Chega a ser um equívoco primário dissociar a atual crise brasileira de dois aspectos fundamentais: a questão geopolítica na América Latina e o debate econômico. No primeiro caso, já tivemos oportunidade aqui, mais de uma vez, de tratar do assunto. No segundo caso, trata-se de perceber que a sofrível versão de 'novo desenvolvimentismo' tentada pelos governos petistas foi 'emparedada' pela ortodoxia econômica neoclássica, servindo isso, como decorrência, de combustível para se empreender a liquidação do governo. Costumam repisar alguns historiadores econômicos, tendo em referência Hegel, que um dos problemas da ortodoxia neoclássica é 'avistar as árvores sem, contudo, enxergar a floresta'. Pois bem, entender a natureza do debate econômico, em conjunto com outras variáveis, é uma condição sine qua non para se compreender dimensões não explicitadas da atual crise brasileira. Nesse sentido, Gonzaga Belluzzo e Zahluth Bastos oferecem, aí abaixo, um pertinente contributo. O artigo é uma resposta a um texto dos economistas neoclássicos Carlos Eduardo Gonçalves e Marcos de Barros Lisboa.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo e
Pedro Paulo Zahluth Bastos
(Instituto de Economia da Unicamp)
Em novembro de 2008, a
rainha Elizabeth 2ª ousou fazer a pergunta que os sábios da London School of
Economics não queriam ouvir: por que nenhum previu a crise financeira de 2008?
A pergunta perturbava a ortodoxia neoclássica, e a comissão formada ofereceu à
rainha uma resposta singela: houve uma falha coletiva de "imaginação"
de economistas que viam árvores, mas não a floresta.
Mais
singela foi a resposta do presidente do Banco Central dos EUA entre 1987 e
2006, Alan Greenspan. Em depoimento à comissão do Senado para investigar a
crise, Greenspan admitiu que havia uma falha na "ideologia" e no
"modelo" que usava para interpretar o mundo. Nada mal para quem se
dedicara por anos à desmontagem dos controles à livre movimentação financeira
alegando que os "agentes racionais" do mercado usavam os modelos
econômicos corretos e asseguravam o melhor equilíbrio possível na determinação
dos preços e na alocação dos recursos.
Não
faltou imaginação à resposta do patrono da revolução neoclássica desde os anos
1970, Robert Lucas. Embora há anos defendesse que, se os agentes fossem
racionais, usariam as teorias dele (Lucas) para entender a estrutura da
economia e prever o futuro da melhor maneira possível, o patrono das
"expectativas racionais" escreveu em artigo na revista "The
Economist" em 2009: "A crise não foi prevista porque a teoria
econômica prevê que estes eventos não podem ser previstos". Ou seja, por
axioma (ou ideologia), os indivíduos são racionais, suas interações nos
mercados são eficientes e, portanto, a crise que aconteceu não poderia ser
prevista.
O
argumento que a probabilidade do que ocorreu, como calculou o Goldman Sachs,
era igual a de ganhar 22 vezes seguidas na loteria cobria de retórica
cientificista o fracasso em prever, ao menos, o movimento do sistema no sentido
da instabilidade e da crise. Não era por falta de experiência histórica: desde
1980, a desregulamentação financeira avançou e, com ela, a frequência e a
intensidade de crises que supostamente ocorreriam apenas três vezes na vida do
universo.
A
cada crise, os economistas neoclássicos não jogaram fora modelos teóricos sobre
os quais construíram tanto reputação acadêmica quanto laços rentáveis, bem
documentados, com instituições financeiras e "think tanks"
neoliberais. Eles simplesmente culparam alguns "desvios" da realidade
em relação ao modelo (desvios esses, aliás, "descobertos" ex-post). O
inferno é a realidade, não o modelo simplório.
Pior
para os economistas neoclássicos é que, além das personagens simpáticas do
filme "A Grande Aposta", não foram poucos os economistas heterodoxos
que previram a crise financeira, embora nenhum super-homem o tenha feito com o
nível de exatidão do agente representativo que povoa os modelos neoclássicos de
equilíbrio geral. O que explica o fracasso da ortodoxia em ver a floresta?
AXIOMA
O
principal elemento definidor da ortodoxia neoclássica é o axioma de indivíduos
racionais e maximizadores de utilidade, que interagem em livre concorrência
para alcançar um equilíbrio estável na circulação de bens e serviços. Embora
este indivíduo seja um axioma teórico não observado na realidade, é com base na
suposição de sua existência que os "desvios" observados na realidade
podem atrasar o equilíbrio geral ou gerar equilíbrios sub-ótimos: não há
imperfeição na realidade sem a perfeição subjacente ao modelo teórico.
A
metafísica e a epistemologia da corrente dominante ocultam uma ontologia do
econômico que postula certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e
das conexões da "economia de mercado". Para este paradigma, a
"sociedade" onde se desenvolve a ação econômica é constituída pela
mera agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não
necessários ou estruturados pela sociedade.
Essa
visão se inspirou no paradigma da física clássica. Explicamos melhor este ponto
com a ajuda de Roy Bhaskar: se a concepção é atomística, então todas as causas
devem ser extrínsecas. E se os sistemas não dispõem de uma estrutura intrínseca
(isto é, esgotam-se nas propriedades atribuídas aos indivíduos que os compõem),
toda ação deve se desenvolver pelo contato. Os indivíduos
"atomizados" não são afetados pela ação e, portanto, ela deve se
resumir à comunicação das propriedades a eles atribuídas.
Assim,
os indivíduos maximizadores são partículas que jamais alteram suas propriedades
na interação com as outras partículas carregadas de "racionalidade".
Os fundamentos da teoria econômica dominante definem coerentemente o mercado
como um ambiente comunicativo cuja função é a de promover de modo mais
eficiente possível a circulação da informação relevante.
Essa
ontologia tem uma expressão metafísica e outra epistemológica. A metafísica
reivindica o caráter passivo e inerte da matéria e a causação é vista como um
processo linear e unidirecional, externo e inconsistente com a geração do novo,
ou seja, com a emergência que caracteriza a dinâmica dos sistemas complexos.
Na
versão epistemológica, reduto preferido do positivismo, os fenômenos são
apresentados como qualidades simples e independentes, apreendidas através da
experiência sensível. Nesse caso, a causalidade é vista como a concomitância
regular de eventos, que se expressa sob a forma de leis naturais, depois de
processada pelo sujeito do conhecimento capaz, então, de prever efeitos no
futuro.
Curioso
é que, inspirada na física clássica, a ortodoxia neoclássica parou no tempo e
não acompanhou a teoria dos sistemas complexos (ou do caos). A teoria da
complexidade foi anunciada no final do século 19 por Henri Poincaré ao estudar
a formação das órbitas dos planetas no Sistema Solar, mas foi redescoberta pelo
meteorologista e matemático Edward Lorenz em 1960.
Lorenz
descobriu que, com variações mínimas das condições iniciais (nunca capturadas
precisamente pelos modelos), o tempo evoluiria de modo a tornar qualquer
previsão inicial de pouco valor. Os erros e incertezas interagem, se
multiplicam e formam processos cumulativos. A complexidade do sistema exigiria,
mais do que uma previsão exata a partir de supostos iniciais irreais, que se
proceda com base em um escrutínio profundo das condições iniciais e do modo
como a estrutura do sistema vai se modificando, chegando por aproximações
sucessivas aos cenários possíveis da evolução a partir de um arco inicial de
trajetórias potenciais.
A
irreversibilidade do tempo histórico e a dependência do sistema em relação à
sua trajetória são elementos centrais da física do século 20. Em "Entre le
Temps et l'Eternité" (entre o tempo e a eternidade), Ilya Prigogine e
Isabelle Stengers mostram que as fenomenologias descritas pela termodinâmica,
pela física das partículas e pela teoria da relatividade "não só afirmam a
seta do tempo, mas também nos conduzem a compreender um mundo em evolução, um
mundo onde a 'emergência do novo' reveste um significado irreversível (...) O
ideal da razão suficiente supunha a possibilidade de definir a causa e o
efeito, entre os quais uma lei de evolução estabeleceria uma equivalência reversível".
Ao
manter o paradigma atomista, a ortodoxia neoclássica perde capacidade de
explicar e, portanto, prever comportamentos emergentes de um sistema complexo
como a economia capitalista. Em "Decoding Complexity" (decodificando
a complexidade), James Glattfelder escreve com rigor: "A característica
dos sistemas complexos é que o todo exibe propriedades que não podem ser
deduzidas das partes individuais. Em suma, a teoria da complexidade trata de
investigar como o comportamento macro decorre da interação entre os elementos
do sistema".
Ao
encontrar problemas de agregação insolúveis na tentativa de reduzir
propriedades do sistema a propriedades dos indivíduos, a macroeconomia
neoclássica reage não para incorporar a complexidade da realidade, mas para
simplificar axiomas fundamentais ainda mais. Quando se demonstrou
matematicamente que, dada a heterogeneidade dos indivíduos, não é possível
prever o formato da função de demanda agregada e, muito menos, gerar uma função
de demanda agregada com o formato propício para o equilíbrio maximizador, os
neoclássicos preferiram a simplificação absurda: que o sistema pode ser
modelado como se tivesse um único agente representativo que compra, vende,
trabalha, contrata, consome e poupa, empresta e toma emprestado, que tem um
único modelo sobre como a realidade funciona e que conhece a distribuição de
probabilidade de todas as contingências futuras.
Inconsistências
de agregação semelhantes para a teoria do capital ou para a curva de oferta
agregada foram simplesmente desconsideradas. O método não trata da abstração da
complexidade para reter seus aspectos essenciais, mas da eliminação da
complexidade para manter a ficção reducionista e simplória do equilíbrio entre
indivíduos maximizadores.
JUÍZOS
DE VALOR
Tamanho
apego da teoria neoclássica ao reducionismo da física clássica e ao axioma do
indivíduo atomizado é impregnado por juízos de valor. Herda a previsão feita
por Adam Smith e radicalizada pelo modelo de equilíbrio geral que, mantidos
livres em sua interação, os indivíduos alcançariam um equilíbrio estável e
maximizador, orientados pelo sistema de preços para alocar recursos escassos.
O
indivíduo maximizador é tomado como um elemento natural e eterno cujas
preferências mudam exogenamente ao sistema de interações. As interações têm
sempre o mesmo modelo e não são afetadas pela irreversibilidade da história e
por mudanças estruturais que caracterizam a complexidade social.
Tal
complexidade é o principal elemento unificador das heterodoxias econômicas. Ao
invés de reduzir a ação a um indivíduo representativo, os indivíduos são
classificados e posicionados em uma estrutura que os divide como sujeitos
sociais cuja harmonia não pode ser pressuposta: trabalhadores e capitalistas,
empresários, banqueiros e rentistas. A estrutura é assimétrica pois certos
indivíduos controlam a riqueza, mas é mutável e interage com estratégias de
organizações empresariais, classes e grupos sociais, Estados e sistemas
econômicos nacionais que têm poder desigual e que não podem ser previstas.
Instituições
e convenções sociais podem conferir uma estabilidade transitória ao sistema,
mas processos de causação cumulativa (feedbacks positivos) o afastam do
equilíbrio e geram uma dinâmica instável, sujeita à irreversibilidade
histórica. Assim, problemas de coordenação em condições de incerteza impedem a
maximização no uso dos recursos ociosos e podem até mesmo provocar crises
duradouras.
Concordamos
com Marc Lavoie de que são pelo menos sete as falácias de composição que, como
propriedades emergentes do sistema capitalista, a ortodoxia não é capaz de
compreender e prever. O paradoxo da poupança é o mais conhecido: se todos os
agentes buscarem poupar ao mesmo tempo, a queda de suas receitas frustra seus
objetivos e pode provocar falências e até crises financeiras.
A
recente adesão neoclássica à doutrina da austeridade expansionista mostra que
pouco se aprendeu com a complexidade da crise financeira. No Brasil, a ideia de
que o aumento da poupança pública animaria o gasto privado e geraria
crescimento da arrecadação tributária estava na base da expectativa de mercado
que a economia cresceria 0,8% em 2015, depois que Joaquim Levy anunciou seu
programa. Já Levy previu que seu programa geraria uma "recessão de um
trimestre", antes de persistir em um esforço fiscal que foi o dobro do que
propusera, com resultados desastrosos.
Não
há receita simples para o economista do século 21, mas Keynes propunha combinar
os talentos complexos do "matemático, historiador, estadista e filósofo
(na medida certa). Deve entender os aspectos simbólicos e falar com palavras
correntes. Deve ser capaz de integrar o particular quando se refere ao geral e
tocar o abstrato e o concreto com o mesmo voo do pensamento. Deve estudar o
presente à luz do passado e tendo em vista o futuro. Nenhuma parte da natureza
do homem deve ficar fora da sua análise. Deve ser simultaneamente
desinteressado e pragmático: estar fora da realidade e ser incorruptível como
um artista, estando embora, noutras ocasiões, tão perto da terra como um
político".
Talvez
seja uma receita para o economista do século 21, avessa aos que insistem em
imitar os cientistas naturais dos séculos 17 a 19.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 20/03/2016.
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