sábado, 5 de março de 2016

O dia que principiava: as coisas deixam atrás de si um nome

O amanhecer em Cabo Branco - João Pessoa 

Por Leont Etiel

Era um mês que principiava  lentamente, e em que, embora no começo, trazia em si a surpresa de um cansaço visionário. Há situações da vida que se revelam assim: a surpresa está onde não há hipótese para ela, por isso surpresa, grandes, outras pequenas e médias. O fato é que as surpresas não boas têm mais propriamente os nomes de decepção e frustração, ao passo que as agradáveis abrem frestas no tempo para oxigenar a existência e fazer a eternidade de momentos chamados de felicidade.
O tempo de outono recuava dando lugar às chuvas frias de um inverno com ventos fortes e ásperos que estiolavam a calma de folhas ternas das árvores, estas confiante demais, indefesas, perante o ciclo convencional da natureza. Pássaros, assustados, voavam  por sobre o parapeito da janela, onde  habitualmente pousavam na busca de comida, ao mesmo tempo em que cantavam observando o oceano. Um mês que principiava lentamente com chuva. Os bem-te-vis tinham a sua ousadia desafiada pelo cair da água, sendo jogados para um lado e para outro, desviados do seu ordinário trajeto e do seu alvo, e protestavam, com o canto, contra o clima inconstante.
Era um dia de um mês que principiava, daqueles em que, muitas pessoas que convivem em proximidade, são obrigadas a disfarçar a insatisfação, a conter palavras, por trás do silêncio ou de um sorriso pela metade, forçado. O que vai nos pensamentos está em outro local, mas o corpo se faz presente é ali, naquele momento, naquela situação que se apresenta, que se está a viver, e então, como forma de testemunho da presença do corpo na situação em pensamento ausente, palavras são trocadas em monólogos, seguidos estes de sorrisos sem riso interior. E assim se vão os dias.
Tratava-se de um ano com um mês que principiava, num dia em que se fica, sob o cinzento do nublado, a pensar na postura das pessoas que dizem não ter tempo para pensar. E então pensamos em dobro. Porque nada impede uma segunda camada de pensamento e de conjecturas por trás da vivencia da existência ordinária, dos acontecimentos corriqueiros, do comportamento das gentes com as quais se convive, da rotina cotidiana, enfim.
De modo geral, cada um tem certas regiões desconhecidas e não mapeadas que, quando descobertas, fervilham, inquietam-se, caem em dúvidas, e ao mesmo tempo desencadeiam um impulso de luz incandescente. Trazem coisas, trazem situações, trazem os seus nomes.
Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus. Eco dos ecos: ‘a rosa antiga permanece no nome, nada temos além do nome’. Era um dia de um mês que principiava, daqueles que dizem que as coisas deixam atrás de si um nome.


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