Por Carlos Melo
(Cientista político, INSPER)
“A condução coercitiva” de
Lula tende a se tornar uma polêmica de longo prazo e um caso clássico da
confusão entre Justiça e Política, que no limite será decidida pelos ministros
do Supremo – quase nunca com unanimidade, tal sua complexidade de aspectos processuais,
filigranas jurídicas, interpretações sutis de leis, artigos, parágrafos,
alíneas e acórdãos requer uma vida de dedicação a isto.
E também por seu apelo político, é óbvio. Para o analista
político isto tudo é interessante na medida em que expõe conflitos e disputas,
à maneira em que conformam um quadro da realidade e expõe suas consequências.
Assim como a política não é questão para advogados, o direito e o processo
jurídico traz muita confusão para politólogos que não se especializaram nesse
mister.
Nos limites do meu saber e
de minha profissão, prefiro pensar nessa questão sob dois aspectos: 1) seus
efeitos políticos; e, em paralelo, 2) a pouco saudável dependência que, hoje, a
política demonstra em relação à Justiça.
Em relação ao primeiro ponto, parece-me óbvio que a
condução coercitiva de Lula teve efeito na mobilização das ruas e na ainda
maior radicalização do debate. Submeter uma liderança como Lula aos rigores a
que outros foram submetidos sempre despertará queixas e aplausos.
Queixam-se aqueles que supõem que a folha de serviços
prestados pelo ex-presidente seria um espécie de salvo-conduto; aplaudem os que
acreditam que Lula não se distingue dos demais – o que é correto –, mas que
também, ao mesmo tempo, não reconhecem qualquer eventual bom serviço prestado
ao país pelo ex-presidente.
Os primeiros apontam o autoritarismo e a truculência
judicial, a tentativa de humilhar o líder político, acuá-lo; os outros, que
Lula se fez e se faz de vítima, tendo aproveitado com maestria as chances que
lhe foram dadas pela 24a. fase da Lava Jato; voltando a comunicar-se com sua
base social da formal emocional de que é mestre, dramatizando e politizando o
processo jurídico; Lula deu seu espetáculo particular e esta será sua
narrativa.
Não se trata de discutir qual dos lados têm razão, talvez
tenham os dois. Certamente, eventuais erros de Lula não deveriam servir para
negar seus acertos; e, tampouco, seus acertos deveriam justificar erros. O fato
politicamente relevante é que, daqui por diante, tudo o que se passar na
Operação Lava Jato, envolvendo Lula, será analisado com os óculos da política,
a inescapável política, mesmo que os argumentos jurídicos sejam justos e os
mais perfeitos. Tudo será política. Como disse Danton, às portas da guilhotina,
“o processo é político”.
A conexão entre Justiça e Política está dada e ela me
parece , de dificultado debate racional e moderado — dispensável discutir o
caso dos promotores do MP de São Paulo, espetáculo à parte. Mas, o que mais
perturba ao analista político, neste contexto, é a ausência e a fragilidade dos
demais Poderes — o Executivo e o Legislativo –, onde, por essência a política
deveria correr solta, muito mais do que na seara ou nos debates sobre a
Justiça. Eis o segundo e mais fundamental aspecto que gostaria de levantar.
O Executivo, no entanto, afoga-se nas suas mazelas; na
crise econômica, nos desatinos de gestão e em crimes praticados nessa interface
nebulosa que são as relações empresa-governo no Brasil. O Legislativo, se perde
no fisiologismo, no oportunismo eleitoral, na profusão de partidos e interesses
menores, no nanismo de suas lideranças.
Os agentes políticos que comandam esses poderes, tanto em
um caso como no outro, não demonstram estatura necessária para enfrentar os
excepcionais desafios do presente, encontrar e apontar saídas para a crise e
conduzir o processo político, arcando com suas implicações e consequências
jurídicas. São arrastados pelos fatos, encontram-se na dependência do Poder
Judiciário.
O exemplo mais evidente disto se dá em torno do caso de
Eduardo Cunha. É justo que o Ministério Público Federal instrua com muito
cuidado o processo contra o deputado – é um parlamentar no exercício do
mandato; mais natural ainda que o Supremo avalie a julgue os pedidos do PGR com
redobrada atenção os processos que envolvem o presidente da Câmara dos
Deputados.
Todavia, do ponto de vista político, o caso de Cunha
parece absolutamente claro e a demora de uma decisão a seu respeito só tem
prejudicado o país. Acusado pelo MPF e considerado réu pelo Supremo, suas
condições para presidir a Câmara e ser o segundo na linha de sucessão da
presidente Dilma são absolutamente precárias; prejudicam a imagem e, mais, a
dinâmica necessária do Congresso Nacional; decisões e encaminhamentos esperados
por todos. A maioria do Parlamento, no entanto, se omite ou se dobra aos
interesses delongatórios de Cunha. Não há visão nem decisão naquela Casa; ao
que parece, espera-se que tudo se decida, afinal, pela Justiça. Uma perigosa
omissão política que revela o caráter do Parlamento que se tem, neste momento.
No Executivo, deveria haver maior pró-atividade da
presidente da República; o protagonismo presidencial, mesmo. O conjunto de
problemas que hoje envolvem — tanto ou mais que o governo – o sistema
político nacional estão à espera de propostas, encaminhamentos, decisão;
liderança, enfim. Dilma e seu ministério, no entanto, se anulam no emaranhado
de conflitos e de interesses que os cercam; boquiaberto, esperam pelo quê?
Tudo, neste momento, no país, parece esperar as decisões
da Justiça. Vendo isto, esse protagonismo judicial, alguns analistas afirmam
que as instituições estão funcionando. Ora, não estão, se é que falamos em três
Poderes, harmônicos e independentes; se é que Montesquieu ainda faz algum
sentido.
Esta dependência em relação ao Judiciário para as
questões que encobrem nosso quadro político implica num duplo perigo: paralisia
e deturpação de funções, com o maior risco da judicialização da política, o que
limita sua legitimidade. A cada um o seu cada um: juízes (e promotores) não
podem e nem devem “pensar” e “agir” como políticos; políticos não podem abrir
mão da responsabilidade e da iniciativa política que possuem.
A natureza da Justiça não reside na busca de consensos
políticos, acordos e pactos; não faz leis, não reorganiza sistemas. Pelo
contrário: juízes e promotores cumprem as leis – que podem ser anacrônicas,
inclusive – e desmontam sistemas viciados, corrompidos, ilegais. Seu papel não
é construir; seu papel não é pactuar; seu papel não é articular interesses. Não
se pode esperar isto desses atores, sob risco de uma enorme confusão, de um
grande conflito, no futuro.
Isto tudo deveria caber ao sistema político, que se
omite. Se omite por que morreu? O país carece de políticos e eles não podem ser
substituídos por uma burocracia pública – por mais qualificada que seja, por
melhor que sejam suas intenções. Essa burocracia deve existir e cumprir seu papel
de Estado, implementar políticas de Estado.
Mas, protagonismo político é outra coisa. Se não há bons
políticos neste momento – o que é uma afirmação compreensível, mas desde sempre
controversa –, temos um sério problema, cuja discussão e busca de solução não
cabe a juízes, mas à sociedade, aos cidadãos. Não eliminemos a necessidade da
cidadania, o seu papel e a sua obrigação. Um juiz transformado em herói nem
sempre é sinal de instituições saudáveis.
------------------------------------------------
Fonte: http://jota.uol.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário