No caso da narrativa de Miéville, este imperativo moral
poderia ser assim definido: “o caminho certo só existe no caminhar em si”.
Basta continuar caminhando (buscando a verdade, autoconhecimento), o importante
é simplesmente sair do lugar. Ora, o que significa sair do lugar? Evolução
espiritual? Quase isso: o reconhecimento tão difícil de que ninguém é especial,
mas pode tornar-se ao descobrir isso. Definitivamente, este despertar kafkiano
consegue realizar a façanha de ser mais messiânico do que Cristo.
É com base neste moralismo que muitos não admitem que
pessoas simples, contidas e felizes consigo mesmas possam obter uma realização
existencial – para um intelectual como Bordieu, por exemplo, a adesão à moral
dominante jamais poderá levar a uma autonomia do indivíduo. Por que é que uma
vida “alienada”, acrítica, que não questiona a moral vigente, estaria fadada ao
fracasso? Quem é que determina qual é o caminho autêntico e o ilusório, o mais
covarde e o mais dignificante? Por que ideias e conceitos pré-fabricados não
podem vir a instaurar novas ideias? Meu ponto é que todo moralismo não admite
outros deuses que possam concorrer com os que ele promove. Seria totalmente
contraditório, portanto, eu defender que este ou aquele moralismo nos aliena
das relações de dominação que os ordenam. Quer dizer, é preciso ter em mente
que a transgressão da ordem é elemento constituinte desta mesma ordem.
O grande problema que vejo no moralismo de A cidade & a cidade é, em última análise, o de excluir as
diferenças por meio uma conduta homogeneizante, notadamente idealista, que
elimina outros modos de existência. Qualquer versão do idealismo precisa de uma
medida comum para localizar verticalmente as diferenças, ou seja, um critério
para que as aparências sejam consideradas separadas e distintas das essências.
Tentar distinguir uma dimensão “mais real” é exatamente o mesmo processo.
Ademais, não admito o argumento de que, neste livro, Miéville levanta um
questionamento de suas próprias premissas narrativas. Não há nenhum sinal que
aponte vagamente para uma permeabilidade de limites e padrões que não se oponha
e nem se submeta diretamente à lógica vertical das estruturas
simbólico-cotidianas.
Não há, por exemplo, qualquer possibilidade de uma
horizontalidade nietzschiana, isto é, uma conduta que não se confunde com
nenhum tipo de isomorfismo (igualdade ou democracia), mas que, ao invés disso,
parte da impossibilidade de se achar uma medida que possa dar conta das diferenças,
das relações sociais e da multiplicidade do real. Também não existe, nesta
história de Miéville, a menor possibilidade de uma moral spinozista: uma
orientação móvel que não depende de distinção entre idealismo e realismo, ou
entre obediência e transgressão, mas que se redefine sempre em relação a cada
ocasião. Ou ainda, não resta o menor espaço para aquilo que Deleuze chama de
expressão ou estilo, uma voz que não depende de nenhuma essência para marcar um
modo singular de ser e agir no mundo. Em suma, a moral de A cidade & a cidade não se detém no mundo “aparente”, mas
pretende superá-lo.
Mesmo no caso de uma leitura que enxergue em Borlú nada
além do que o exemplo de alguém que apenas transformou seus valores em um modo
de vida, é preciso lembrar que, uma vez inserido neste modo de vida, todos os
outros modos lhe foram proibidos. Logo, tal contexto não parece permitir outra
saída além das posições já determinadas e da transcendência sem-volta. Por
conseguinte, a narrativa não reconhece o giro simultâneo e coincidente da
contestação e do recalcamento, das trocas e embates entre a moral instituída e
a marginalia, numa concatenação que se origina pelas margens e que nunca atinge
homogeneamente todos os segmentos da vida social. Pelo contrário, trata-se de uma
distopia baseada no medo permanente, numa insegurança generalizada e vigiada
por aqueles que se frustraram ao descobrirem que seu grande inimigo são eles
mesmos. A pretensão de superar o real, assim, não reside na distorção operada
pela distopia, mas justamente no olhar que só consegue entender o mundo ao seu
redor por meio deste filtro caricato.
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Fonte: http://www.revistacliche.com.br/