terça-feira, 15 de março de 2016

Sobre Príncipes e Leviatãs.

Por Carlos Melo 
(Cientista político, INSPER)

“A condução coercitiva” de Lula tende a se tornar uma polêmica de longo prazo e um caso clássico da confusão entre Justiça e Política, que no limite será decidida pelos ministros do Supremo – quase nunca com unanimidade, tal sua complexidade de aspectos processuais, filigranas jurídicas, interpretações sutis de leis, artigos, parágrafos, alíneas e acórdãos requer uma vida de dedicação a isto.
E também por seu apelo político, é óbvio. Para o analista político isto tudo é interessante na medida em que expõe conflitos e disputas, à maneira em que conformam um quadro da realidade e expõe suas consequências. Assim como a política não é questão para advogados, o direito e o processo jurídico traz muita confusão para politólogos que não se especializaram nesse mister.
Nos limites do meu saber e de minha profissão, prefiro pensar nessa questão sob dois aspectos: 1) seus efeitos políticos; e, em paralelo, 2) a pouco saudável dependência que, hoje, a política demonstra em relação à Justiça.
Em relação ao primeiro ponto, parece-me óbvio que a condução coercitiva de Lula teve efeito na mobilização das ruas e na ainda maior radicalização do debate. Submeter uma liderança como Lula aos rigores a que outros foram submetidos sempre despertará queixas e aplausos.
Queixam-se aqueles que supõem que a folha de serviços prestados pelo ex-presidente seria um espécie de salvo-conduto; aplaudem os que acreditam que Lula não se distingue dos demais – o que é correto –, mas que também, ao mesmo tempo, não reconhecem qualquer eventual bom serviço prestado ao país pelo ex-presidente.
Os primeiros apontam o autoritarismo e a truculência judicial, a tentativa de humilhar o líder político, acuá-lo; os outros, que Lula se fez e se faz de vítima, tendo aproveitado com maestria as chances que lhe foram dadas pela 24a. fase da Lava Jato; voltando a comunicar-se com sua base social da formal emocional de que é mestre, dramatizando e politizando o processo jurídico; Lula deu seu espetáculo particular e esta será sua narrativa.
Não se trata de discutir qual dos lados têm razão, talvez tenham os dois. Certamente, eventuais erros de Lula não deveriam servir para negar seus acertos; e, tampouco, seus acertos deveriam justificar erros. O fato politicamente relevante é que, daqui por diante, tudo o que se passar na Operação Lava Jato, envolvendo Lula, será analisado com os óculos da política, a inescapável política, mesmo que os argumentos jurídicos sejam justos e os mais perfeitos. Tudo será política. Como disse Danton, às portas da guilhotina, “o processo é político”.
A conexão entre Justiça e Política está dada e ela me parece , de dificultado debate racional e moderado — dispensável discutir o caso dos promotores do MP de São Paulo, espetáculo à parte. Mas, o que mais perturba ao analista político, neste contexto, é a ausência e a fragilidade dos demais Poderes — o Executivo e o Legislativo –, onde, por essência a política deveria correr solta, muito mais do que na seara ou nos debates sobre a Justiça. Eis o segundo e mais fundamental aspecto que gostaria de levantar.
O Executivo, no entanto, afoga-se nas suas mazelas; na crise econômica, nos desatinos de gestão e em crimes praticados nessa interface nebulosa que são as relações empresa-governo no Brasil. O Legislativo, se perde no fisiologismo, no oportunismo eleitoral, na profusão de partidos e interesses menores, no nanismo de suas lideranças.
Os agentes políticos que comandam esses poderes, tanto em um caso como no outro, não demonstram estatura necessária para enfrentar os excepcionais desafios do presente, encontrar e apontar saídas para a crise e conduzir o processo político, arcando com suas implicações e consequências jurídicas. São arrastados pelos fatos, encontram-se na dependência do Poder Judiciário.
O exemplo mais evidente disto se dá em torno do caso de Eduardo Cunha. É justo que o Ministério Público Federal instrua com muito cuidado o processo contra o deputado – é um parlamentar no exercício do mandato; mais natural ainda que o Supremo avalie a julgue os pedidos do PGR com redobrada atenção os processos que envolvem o presidente da Câmara dos Deputados.
Todavia, do ponto de vista político, o caso de Cunha parece absolutamente claro e a demora de uma decisão a seu respeito só tem prejudicado o país. Acusado pelo MPF e considerado réu pelo Supremo, suas condições para presidir a Câmara e ser o segundo na linha de sucessão da presidente Dilma são absolutamente precárias; prejudicam a imagem e, mais, a dinâmica necessária do Congresso Nacional; decisões e encaminhamentos esperados por todos. A maioria do Parlamento, no entanto, se omite ou se dobra aos interesses delongatórios de Cunha. Não há visão nem decisão naquela Casa; ao que parece, espera-se que tudo se decida, afinal, pela Justiça. Uma perigosa omissão política que revela o caráter do Parlamento que se tem, neste momento.
No Executivo, deveria haver maior pró-atividade da presidente da República; o protagonismo presidencial, mesmo. O conjunto de problemas que hoje envolvem  — tanto ou mais que o governo – o sistema político nacional estão à espera de propostas, encaminhamentos, decisão; liderança, enfim. Dilma e seu ministério, no entanto, se anulam no emaranhado de conflitos e de interesses que os cercam; boquiaberto, esperam pelo quê?
Tudo, neste momento, no país, parece esperar as decisões da Justiça. Vendo isto, esse protagonismo judicial, alguns analistas afirmam que as instituições estão funcionando. Ora, não estão, se é que falamos em três Poderes, harmônicos e independentes; se é que Montesquieu ainda faz algum sentido.
Esta dependência em relação ao Judiciário para as questões que encobrem nosso quadro político implica num duplo perigo: paralisia e deturpação de funções, com o maior risco da judicialização da política, o que limita sua legitimidade. A cada um o seu cada um: juízes (e promotores) não podem e nem devem “pensar” e “agir” como políticos; políticos não podem abrir mão da responsabilidade e da iniciativa política que possuem.
A natureza da Justiça não reside na busca de consensos políticos, acordos e pactos; não faz leis, não reorganiza sistemas. Pelo contrário: juízes e promotores cumprem as leis – que podem ser anacrônicas, inclusive – e desmontam sistemas viciados, corrompidos, ilegais. Seu papel não é construir; seu papel não é pactuar; seu papel não é articular interesses. Não se pode esperar isto desses atores, sob risco de uma enorme confusão, de um grande conflito, no futuro.
Isto tudo deveria caber ao sistema político, que se omite. Se omite por que morreu? O país carece de políticos e eles não podem ser substituídos por uma burocracia pública – por mais qualificada que seja, por melhor que sejam suas intenções. Essa burocracia deve existir e cumprir seu papel de Estado, implementar políticas de Estado.
Mas, protagonismo político é outra coisa. Se não há bons políticos neste momento – o que é uma afirmação compreensível, mas desde sempre controversa –, temos um sério problema, cuja discussão e busca de solução não cabe a juízes, mas à sociedade, aos cidadãos. Não eliminemos a necessidade da cidadania, o seu papel e a sua obrigação. Um juiz transformado em herói nem sempre é sinal de instituições saudáveis.
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Fonte: http://jota.uol.com.br/


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